“As desgraças das revoluções são dolorosas
fatalidades, as desgraças dos maus governos são dolorosas
infâmias”.
Eça de Queirós
Num momento em
que tanto se reclama a falta de valores e de cidadania na nossa sociedade,
torna-se difícil, para não dizer inexplicável, as “reformas” que o nosso
ministro da Educação, Nuno Crato, quer e está a implementar no nosso sistema de
ensino. Ora, a palavra reforma, tal como o conceito sugere, pressupõe uma melhoria
num determinado estado de coisas. Contudo, o que se constata, mais aquilo que
se prevê a nível de políticas educativas vai precisamente no sentido contrário.
Comecemos por
recuar uns tempos atrás e ver quem era Nuno Crato, antes de ter assumido em
2011 a pasta do Ministério da Educação, do Ensino Superior e da Ciência. Sem
desconsiderar o seu currículo académico e profissional, o então professor
universitário, investigador e comentador, desde logo deixava bem clara a sua
opinião e posição quanto ao sistema de ensino português, quer através de vários
textos publicados, quer em várias intervenções públicas.
Dominado por
uma série de preconceitos para com a produção científica desenvolvida pelas
Ciências da Educação e pelo trabalho desenvolvido nas escolas, bem como pelo neoconservadorismo,
o discurso do comentador Nuno Crato assentava (como ainda assenta), basicamente,
num alegado reino do facilitismo e indisciplina que se vivia nas escolas
portuguesas; na abordagem de conteúdos ou temas que segundo o próprio não
servem a verdadeiro mandato da escola; na incompetência docente e no
(inconveniente) peso do Estado na Educação, tendo como claro propósito, atacar
a escola pública.[1]
Surpreende que um investigador académico, quando confrontado com este panorama,
que o próprio traçava nesse momento, não se tenha disponibilizado para
apresentar dados científicos ou estatísticos para defender a (sua) tese de que
o ensino em Portugal atingira níveis mínimos de aprendizagem, preferindo
imputar responsabilidades por essa ausência aos anteriores responsáveis pela
mesma pasta que agora ocupa.[2]
Curiosamente, a omissão de dados relevantes para compreender muitas das medidas
que o agora ministro da Educação está a implementar, bem como de outras que se
adivinham, tornou-se uma prática corrente por parte do ministério que o próprio
dirige!
Para combater os tais “males” do sistema educativo, o
ministro da Educação decidiu implementar uma revisão curricular, guarnecida por
um conjunto de medidas complementares (com destaque para o aumento do número de
alunos por turma e a constituição de mega agrupamentos escolares[3]),
e assim levar a cabo a sua grande cruzada contra os que defendem uma escola
pública como espaço privilegiado para a aprendizagem e prática da cidadania, da
solidariedade, da cultura, da criação e do conhecimento, mais concretamente, os
tais conteúdos e temas a que o ministro aludia. Para tal, cedo se apressou a
extinguir a área curricular de Área de Projecto para o ano lectivo em curso, e
agora, e a partir do próximo, a de Formação Cívica. Não surpreende de todo esta
tomada de decisão, pois numa entrevista que o mesmo deu há pouco mais de um ano,
na altura no papel de ideólogo e comentador, Nuno Crato dizia que a escola,
segundo o pretexto de “criar cidadãos críticos, jovens cientistas, escritores
activos, eleitores activos, com esses slogans grandiosos, esquece-se aquilo que
é fundamental, que é transmitir conhecimentos básicos”.[4]
Portanto, para o nosso ministro, o pensamento crítico, a curiosidade
científica, a cidadania participativa, o interesse pela literatura e/ou cultura
são questões menores ou de pouco interesse para a educação e formação integral
do educando! Em suma, o paradigma educativo do ministro da Educação vai
precisamente contra a missão histórica da escola enquanto instituição, diga-se,
a formação de cidadãos e a transmissão de um legado histórico e cultural.
Ainda a respeito da revisão curricular, e rumando em sentido
oposto do que se tem verificado em particular nos países mais desenvolvidos da
Europa, preconizadores inclusive de experiências educativas inovadoras e
exemplares, o nosso ministro da Educação decide menosprezar o ensino artístico
e tecnológico. Fá-lo através da redução da carga horária de algumas das
respectivas disciplinas, coloca algumas delas em situação de oferta de escola
(ou seja, de carácter opcional), ou então fragmentando-as, desagregando, assim,
conteúdos que se complementavam, tal como irá acontecer com a disciplina de
Educação Visual e Tecnológica (do 2º ciclo do Ensino Básico), passando a
existir a de Educação Visual e a de Educação Tecnológica, contrariando inclusive
aquilo que o próprio defende no preâmbulo do documento da Revisão da Estrutura
Curricular, ou seja, a não dispersão curricular! Curioso esta lógica e este tipo
de cálculos, sobretudo vindo de um matemático!
O ministro da Educação fala-nos de uma “avaliação rigorosa”,
que assenta basicamente na cultura de exames nacionais, essa sim, a verdadeira
panaceia para responder aos maus resultados escolares, complementada pelos
doutos rankings, que a comunicação social
tanto gosta de glosar. Portanto, aqui parte-se do princípio que toda a
avaliação formativa e sumativa, e séria, desenvolvida pelos professores, ao
longo de todo o ano lectivo, aqueles que realmente conhecem a realidade de cada
escola, de cada aluno e de cada meio, não merece credibilidade. Por isso, há
que apostar num modelo que consiste, basicamente, e tal como sublinha Domingos
Fernandes (2012), “em pensar-se que, definidas umas metas ou standards, estabelecendo os resultados
esperados, basta utilizar uma medida, obtida tipicamente através de um exame,
para avaliar ou representar a qualidade da educação”[5]. Em
síntese, trata-se daquilo que poderíamos designar de um modelo de tamanho
único, do tipo “prêt-à-porter”, em que o que conta é a quantificação. Só que o
ministro esquece-se que nem tudo é quantificável, que nem tudo se reduz a
números, que os exames não descrevem o conjunto das aprendizagens e saberes
adquiridos pelo aluno.
A racionalidade subjacente à revisão da estrutura curricular
do ministro da Educação comprometerá certamente a “vida” da escola, na medida
em que deixará de haver tempo e lugar para a imaginação e a criatividade, para
as artes e a cultura, para uma educação para os valores, para a compreensão dos
desafios e dilemas contemporâneos, para a solidariedade, para a educação inter
e multicultural, enfim, para uma cidadania democrática e participativa,
consubstanciada numa prática reflexiva. Ao contrário, perspectiva-se uma
directoria voltada para a preparação dos alunos para responderem acertadamente
às perguntas dos exames. Tal como sublinha Domingos Fernandes (2012), “todo o
tempo será pouco para se conseguir que a escola ‘fique bem’ na fotografia dos rankings produzidos pelas empresas da
comunicação social”.[6]
Ainda por cima, e para um ministro obcecado pela matemática, as metas que
aponta para esta disciplina dificilmente serão atingidas, pois o próprio ignora
que “um jovem desenvolvido em termos de autonomia na sua vida quotidiana tem
mais capacidades para resolver situações problemáticas do que um jovem atulhado
de explicações e horas semanais da disciplina, mas incapaz de resolver uma
questão prática do dia-a-dia”.[7]
Nem as recomendações de organizações e instituições
nacionais e internacionais, nem os vários exemplos de reformas meritórias que
estão a ser empreendidas em vários países da União Europeia[8] demovem
o ministro da Educação de levar a cabo a sua agenda de políticas neoconservadoras
e neoliberais, o que, aliás, serve na perfeição os interesses do actual
governo. Esta agenda, que mais não é do que uma cartilha obsoleta e
contraproducente, hoje condenada por alguns dos que no passado eram seus
defensores e até preconizadores[9], assenta
num programa estratégico, que Manuel Sarmento (2011) resume da seguinte forma:
“reforço das políticas de avaliação a todos os níveis; reestruturação
curricular; destruição de recursos educacionais (nomeadamente com o
despedimento massivo de professores) e desmantelamento das políticas cujo
sentido é o do combate às desigualdades (Programa Novas Oportunidades,
Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, Programa e-escola, etc.);
introdução progressiva de medidas de esvaziamento do papel do Estado na
Educação”.[10]
[1] Cf. CRATO, Nuno (2006). O ‘Eduquês’ em Discurso Directo. Uma Crítica da Pedagogia Romântica e
Construtivista.
[2] Em entrevista dada à agência Ecclesia, a 22 de
Fevereiro de 2011, Nuno Crato dizia o seguinte: “Nós estamos muito piores que à
10 ou 20 anos, mas também não tenho dados para mostrar isso, porque o
Ministério não dá dados às pessoas (…)”.
[3] No dia 18 de Abril de 2010, no programa Plano Inclinado da SIC Notícias, Nuno
Crato, então no papel de comentador e ‘especialista’ em temas sobre Educação,
dizia a respeito dos mega agrupamentos que “além do absurdo que este sistema é
do ponto de vista pedagógico e do ponto de vista da gestão de uma escola, isto
é brincar com o sistema (…)”.
[4] Entrevista dada à agência Ecclesia, no 22 de Fevereiro de 2011.
[5] FERNANDES, Domingos (2012). A propósito da
racionalidade da chamada revisão da estrutura curricular. In A Página da Educação, Série II, nº 196,
p. 21.
[6] Cf. FERNANDES, Domingos (2012), p. 21.
[7] GONÇALVES, Paulo (2012). A propósito da racionalidade
da chamada revisão da estrutura curricular. In A Página da Educação, Série II, nº 196, p. 128.
[8] Sobre as reformas nos currículos e nos sistemas de
ensino europeus, em particular no que concerne à educação artística e cultural,
bem como de um conjunto de relatórios, pareceres, resoluções e recomendações
produzidos por instituições internacionais, consultar os seguintes documentos: Culture, Creativity
and the Young: Developing Public Policy (Robinson/Conselho da Europa,
1999); Roteiro para a Educação Artística (UNESCO, 2006); Agenda
Europeia para a Cultura (Conselho da União Europeia, 2007); Livro Branco sobre
o Diálogo Intercultural (Conselho da Europa, 2008); Resolução sobre os estudos
artísticos na União Europeia (Parlamento Europeu, 2009); Arts and Cultural
Education at School in Europe (Eurydice,
2009).
Por cá, sugiro simplesmente a consulta da Recomendação n.º
1/2012, de 7 de Dezembro de 2011, publicada em Diário da República no dia 24 de
Janeiro de 2012, do
Conselho Nacional de Educação.
[9] RAVITCH, Diana (2010). In Need of a Renaissance: Real Reform Will Renew,
Not Abandon, Our Neighborhood Schools.
In American Educator, Summer: v34 n2, pp. 16-22.
[10] SARMENTO, Manuel (2011). O cratês em discurso directo:
ideologia e proposta política. In Le
Monde diplomatique, edição portuguesa, II Série, n.º 59.
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