terça-feira, 26 de novembro de 2024

Da utilidade do inútil à civilização do espectáculo

“A utilidade do inútil” é o título que dá nome a um manifesto escrito por Nuccio Ordine, filósofo e professor de literatura italiana na Universida­de da Calábria. A obra dá conta de como a lógica utilitarista e o culto da propriedade acabam por definhar o espírito das pessoas, colocando em risco não só a cultura, a criatividade e as instituições de ensino, mas também valores fundamentais como a dignidade humana, a justiça, a solidariedade, a tolerância, a liberdade, ou tão-só o amor e a verdade. Valendo-se da reflexão de grandes filósofos e escritores, Nuccio Ordine faz-nos perceber que nem mesmo em tempo de crise só é útil o que gera lucro ou que tenha utilidade prática. Daí as suas considerações gravitarem em torno da ideia de utilidade de todos aqueles saberes, cujo valor substancial se encontra despojado de qualquer finalidade utilitária, saberes esses, como sublinha, que podem ter um papel capital na educação do espírito e no desenvolvimento cívico e cultural da humanidade.
Numa Europa da economia e da finança, dos negócios e dos orçamentos, dos números e das estatísticas, numa Europa da perda de direitos e apoios sociais e laborais, do ataque aos Direitos Humanos, o direito de ter direitos é, como diz Ordini, “subordinado ao domínio do mercado, com um risco crescente de eliminar qualquer forma de respeito pela pessoa” (2023, p.9). Fala-nos de um mecanismo económico que transforma os homens em mercadoria e em dinheiro. Questiona, com sarcasmo, se as dívidas soberanas terão o condão de apagar as “dívidas” mais importantes, contraídas ao longo dos séculos em relação a quem nos legou um extraordinário património artístico e literário, musical e filosófico, científico e arquitectónico. É, por isso, neste contexto bárbaro, que o filósofo defende que “a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse económico exclusivo, vai matando progressivamente a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a instrução, a investigação livre, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte cívico que deveria inspirar todas as actividades”. De forma irónica acrescenta que “no universo do utilitarismo um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia do utensílio e cada vez mais difícil compreender para que serve a música, a literatura ou a arte” (p.10).
E daqui faço a ponte para “A civilização do espectáculo”, título de uma obra de Mario Vargas Llosa, na qual o autor desfia o estado da cultura. Ainda que publicado há mais de uma década, o livro é de uma actualidade inegável. O escritor peruano define a civilização do espectáculo como um mundo em que o valor supremo é o entretenimento, a diversão. Ainda que reconhecendo este como um ideal de vida legítimo, chama a atenção para as consequências nefastas para a sociedade contemporânea que daí advêm, nomeadamente: a banalização da cultura, das artes e da literatura, a generalização da frivolidade e, no campo da informação, o triunfo do jornalismo sensacionalista, que prioriza escândalos e intrigas. Se, como lembra o autor, no passado a cultura funcionava como uma forma de consciência, que impedia o sujeito de ignorar a realidade, os problemas, hoje ela actua como instrumento de entretenimento. Vargas Llosa lembra que a cultura “pode ser experimento e reflexão, pensamento e sonho, paixão e poesia e uma revisão crítica constante e profunda de todas as certezas, convicções, teorias e crenças”. Contudo, adverte, “ela não pode apartar-se da vida real, da vida verdadeira, da vida vivida, que não é nunca a dos lugares comuns, a do artifício, o sofisma e o jogo, sem risco de desintegrar-se” (2012, p.74).
A cultura é, pois, o substrato de uma sociedade que se deseje plena, dotada de todos os instrumentos que permita ao sujeito meditar sobre tudo o que rodeia, assumindo-se igualmente como um agente activo e transformador. Deve, por isso, ser considerada vital para a sobrevivência da humanidade e para assegurar o seu legado. Na esteira de Antonio Monegal, a cultura deve ser valorizada como o ar que respiramos e fazer parte de uma consciência colectiva. O autor considera que “Se a sociedade como um todo não valorizar o que a cultura representa, é ingénuo esperar que os políticos assumam uma responsabilidade que lhes é pedida por escassas pessoas”. Para fazer face aos problemas e desafios que o mundo nos coloca e as apreensões que nos desperta, Monegal defende que “importa realçar que não sairemos desta situação sem confiar na capacidade da cultura em proporcionar às pessoas ferramentas que lhes permitam enfrentar desafios da existência e, ao mesmo tempo, em construir fábricas de ideias que contribua para o desenvolvimento da sociedade como um todo” (“Como o ar que respiramos – O sentido da cultura”, 2024, p.182).

Nota: Parte deste artigo é recuperado de um outro, também aqui publicado, mas sujeito a uma revisão e à introdução de novos conteúdos.