terça-feira, 24 de junho de 2025

Sobre os protestantes

Já lá vai mais de um mês que ocorreram as eleições legislativas. Assim que foram conhecidos os resultados, muita saliva e muita tinta se gastou. Parte do comentariado apressou-se a ditar sentenças e a fazer futurologia, com demagogia à mistura. Entre vencidos e vencedores, a queda da esquerda foi motivo de regozijo à direita, e a subida desta, sobretudo a extrema, causou convulsões na esquerda.
Do muito que se disse, há um ponto que me interessa esmiuçar: o crescimento do Chega e a sua passagem a segundo maior partido na Assembleia da República. Das alusões condenatórias a este acontecimento, há uma com a qual não concordo: a de que os eleitores deste partido são uns ignorantes, no sentido de desconhecedores, da sua identidade e daquilo que ele defende. Para além de sobranceira, acho uma atitude desrespeitosa para quem livremente (obrigado, democracia) vota em quem bem entende e segundo as suas convicções. Acredito mesmo que muitos dos mais de 1,3 milhões que votaram neste partido se revêem nas suas linhas programáticas, bem como no vocabulário e nas práticas dos seus deputados. Tudo bons rapazes.
Para mim está claro que os eleitores do Chega são profundos conhecedores do que é e defende André Ventura e a sua entourage. Sabem perfeitamente que se trata de um partido com uma narrativa racista, xenófoba, anti-imigração e claramente contra a Constituição e os seus principais valores. Sabem que são vários os deputados da sua bancada que estão a braços com a Justiça. Sabem que são promotores de mentiras e insultos no espaço público, no parlamento e nas redes sociais. Sabem que cultivam a agressividade, o ódio, a divisão, a segregação, a misoginia, o patriarcado. Sabem que se apressam a suavizar os actos de violência praticados por grupos organizados de extrema-direita neonazi. Sabem que as suas fake news são escrutinadas pelo polígrafo, onde são categoricamente, e sem surpresas, desmentidas. Sabem que o seu líder recorre frequentemente a golpes de teatro para seduzir e convencer a sua plateia. Sabem disto tudo. Et pourtant
Vários analistas têm dito que se trata de eleitores revoltados, zangados com a governação, o sistema, o regime, e que há necessidade de compreendê-los. É verdade que muitos portugueses estão descontentes, e com razão, com o estado da saúde, com a falta de creches, com a falta de professores, com os baixos salários, com o problema da habitação, dos transportes públicos, da segurança, do ambiente, etc. Mas é bom lembrar que, mesmo assim, 74,44% dos portugueses decidiram não votar no Chega. Por isso, surpreende a centralidade e a cobertura mediática de que tem beneficiado.
Miguel Sousa Tavares tem uma opinião contrária a esses analistas. Diz que os eleitores do Chega estão, sim, zangados com a democracia. Que parte deles são saudosistas do Estado Novo, sendo a outra a que acha que a democracia existe para os servir, e jamais o contrário. Para o jornalista, “O povo do Chega é uma aldeia de invejosos, de gente que não vai à luta por si, preferindo antes reclamar a protecção do estado para a sua inutilidade (como antes faziam com o PCP), e que quer acreditar que se os outros triunfaram nas suas vidas onde eles falharam só pode ter sido por batota e jamais por mérito.” Acrescenta ainda que os mesmos “detestam os que tentam informar-se e aprender, os que não são ignorantes nem parasitas, os que aproveitaram a liberdade para vencer na vida, sem se encostarem a ninguém, esperando sempre ajudas, apoios ou subsídios dos outros, pagos através do estado. Eles detestam quem é livre assim. Numa palavra, a elite.” (Expresso, 30/05/2025)
Para todos os efeitos, já é mais que tempo deixar a retórica e as promessas de parte e partir, sem demora, para o combate efectivo e célere às crescentes desigualdades, garantir serviços públicos de qualidade e desenvolver uma política de proximidade, humanizada. Só assim se combate o populismo, a demagogia e os messias.
Até lá, e quanto ao famigerado voto de protesto, sugiro, em alternativa, o voto em branco. É que assim não correm o risco de virem a arrepender-se de terem votado neste ou naquele partido. De terem beneficiado um ou outro. E assim fica o aviso à navegação, entenda-se, aos governantes, para que fortaleçam a democracia.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

A tirania do mérito

Este é o título de um livro de Michael Sandel, um dos mais reconhecidos filósofos da actualidade, professor de filosofia na Universidade de Harvard. Nele, o autor alerta para os riscos que as democracias liberais atravessam, responsabilizando um dos seus pilares básicos: o princípio do mérito. Relembra aquilo que se tornou uma evidência, a saber, uma competição desenfreada, feita em diferentes contextos, que acaba por criar uma polarização entre vencedores e perdedores, tendo como resultado um mundo que reforça a desigualdade social e culpabiliza as pessoas. Sandel considera que essa polarização vencedor-perdedor fez estancar a mobilidade social e promoveu um sentimento de raiva e frustração, que tem servido de pasto para o protesto populista e para a descrença nas instituições, nos governos e entre cidadãos. De modo a ultrapassar esta e outras crises que corroem as sociedades, o autor recomenda uma reflexão sobre as ideias de sucesso e fracasso, inerentes à globalização e às crescentes desigualdades. Uma forma de pensar o sucesso assente numa ética de humildade e solidariedade e mais reivindicativa da dignidade do trabalho.
Sandel deixa claro que os defensores do projecto meritocrático “sabiam que a verdadeira igualdade de oportunidades exigia mais do que a simples erradicação da discriminação. Exigia que se criassem condições que permitissem às pessoas de todos os estratos sociais e económicos competir eficazmente numa economia global baseada no conhecimento” (p.103). Acrescenta que esta consciência levaria a que, nas décadas de 1990 e 2000, os partidos considerassem a educação o eixo da acção política no combate à desigualdade, aos salários estagnados e ao desemprego, uma política centrada no bem comum. Daí para cá pouco mudou. As assimetrias permanecem e nalguns casos agravaram-se. Veja-se a crescente concentração da riqueza produzida numa pequena percentagem de multimilionários, por oposição a um número elevadíssimo da população mundial que vive na pobreza, alguma dela extrema. E depois vêm os defensores da meritocracia propalar que o esforço e o trabalho árduo garantirão um futuro risonho, que favorecerão a mobilidade social! Ora o que Sandel faz notar é que o ideal meritocrático não é um remédio para a desigualdade, mas a sua justificação. Em jeito de metáfora, o autor sublinha que uma “competição” só é justa quando todos começarem “a corrida na mesma linha de partida, tendo tido igual acesso a oportunidades de formação, treino físico, nutrição e assim por diante” (p.146). Não é isto o que a realidade nos mostra em muitas situações.
Podemos perfeitamente estabelecer um paralelismo com o que acontece em contexto escolar. Com o devido suporte legal e regulamentar, é certo, as escolas atribuem todos os anos, nos diferentes níveis de ensino, prémios de mérito aos alunos que se destacam no seu desempenho escolar. Em tese, nada tenho contra. Todavia, se olharmos à realidade social, e tendo em conta o que anteriormente referi quando citei Michael Sandel a respeito de “competição”, então aí o caso muda de figura. O ponto de partida não é igual para todos. Obviamente que aquele aluno que tem todo o suporte familiar necessário e determinante para atingir o sucesso, partirá em vantagem relativamente a quem não dispõe do mesmo. Falo da disponibilização, por parte dos pais, de todo o material escolar e didáctico, do apoio afectivo, do acompanhamento no estudo (que tem um valor acrescido quando os pais têm formação superior), das explicações extra-escolares, etc. Todo o aluno que não usufrui destas condições parte de um ou vários degraus inferiores. O berço em que se nasce fará a diferença. A origem social do aluno, o capital de conhecimento dos pais e a valorização da escola por parte destes são decisivos no sucesso escolar. Mais do que um indicador educativo, o sucesso escolar acaba por traduzir-se num indicador social. Assim, torna-se difícil falar da escola e da educação como um “elevador social”.
Nós, professores, aqueles que melhor que ninguém conhece o terreno, sabemos que esta é uma realidade irrefutável. Daí a minha relutância às cerimónias de entrega de “galardões” e a todas as artes performativas que habitualmente nelas sucedem.