“Uma epidemia é um fenómeno social
que tem alguns aspectos médicos”.
Rudolf
Virchow
A COVID-19 trouxe mudanças significativas no
comportamento dos cidadãos, algumas delas bem preocupantes. Durante o
confinamento, o medo gerado pela pandemia começou por levar as pessoas a açambarcar
bens de primeira necessidade, como se não houvesse amanhã. O papel higiénico
esgotou nas prateleiras de muitos supermercados! Os livros, não. Exceptuando os
que não tinham outra alternativa senão deslocarem-se para o seu local de
trabalho, o isolamento em casa foi ocupado, nalguns casos, com o teletrabalho,
nas lides de casa, a ajudar os filhos nas tarefas escolares, e para muitos dos
que não os tinham, foi passado nas redes sociais. Os mais velhos viram o seu
isolamento reforçado, com todas as consequências nefastas por demais
conhecidas. As medidas de combate à pandemia, recomendadas pelas autoridades de
saúde, cedo, e de um modo geral, foram adoptadas sem grande questionamento por
parte das populações. As pessoas passaram a olhar-se, e ainda se olham, com
desconfiança, resultando em incómodos indisfarçáveis. Evitar aglomerações, uso
de máscara, etiqueta respiratória e distanciamento social faziam e ainda fazem
parte da lista de recomendações. A “cotovelada” passou a ser, porventura, a
forma mais usual de cumprimentar, especialmente entre os homens. O aperto de
mão foi banido! Sobre esta resolução tenho sido tentado a escrever um artigo,
desfiando sobre o burlesco daí resultante. Por enquanto, aludo apenas à
seguinte situação: atendendo-se aos cuidados ditados pela ética respiratória, e
na ausência de máscara, sublinho, sugiro ao leitor que reflicta sobre a
distância que dista entre duas pessoas que se cumprimentam com os cotovelos e
aquela que se verifica num aperto de mão! Juntemos-lhe, claro está, a questão
da desinfecção/lavagem das mãos, situação que, grosso modo, já entrou na rotina
das pessoas.
O aperto de mão tem uma vasta simbologia, tem uma
ética inerente, é um gesto de urbanidade, aproxima ou reaproxima pessoas, sela
contractos, projectos, visões, fideliza amizades, vidas, etc. Pode representar
um gesto de humanismo. E todavia, o momento actual bani-o. Sobre esta
realidade, Bernard-Henri Lévy diz-nos, com lamento, o seguinte: “este hábito
que se impôs, ao que parece sem grande pesar, de nunca mais dar apertos de mão:
não foi um belo gesto de cortesia que se viu proscrito? um sinal de
solidariedade republicana, promovido pela Revolução Francesa e pelo espírito de
1789, que passou a ser banido? e se a coisa durar, se decidirmos tomar-lhe o
gosto, se a excepção vier a tornar esse hábito caduco, numa época em que pouco
falta para que a desconfiança de todos por todos prospere, não será isso um
triste retrocesso?”[1]
Mas a COVID trouxe algo bem mais inquietante. Temos
ouvido recorrentemente que o vírus não escolhe classe social. Mas a realidade
tem demonstrado que este quadro não é de todo fiel. Ivan Krastev lembra que as
sociedades dilaceradas por diferentes tipos de desigualdade têm sido as mais
atingidas. Toma como exemplo os EUA, em que os dados evidenciam que o
rendimento e a raça (aquilo que o autor designa de «condições preexistentes») desempenham
um importante papel em determinar quem morre[2].
Numa alusão a uma conversa recente, tida com o cientista político Stephen
Holmes, Krastev comenta que o seu interlocutor considera que “a pandemia
enfatiza a desigual «distribuição do perigo» na sociedade – mobilidade
descendente para o túmulo –, em vez de apenas a distribuição desigual de
recursos e oportunidade para a mobilização ascendente”[3].
Outra forma de discriminação que o vírus da COVID
trouxe prende-se com os mais velhos. Estes sentem-se ameaçados pelo
comportamento negligente dos mais jovens, que ameaça prolongar o seu isolamento.
Ora tal resulta num conflito e num forte impacto na dinâmica intergeracional. Junte-se
a vigilância, seja da vizinhança ou das autoridades, e a denúncia, anónima ou
não, e temos os ingredientes certos para alimentar o medo, algo do qual os
populistas e nacionalistas tentam sempre tirar partido para a sua promoção.
Como ironiza Bernard-Henri Lévy, trata-se de “uma vida em que aceitávamos, com
entusiasmo ou resignação, a passagem do Estado-providência ao Estado-vigilância”[4].
Krastev sublinha ainda que a pandemia não só reforçou e amplificou as divisões
sociais e políticas existentes, como também foi causa de novas. Exemplifica-o
com o resultado das medidas de confinamento aplicadas em muitos países, em que
o chamado “distanciamento social” constituiu, para muita gente, um luxo da
classe média. Para outros, e voltando aos EUA, significa “comunismo”, posição
defendida pelos opositores ao confinamento, com a chancela de Donald Trump.
Esta distopia em que vivemos acabou por colocar a
democracia em suspenso, pondo em causa o próprio Estado de direito, como é
exemplo claro o que se passa na Hungria, assim como em muitos outros países de
regimes políticos variados, especialmente nos de cunho autocrático ou
ditatorial. Preocupa a forma dormente e acrítica como algumas sociedades
encaram esta forma de governo. Não me parece de todo desadequada aos dias de
hoje a reflexão, com mais de século e meio, do político Proudhon, quando diz
que “ser governado significa ser observado, inspeccionado, espionado, dirigido,
legislado, regulamentado, cercado, doutrinado, admoestado, controlado,
avaliado, censurado, comandado (…)”[5].
[1]
LÉVY, Bernard-Henri (2020). Este vírus que nos enlouquece. Guerra & Paz:
p. 60
[2]
KRASTEV, Ivan (2020). O futuro por contar. Objectiva: p.49 e 51.
[3] Idem, p. 49.
[4] Idem, p.80.
[5] PROUDHON, Pierre-Joseph (1851). L'idée générale de
la révolution au XIXe siècle. Garnier
Frères, Libraires.
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