segunda-feira, 27 de maio de 2019

A utilidade do inútil


“O verdadeiro inimigo da espécie humana não é o pensador temerário ou
irresponsável, esteja ele certo ou errado, mas sim aquele que tenta moldar o
 espírito humano de forma a que ele não se atreva a abrir as asas e voar (…)”
Nuccio Ordine


Este é título que dá nome a um manifesto escrito por Nuccio Ordine, filósofo e professor de literatura italiana na Universida­de da Calábria. A obra dá conta de como a lógica utilitarista e o culto da propriedade acabam por definhar o espírito das pessoas, colocando em risco não só a cultura, a criatividade e as instituições de ensino, mas também valores fundamentais como a dignidade humana, a justiça, a solidariedade, a tolerância, a liberdade, ou tão-só o amor e a verdade. Valendo-se da reflexão de grandes filósofos e escritores, Nuccio Ordine faz-nos perceber que nem mesmo em tempo de crise só é útil o que gera lucro ou que tenha utilidade prática. Para tal, as suas considerações gravitam em torno da ideia de utilidade de todos aqueles saberes cujo valor substancial se encontra despojado de qualquer finalidade utilitária, saberes esses, como sublinha o autor, que podem ter um papel capital na educação do espírito e no desenvolvimento cívico e cultural da humanidade. 
Numa Europa da economia e da finança, dos negócios e dos orçamentos, dos números e das estatísticas, numa Europa da perda de direitos e apoios sociais e laborais, do ataque aos Direitos Humanos, o direito de ter direitos é, como diz Nuccio, “subordinado ao domínio do mercado, com um risco crescente de eliminar qualquer forma de respeito pela pessoa. Transformando os homens em mercadoria e dinheiro (…)”. O mesmo questiona, de forma algo indignada, se as dívidas soberanas terão o condão de apagar as “dívidas” mais importantes, contraídas ao longo dos séculos em relação a quem nos legou um extraordinário património artístico e literário, musical e filosófico, científico e arquitectónico. É, por isso, neste contexto bárbaro que o filósofo defende que “a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse económico exclusivo, vai matando progressivamente a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a instrução, a investigação livre, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte cívico que deveria inspirar todas as actividades”. De forma irónica acrescenta que “no universo do utilitarismo um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia do utensílio e cada vez mais difícil compreender para que serve a música, a literatura ou a arte”. 
A campanha eleitoral para as europeias mostrou bem o vazio de ideias e propostas dos diferentes candidatos e partidos sobre a promoção e o investimento na Cultura, já para não falar noutros temas igualmente relevantes. Para além do discurso politiqueiro e remoques rotineiros, do equívoco entre as governações de S. Bento e de Bruxelas, a campanha e o debate teve como mote de discussão, ad nauseam, o corte de 7% para Portugal nos fundos europeus no próximo quadro comunitário, a que se juntou os costumeiros temas da economia, da banca e, claro está, de José Sócrates! 
Contra a corrente, um grupo de quatro ex-ministros e secretários de Estado que foram responsáveis, há relativamente pouco tempo, pela pasta da Cultura de França, Itália, Portugal e Espanha, juntaram-se para apresentar um conjunto de 7 propostas para afirmar a Cultura como um elemento essencial para a consolidação do projecto europeu, procurando sensibilizar os eleitores europeus e os candidatos ao Parlamento Europeu. “A Cultura no projecto europeu” é o título do artigo publicado no passado dia 20, no jornal Público, onde os quatro ex-governantes, a uma só voz, defendem que a Cultura tem um papel fundamental não só no desenvolvimento económico, mas também nas políticas de inclusão social, na promoção da diversidade cultural europeia, na afirmação de uma literacia plena e consequentemente de uma democracia dos cidadãos. Talvez essas propostas possam ser um bom ponto de partida para dar início a um processo de “depuração” e revitalização da sociedade, de modo a que a mesma tome consciência, como diz Nuccio Ordine, “de que a literatura e os saberes humanísticos, a cultura e a instrução, constituem o líquido amniótico ideal em que as ideias de democracia, de liberdade, de justiça, de laicidade, de igualdade, de direito à crítica, de tolerância, de solidariedade, de bem comum, podem conhecer um desenvolvimento vigoroso”.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

A hipocrisia e os seus representantes

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de apreço por História, cultura ou património não terá ficado indiferente ao incêndio na catedral de Notre-Dame. Ficarão certamente registadas na memória de quem assistiu, in loco ou por televisão, às chamas que consumiram parte do monumento. Pese embora a calamidade e destruição consequentes, não podemos deixar de estabelecer um paralelo com outros acontecimentos bem mais dramáticos, alguns deles recentes e a necessitar de resposta imediata. 
Escrevia alguém, não me recordo quem, no JN que a mobilização e angariação de fundos para a reconstrução da referida catedral fez-se bem mais célere e com maior proveito do que aquela que se verificou para com as vítimas de Moçambique, resultantes da passagem do ciclone Idai. Como se não bastasse, chegou por estes dias o ciclone Kenneth para aumentar a catástrofe humanitária! Dizia então o autor do artigo que para “pedra” não faltaram centenas de milhões de euros em tão pouco tempo, enquanto para as vidas humanas daquele país do continente africano apenas foram pingando ajudas monetárias bem menos generosas e ainda muito aquém das suas reais necessidades. Para o primeiro caso bastaram os cheques de um punhado de empresas e de grandes fortunas francesas. Ainda que bem mais modesto, juntemos ainda o pedido feito pelo presidente do Parlamento Europeu aos eurodeputados, para que contribuíssem com a quantia equivalente a um dia de salário para ajudar na reconstrução da catedral. Não me consta que tenha ocorrido a mesma iniciativa para com Moçambique! 
No dia seguinte ao incêndio de Notre-Dame, na comissão parlamentar de ambiente, em Estrasburgo, a conhecida activista sueca Greta Thunberg fazia uma intervenção acerca de outro “incêndio”. A jovem, de 16 anos, alertou os líderes europeus para a urgência de salvar o planeta, desafiando-os a ter o mesmo interesse e empenho que revelaram para restaurar a catedral parisiense. Pelo menos algumas partes do seu discurso, em alguns momentos emocionado, merecem bem ser aqui lembradas: “Quero que vocês entrem em pânico. Quero que ajam como se esta casa estivesse em chamas. Se a vossa casa estivesse a pegar fogo (…) vocês não organizariam três encontros de emergência para falar sobre o ‘Brexit’ e nenhum para falar das alterações climáticas.” (...) Um grande número de políticos já me disse que o pânico nunca conduz a um bom resultado e eu concordo. Entrar em pânico, a não ser que seja necessário, é uma ideia terrível. Mas quando a tua casa está a arder e queres impedir a tua casa de arder completamente, isso requer algum nível de pânico. (…) Ontem [dia 15], o mundo inteiro assistiu com tristeza e desespero ao fogo que assolou a Notre-Dame, em Paris. Alguns edifícios são mais do que apenas edifícios. Mas a Notre-Dame vai ser reconstruída. Espero que as fundações sejam fortes, espero que as nossas fundações sejam ainda mais fortes. Mas temo que não sejam. A erosão da camada fértil do solo, a desflorestação das nossas grandes florestas, a poluição aérea tóxica, a perda de insectos e de vida selvagem, a acidificação dos oceanos, são todas tendências desastrosas que se têm acelerado devido ao estilo de vida que nós, na nossa parte do mundo financeiramente próspera, consideramos nosso dever continuá-las.” No final da sua intervenção, e a respeito das próximas eleições europeias, exortou as gerações mais velhas, para que representem os mais novos e escolham aqueles (futuros eurodeputados) que não tentam esconder os problemas provocados pelas alterações climáticas. Pediu aos eleitores que façam uma escolha acertada, em nome das gerações futuras: “Nestas eleições vão votar nas futuras condições de vida da humanidade. E embora as políticas necessárias não existem hoje, algumas alternativas são menos más do que outras. E eu li que alguns partidos nem sequer querem que eu esteja aqui hoje, porque não querem de maneira nenhuma falar nas alterações climáticas”. Sobre esta tentativa de boicote à presença da jovem no Parlamento Europeu só me ocorre uma palavra: “miseráveis”. 
Agora fixemo-nos no que tem sido por cá a (pré-) campanha eleitoral para as europeias, que será muito provavelmente similar ao que se passa em outros países da União Europeia (UE). O que se tem falado acerca do ambiente? Que ideias ou que políticas ambientais têm sido propostas para combater os problemas que afectam o nosso planeta? Para além dos arreigados ataques pessoais e do anseio de transformar estas eleições numa moção de censura ao governo, fica uma mão cheia de nada acerca de questões ambientais. Dito isto, convenhamos que não é fácil para os eleitores escolher os seus representantes para o Parlamento Europeu. Mais ainda quando são conhecidas, por exemplo, as respostas dadas por alguns dos eurodeputados às legítimas e realistas preocupações de Greta Thunberg, que são universais, nas quais se desculparam com a burocracia e as "dificuldades" de contornar decisões do Conselho Europeu, enfim, sobre a máquina pesada da UE, lembrando ainda, e de forma compassiva, o muito que têm feito!? 
A menos de um mês das eleições europeias, é sobre esta hipocrisia reinante no seio da UE, como acontece noutras instituições representativas dos cidadãos, e sobre aqueles que poderão vir a sentar-se nas cadeiras do Parlamento Europeu que se impõe uma profunda reflexão, antes de colocar a “cruz”.