domingo, 25 de maio de 2008

A Escola da Alta Montanha


Encontrei nalgumas das reflexões produzidas por Friedrich Nietzche na sua obra “Assim falava Zaratustra”[1], o estímulo que procurava, há já algum tempo, para desenvolver uma breve reflexão sobre uma actividade pela qual sou aficionado, e que passo desde já a expor nos parágrafos que se seguem.
Enquanto praticante entusiasta das modalidades de escalada e alpinismo tenho vindo a acumular vivências e experiências que têm contribuído, de forma marcante e definitiva, para a maturação do meu ser. Na montanha tenho buscado, e não raras vezes encontrado, o tónico de que necessito não apenas para revigorar as minhas forças, a minha mente, e assim encarar com maior confiança as adversidades inerentes à minha actividade profissional ou social, mas também algumas respostas de ordem existencial, que me ajudam naturalmente a compreender melhor o meu mundo e o dos outros.
Um dos momentos que mais me aflui quando me encontro em plena montanha é o da consciência da minha insignificância, talvez pequenez, enfim, da percepção das inúmeras futilidades que povoam a vida dos mortais. Nietzche sintetiza-o da seguinte forma: “Aquele que escala as mais altas montanhas ri-se das cenas trágicas do palco como da gravidade trágica da vida”[2]. As agruras fingidas e sentidas adquirem, nesta perspectiva, um mesmo nível de significância, sobretudo para aquele que é capaz de avaliar com toda a lucidez cada uma destas situações, com a necessária distância e com uma percepção despida de preconceitos ou paternalismos, numa atitude ponderada e reflexiva. Eis alguns dos ingredientes que concebem a sabedoria. Mas para atingi-la, para alcançar o cume das altas montanhas, há que partir do nosso interior, há que escavar nas profundezas da nossa alma e tentar encontrar as razões da razão que nos impele a perseguir tal desígnio. Zaratustra, a figura criada por Nietzche na supra-referida obra, interrogando-se sobre a origem das montanhas mais altas, concluía que estas provinham do mar, pois segundo dizia, “O testemunho está escrito nas suas rochas e nas paredes dos seus cumes. O mais alto tem que atingir a sua altura a partir das suas profundezas”[3].
Ao sujeito pensante impõe-se-lhe a assumpção de uma dedicação permanente na busca do conhecimento; é-lhe exigido um temperamento peculiar, um conjunto de atributos. Segundo Nietzche, “A sabedoria quer-nos corajosos, despreocupados, trocistas, imperiosos; ela é mulher e apenas sabe amar um guerreiro”[4].
Confesso que não me é fácil descrever com exactidão o que sinto ou o que busco quando me encontro em plena montanha. Talvez por receio de cair em relativismos ou tornar o meu discurso demasiado lírico. No entanto, tenho a plena consciência do muito que ela exige. Desde logo a capacidade de nos abstrairmos do supérfluo, do mesquinho, e concentrarmo-nos na essência das coisas, para ver muito para além das aparências. Numa palavra, exige-nos abnegação. Como salienta Nietzche, “É preciso aprender a abstrair-se de si, para ver muito mais”, considerando que “esta droga é necessária a todos os alpinistas”[5].
Os desafios que se colocam ao alpinista são elevados. Talvez por isso sejam mais desejados. Sabe quem já o experimentou que a conquista do cume tem um sabor especial, sobretudo quando precedida da suplantação de um conjunto de obstáculos. E se a subida nos cobra muito do corpo e da mente, a descida não nos exige menos. O saber adquirido não é estanque; a humildade com que atingimos o cume, a sabedoria, terá que ser a mesma com que regressamos ao campo base, ao fundamento. A aprendizagem lograda nesse percurso ficará inscrita no nosso ego, com repercussões significativas no nosso amadurecimento e nas nossas relações interpessoais.
Digo com frequência que o alpinismo exige dos seus praticantes uma boa dose de determinação e outra de prudência, devendo estas ser geridas de forma equilibrada. A montanha não nos reclama medo, mas sim respeito. A determinação exige-nos coragem, e a prudência lucidez. E sobre coragem, Nietzche faz uma reflexão que julgo traduzir em parte aquilo que deverá ser o espírito do alpinista: “Coragem tem aquele que conhece o medo mas que o domina, aquele que vê o abismo mas que se orgulha disso”[6].



[1] NIETZCHE, Friedrich (s/d). Assim falava Zaratustra. Colecção Grandes Génios da Literatura Universal. Amadora: Ediclube.
[2] Op. cit., p. 39.
[3] Op. cit., p. 137.
[4] Op. cit., p. 39.
[5] Op. cit., p. 136.
[6] Op. cit., p. 252.