Comemoram-se os 50 anos do Maio de 68. O que se
passou, o que ficou e qual o legado são questões que merecem toda a atenção e
reflexão, hoje mais do que nunca.
As semanas conturbadas que a França viveu foram
precedidas, e de certa maneira acalentadas, por outros acontecimentos que se
vinham registando e mesmo acentuando noutros países, especialmente nos EUA. A
guerra do Vietnam, com os seus milhares de mortes de norte-americanos, fez
crescer a oposição interna àquele conflito. Para além de desmascarar as
mentiras de Washington, mostrou que não só não estava ganha, como revelava a
sua barbaridade e os seus custos económicos astronómicos. Os filhos da nação
americana iam caindo no campo de batalha, sem um fim à vista. A
contestação alastrou-se às universidades, com destaque para a de Columbia,
tomando o espaço público. A mobilização contra a escalada imperialista no
Vietnam cedo se estendeu a outros países. A este caldo junta-se ainda a luta
pelos direitos humanos encetada pelo pacifista e activista Martin
Luther King. A sua luta contra a discriminação racial e as desigualdades social
e económica acabaria por lhe ditar a morte a 4 de Abril de 1968. Estes e outros
acontecimentos fizeram germinar no seio da sociedade, sobretudo nas camadas
mais jovens, um sentimento de injustiça e revolta.
Em
França, o regime gaullista tornara-se insuportável. O peso de uma sociedade
conservadora e autoritária, com uma liderança moral marcadamente católica, o
pesadelo das guerras imperialistas e coloniais, o belicismo fomentado pela
Guerra Fria, assim como o desencanto com uma civilização industrial/capitalista
moderna, criadora de uma sociedade de consumo e individualista, fez estalar o
verniz.
Foi a 22 de Março que o movimento estudantil
francês arrancara com a ocupação da Universidade de Nanterre, chegando ao Quartier
Latin a 2 de Maio, tomando aí maiores proporções. No dia seguinte a Universidade
de Sorbonne era tomada pelos estudantes. Depois de várias reuniões e confrontos
entre grupos de estudantes rivais, por ordem do reitor a Universidade é
evacuada pela polícia, seguindo-se horas de batalha campal. Daqui resultaram
dezenas de feridos e centenas de prisões, tendo os distúrbios prosseguido nos
dias seguintes. Daí até o movimento extravasar para o mundo laboral, foi um
passo. Eis que se dá a gigantesca manifestação de 13 de Maio, seguindo-se uma
longa e incontrolada greve geral, que teria um efeito dominó, dadas as
sucessivas greves que se seguiram ao longo de semanas, um pouco por toda a
França. O movimento reflectiu-se nas artes, na literatura, na música, na
filosofia, etc.
Maio de 68 não foi, pois, um movimento de mera
euforia iniciada por um grupo de jovens, de forma aleatória ou marginal, de
proscritos ou libertinos. Foi algo bem diferente. Algo maior. Alain Krivine e Alain Cyroulnik, num texto publicado no
jornal Le Monde (24/01/2018), resumem-no da seguinte forma:
“Para nós, 68 não se reduz a uma revolução cultural
nem à libertação sexual, mesmo que, sem dúvida alguma, se tenha dado tudo isso
[…] foi, sobretudo, 10 milhões de grevistas a ocupar fábricas com as bandeiras
vermelhas ao alto, os estudantes a ocupar as suas faculdades e institutos
durante semanas, e as pessoas a discutirem em conjunto, por todo o lado. […] Para nós,
o Maio de 68 continua a ser o que falta fazer, mas sendo capazes de coordenar
as lutas, de suscitar nas empresas e nos bairros, nas cidades e nos campos, um
verdadeiro poder das e dos trabalhadores, juntando todas e todos, pessoas não
organizadas, associações ou sindicatos, partidos, pessoas com ou sem emprego,
franceses ou estrangeiros, que acreditam que outro mundo é possível e que o
querem construir, sem fronteiras, sem muros e sem ódio, como afirmava esta
consigna de Maio 68: Que se lixem as fronteiras!”
A mobilização internacional contra a
globalização neoliberal, a luta por comunidades humanas livres e igualitárias, esse
“outro mundo” possível tem sido discutido nos vários encontros promovidos pelo
Fórum Social Mundial. Não importa se as roupagens são hoje diferentes. Sabemos
que a História não se repete, pois as sociedades reinventam-se com as novas
gerações, mas o legado do Maio de 68 está aí. Os últimos anos têm sido
denunciadores de um movimento social à escala planetária, que se vai alargando,
diversificando e, tal como na década de 60, manifesta-se contra um sistema
capitalista, agora mais selvagem e desenfreado, comandado pela finança e pelos
mais variados interesses obscuros, que acentua as desigualdades sociais,
amentando o fosso ente ricos e pobres; contra o autoritarismo, nacionalismos e
xenofobia; contra os novos teatros (e cenários) de guerra (agora com novos
protagonistas, que dispensam apresentações!), mas também com novas causas, tais
como a defesa do meio ambiente ou a luta pela igualdade de género. A Internet e as redes sociais vieram dar um
novo impulso e uma nova forma de intervir no espaço público e na arena
política, mobilizando diferentes grupos de activistas que reinventam uma
cidadania que se deseja activa, participativa e transformadora de uma sociedade
que tem sede de justiça.
Sem comentários:
Enviar um comentário