O
Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro, criara três áreas curriculares não
disciplinares no ensino básico, nomeadamente, Área de Projecto, Estudo
Acompanhado e Formação Cívica. Além disto, consagrava a integração da educação
para a cidadania, com carácter transversal, em todas as áreas curriculares
(alínea d) do artigo 3.º). Na alínea c) do artigo 5.º, a Formação Cívica é
entendida como um “espaço privilegiado
para o desenvolvimento da educação para a cidadania, visando o
desenvolvimento da consciência cívica dos alunos como elemento fundamental no
processo de formação de cidadãos responsáveis, críticos, activos e intervenientes,
com recurso, nomeadamente, ao intercâmbio de experiências vividas pelos alunos
e à sua participação, individual e colectiva, na vida da turma, da escola e da
comunidade”. Este enunciado deixava claro a importância e o imperativo da
educação cívica na formação integral das crianças e jovens. E hoje, face às disfunções
sociais e políticas que se vão registando um pouco por toda a parte, ao assalto
às instituições democráticas, às ofensivas contra o próprio Estado de direito, mais
imperioso se torna tal desiderato.
Cerca
de uma década mais tarde, com o Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de Julho, é
feita uma revisão curricular, desta vez pela mão do ministro da Educação Nuno
Crato. Com esta iniciativa legal, defendia o prodigioso ministro, seria reduzida
a “dispersão curricular” e reforçada a carga horária nas “disciplinas
fundamentais” (alínea d) do artigo
3.º). Continuo às voltas com isto de “disciplinas fundamentais”! Talvez um dia
alguém me consiga esclarecer. Adiante! Certo é que, relativamente as
supra-referidas áreas curriculares não disciplinares, desaparece a Área de
Projecto, o Estudo Acompanhado muda de nome (passa a chamar-se Apoio ao Estudo)
e a Formação Cívica deixa de ser uma ‘disciplina’ autónoma, ou seja, de oferta
obrigatória (alínea m) do artigo 3º).
Passaria àquilo que se designou de Oferta Complementar, ou seja, fica ao
critério de cada escola! Entendeu o iluminado governante que
bastaria que a educação para a cidadania fosse abordada, de forma transversal,
pelas diversas áreas curriculares. Desta forma, Nuno Crato dava a entender que
ainda acreditava (e talvez ainda acredite) no Pai Natal!
Já com o actual governo foi publicado o
Decreto-Lei n.º 17/2016, de 4 de Abril, que mantém a Formação Cívica como
oferta complementar e a educação para a cidadania como um tema a abordar de
forma transversal pelas diferentes disciplinas. Ou seja, nesta questão em
particular tudo ficou na mesma!
Passemos
agora ao terreno e ao que realmente me trás por cá.
Ainda
que todo o cuidado seja pouco no momento da produção legislativa que se vai
fazendo em matéria de ensino e educação, parece-me prioritário esclarecer
alguns conceitos, propósitos e práticas. A verdade seja dita, uma efectiva
educação para a cidadania não depende tanto de matéria legislativa, mas sim da
forma como ela é (ou deveria ser) operacionalizada. Primeiro haverá que
desfazer alguns equívocos. Comecemos pelo de conceito de ‘cidadania’.
No
espaço onde labuto, a escola, há muito percebi que reina uma confusão entre os
conceitos de ‘cidadania’ e ‘comportamento’. E isso é perceptível nas reuniões de
avaliação dos conselhos de turma. No momento de avaliar os alunos na área curricular
de Educação para a Cidadania[1] (assim
se designa na minha escola), eis que por vezes se levanta um coro de vozes a sentenciar
este ou aquele aluno com uma menção de Satisfaz Pouco ou Não Satisfaz porque,
como dizem, “porta-se mal”. Ou seja, entendem que cidadania = comportamento, tout court! Atendendo à definição (e
propósitos) de educação para a cidadania bem explanada no início deste texto (D.L.
nº 6/2001), um aluno até pode ser crítico (no sentido construtivo),
participativo, interventivo, solidário, envolver-se em acções cívicas, etc.,
quer nas actividades curriculares ou extracurriculares, seja nas aulas de
Formação Cívica/EPC ou noutras disciplinas, mas se em determinados momentos, nesta
ou naquela disciplina, com maior ou menor frequência (dependendo da autoridade
do professor…), ele manifestar atitudes perturbadoras (desatenção, obstinação, etc.),
logo passa a ser considerado “um mau cidadão”!
Segundo a legislação ainda vigente,
educar para a cidadania é responsabilidade de todos os professores, de todas as
áreas curriculares. É imenso o número de documentos e de material de
apoio/didáctico sobre o assunto. Os temas passíveis de ser explorados, e com
grande pertinência social actual, são inúmeros e diversificados. Poderíamos falar, por exemplo, de Educação
para os Direitos Humanos; Educação Ambiental/Desenvolvimento Sustentável;
Educação para o Desenvolvimento; Educação para a Igualdade de Género; Educação
para a Saúde e a Sexualidade; Educação para os Media; Educação do Consumidor;
Educação Intercultural; Educação para a Paz; Educação para o Mundo do Trabalho,
entre tantos outros. Poderão ser desenvolvidos nas diferentes áreas
curriculares, em actividades que promovam o enriquecimento do currículo ou em outros
projectos. Com a
devida articulação (e acima de tudo, vontade) entre ou diversos intervenientes,
seguramente serão proporcionadas condições para a aprendizagem de competências
sociais por parte dos alunos, despertando-lhes uma consciência cívica, maturada
numa prática reflexiva e interventiva no espaço público, fim último da educação
para a cidadania. É este o ‘comportamento’ que importa desenvolver e avaliar.
Um
país ou um Estado são demasiado preciosos para se deixarem entregues apenas nas
mãos dos decisores políticos. O exercício cívico de cada cidadão não se
restringe apenas ao voto, como muitos entendem. É muito mais do que isso. É desde
logo assumir, cada um por si, que somos parte interessada num país mais
desenvolvido e mais justo.
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