O início de Setembro fica marcado por uma polémica
em torno do caso de dois irmãos, alunos de uma escola de Vila Nova de Famalicão,
que não frequentaram as aulas da disciplina (obrigatória) de Cidadania e Desenvolvimento
(CD) durante os últimos dois anos lectivos, por decisão do respectivo
encarregado de educação, que alegou objecção de consciência. Artur Mesquita
Guimarães, o pai dos jovens, defende que os tópicos da disciplina são uma
responsabilidade da família e não da escola. O ministério da Educação acabaria por
determinar, e bem, através de um despacho, que os alunos deveriam cumprir um
plano de recuperação proposto pela escola, caso contrário recuariam dois anos,
determinação que veio contrariar a decisão dos conselhos de turma, que tinham
aprovado a transição desses alunos. Daqui seria um passo para o surgimento de
um manifesto, designado “Em defesa das liberdades de educação”, que
defende o direito dos pais à objecção de consciência em relação à disciplina de
CD, subscrito
por várias de personalidades ligadas à política, à Igreja, às academias (em especial
à Universidade Católica, onde aliás o documento foi lançado), bem como a outros
sectores da sociedade. Destas destaco, em particular, o antigo presidente da
República, Cavaco Silva, o ex-Primeiro-Ministro Passos Coelho e o ex-ministro
da Educação David Justino. Cavaco Silva, pródigo em equívocos, esquece que
quando foi Primeiro-Ministro contou com um ministro da Educação (Roberto
Carneiro) que contribuiu decisivamente para o lançamento das bases daquilo que
hoje viria a ser a Educação para a Cidadania. Porventura andaria distraído! Se
foi o caso, ainda bem. Já Passos Coelho, um liberal convicto, defensor da
legalização do aborto, surpreendeu-me! David Justino, pelo contrário. Numa
entrevista ao Jornal das 8 da TVi, no passado dia 7, a respeito do que
preconiza o dito manifesto, o ex-ministro da Educação meteu os pés pelas mãos,
quando tentou justificar o injustificável, enredando-se em sofismas. Foi confrangedor
ouvi-lo. Na sua intervenção ficou claro que o que o preocupa na disciplina de CD,
tal como a generalidade dos outros subscritores, é o tema da sexualidade. O seu
interlocutor, Miguel Sousa Tavares, conseguiu por a nu o que vai na cabeça do
ex-ministro. David Justino foi intelectualmente desonesto, cínico e
preconceituoso. Quando afirma que as matérias abordadas, em qualquer
disciplina, devem ter suporte científico, saberes consolidados, não só revela
ignorância como desprezo por um assunto tão importante como a educação sexual.
Então os saberes produzidos pela medicina (incluindo várias especialidades), a
psicologia, a biologia, entre outras áreas científicas, e que no programa da
disciplina de CD sustentam os vários objectos de estudo da sexualidade, num
contexto global da saúde, não têm suporte científico? Para quem não sabe, no
tema da sexualidade são tratadas questões como a identidade e género, o
desenvolvimento da sexualidade, os direitos sexuais e reprodutivos (prevenção
de relações abusivas e a maternidade e paternidade), parentalidade responsável,
saúde sexual e reprodutiva, entre outros. Também para que se saiba, a disciplina
de CD aborda temas de indiscutível pertinência, tais como: direitos humanos
(civis e políticos, económicos, sociais e culturais, e de solidariedade),
desenvolvimento sustentável, educação ambiental, saúde, interculturalidade,
media, educação para o consumo, segurança rodoviária, instituições e
participação democrática, e ainda mais. Estas são, aliás, temáticas que
deveriam ser ensinadas à população em geral. Mas o busílis da questão está no
malfadado tema da sexualidade, o tal que está a causar tanta celeuma,
despoletada pelo pai dos irmãos de Famalicão! Já agora, presumo que o acesso à
Internet por parte destes jovens só se faça sob sua vigilância! Oportunidade
para dar a conhecer uma pequena nota biográfica do protagonista desta novela. Artur
Mesquita Guimarães é católico e conservador, foi delegado da Associação
Portuguesa de Famílias Numerosas da zona norte e pertenceu à comissão executiva
da Plataforma Resistência Nacional (agora designada de Plataforma Renovar). Em
2009 opôs-se publicamente à inclusão obrigatória da educação sexual nas escolas
(defendendo que a estas apenas cabia o ensino da “parte biológica do sexo”!) e
participou na recolha de assinaturas para exigir um referendo ao casamento
entre homossexuais. Em Fevereiro deste ano participou na manifestação em frente
da Assembleia da República contra a despenalização da morte assistida. No
processo que moveu contra o Ministério da Educação, conta com o apoio do
advogado João Pacheco de Amorim, que foi cabeça de lista do Chega, por Coimbra,
nas legislativas. Por acaso o estimado leitor não sente aqui uma fragrância a
Estado Novo? Também através de um manifesto, a que foi dado
o nome de “Cidadania e desenvolvimento: a cidadania não é uma opção”, um
conjunto de personalidades juntou-se para condenar este ataque à disciplina de
educação para a cidadania, e aqueles que defendem um currículo “à la carte”. Os
tais “objectores de consciência”! Gente que confunde educação com doutrinação. O
que seria da Escola Pública se as disciplinas passassem a ser opcionais e em
função dos mais variados caprichos ou vontades? Mais ainda quando se sabe que a
maioria dos pais se demite da responsabilidade de educar os filhos, seja por ignorância
em certas matérias, seja por desinteresse. É para que ninguém fique de
fora que existe um currículo nacional. É precisamente para evitar o cerceamento
de liberdades de aprendizagem dos educandos, como pretende o tal encarregado de
educação. É, como defende o secretário de Estado da Educação, João costa, pelo
princípio de que, na vida em sociedade, a cidadania deve ser um compromisso
pelo respeito dos direitos de todos, e não uma opção de cada um.Vivemos tempos perigosos. Estamos a assistir,
um pouco por toda a parte, a meu ver com uma bonomia generalizada preocupante,
a um discurso bafiento, retrógrado, reaccionário e demagógico, que começou na
extrema-direita e que já capturou alguma direita, e que vem na sequência do surgimento
de grupos radicais, “pastoreados” por figuras ou líderes políticos populistas,
nacionalistas, xenófobos e nalguns casos, saudosistas…
1 comentário:
Parabéns pela tua versatibilidade e consistência.
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