Do muito que já
se disse e escreveu acerca do famigerado relatório do FMI, divulgado no dia 9
de Janeiro, e que certamente terá novos capítulos, ficou bem claro que o mesmo
resultou de uma encomenda feita pelo nosso governo. Isto foi, aliás, confirmado
pelo próprio FMI, em declarações feitas à Rádio Renascença, no dia 16 do mesmo
mês, quando admitiu ter-se baseado nos argumentos do governo português para a
elaboração do relatório final, que, entre outras medidas, sugere cortes nos
salários e nas pensões, e o aumento das taxas moderadoras e das propinas.
Querer fazer passar uma encomenda, urdida por uma elite ultraliberal, por um
estudo independente, tem tanto de ingenuidade como de perfídia!
Depois
de uma leitura crítica do dito relatório, as poucas dúvidas que tinha acerca
das intenções “reformadoras” do governo cedo se dissiparam. Para mim, ficou
translúcido que a tão apregoada “refundação do Estado”, mais não é do que a
destruição do Estado Social. Iria mesmo mais longe: trata-se da destruição do
próprio Estado, tal como uma sociedade democrática e progressista o concebe.
Daí o anunciado (mas ainda não esclarecido!) corte de quatro mil milhões de
euros nas suas funções.
Há
já algum tempo que pouco ou nada nos tem surpreendido o governo de Passos
Coelho. Tornou-se frequente virem a público os seus elementos, com o primeiro-ministro
à cabeça, darem “o dito pelo não dito”! Basta lembrar muitas das promessas (quebradas!)
que Passos Coelho fez na campanha eleitoral para as legislativas de 2011! O que
hoje é verdade, amanhã é mentira, e vice-versa! Estamos perante uma espécie de
ciclo vicioso, em que a táctica é a do princípio da negação, ou, como diria
Manuel Carrilho, “é a táctica
de avançar mascarado, jurando sempre respeitar o que se despreza, e rejeitar o
que se venera. O resto são meros expedientes e pequenos truques, fáceis para
quem gere o poder”[1].
E um desses truques é o de, por exemplo, anunciar-se um “debate nacional” sobre
a reforma do Estado, para logo depois se tornar num “debate privado”! E assim
foi! Ao invés de estabelecer um diálogo sério, entenda-se, sem demagogias, nem
manobras de diversão, com os parceiros sociais, partidos políticos, agentes das mais variadas
entidades e instituições da sociedade civil, enfim, com a res publica, Passos Coelho optou por uma outra estratégia.
Seleccionou um conjunto de figuras notáveis, escolhidas a dedo, e trancou-se com
elas entre as paredes do Palácio Foz, promovendo um fórum, intitulado,
"Pensar o Futuro - um Estado para a Sociedade", cujas conclusões
foram entregues ao primeiro-ministro uma semana depois, também à porta fechada!
Quer num caso, quer noutro, a comunicação social foi fortemente condicionada,
ao ponto de ficar impedida de desenvolver o seu legítimo trabalho, ou seja, informar
os portugueses. Eis o sentido de ética e de honestidade intelectual do nosso
primeiro-ministro! Resumindo:
o governo encomenda um relatório ao FMI, ao qual, e no mesmo momento, tem a ‘amabilidade’
de sugerir um guião com as linhas políticas/orientadoras que o próprio deseja (sequiosamente)
ver implementadas; segue-se o anúncio do referido corte de quatro mil milhões
de euros nas funções sociais do Estado (isto como quem atira barro à parede!); no
seguimento, eis que surge um arauto acenando com a dita “refundação do Estado”;
cerca de um mês depois é divulgado publicamente o dito relatório; gera-se e
gere-se o pânico, e, por último, promete-se um “debate nacional”, mas não com
quem e no espaço em que tal se impunha! Pois o que se tem visto, é que ao longo
de todo este processo o governo tem demonstrado um total desprezo para com os
seus principais parceiros sociais!
O
primeiro-ministro tem razão quando veio a público dizer que o relatório do FMI
não é a “bíblia do governo”. Certo! Na verdade, a bíblia de Passos Coelho, do
governo e dos partidos que o apoiam é muito mais do que esse documento, por
sinal cheio de grosseiros erros técnicos, tal como tem sido apontado por
diversas figuras, quer das mais variadas cores partidárias (incluindo as do governo),
quer de apartidários, quer do meio académico. A bíblia de Passos Coelho é, como sublinha Manuel
Carrilho, “a de um ultraliberalismo estruturalmente fanático”, que tem passado
despercebido a muitas almas! De modo simplificado, este ultraliberalismo
materializa-se através da subjugação de todas as áreas e actividades da
sociedade às leis de mercado, sejam aquelas de ordem social, política,
cultural, educativa ou outra. É a política subjugada à economia. É esta a
“refundação” idealizada por Passos Coelho. É esta a sua ‘bíblia’. Logo, os seus
mandamentos estendem-se naturalmente a todas as áreas de governação.
No
que respeita à Educação, as medidas propostas pelo governo para reduzir os
encargos (e gulosamente apoiadas pelo FMI!) são de tal modo gravosas, que daqui
só podemos esperar a aniquilação, por completo, da escola pública, e com ela o
fim de uma educação democrática, plural e inclusiva. Aliás, logo no inicio do
relatório, mais concretamente, no designado “Resumo Executivo”, esse cardápio está
bem exposto[2].
De
nada têm servido os pareceres e estudos feitos por organizações ou entidades
altamente credenciadas, tal como a OCDE ou a Association for the Evaluation of Educational Achievemente, só para dar dois exemplos, que têm vindo a público certificar
a qualidade e a excelência da escola pública. Aliás, esta última veio desmentir
os dados avançados pelo relatório do FMI, no que respeita à Educação, tendo
constatado um escamoteamento feito às conclusões de um grupo de trabalho do próprio
Ministério da Educação e da Ciência (MEC), sobre os custos de um aluno do
ensino público vs privado. Ao contrário do propagandeado pelo governo (com o
apoio de alguma comunicação social!) esse grupo de trabalho concluiu que a
despesa de um aluno no privado é maior do que no público! Por cá, o governo de
Passos Coelho, e o ministro da Educação em particular, têm feito (convenientemente)
tabula rasa de estudos académicos[3],
dos pareceres do Conselho
Nacional de Educação, assim como, imaginem só, dos dados recolhidos
pelo próprio MEC relativos à Avaliação Externa das Escolas! O objectivo é
claro: destruir a escola pública para servir interesses privados. Para tal, o
governo tem-se apressado em implementar um conjunto de medidas, que têm como
resultado mais imediato, o despedimento de dezenas de milhares de professores.
Falamos de cortes orçamentais cegos na Educação, do aumento do número de alunos
por turma, do aumento da carga lectiva, da descaracterização do currículo ou então
dessa irracionalidade, dessa aberração que representa a criação dos chamados
mega-agrupamentos. Sobre estes, e por enquanto, tenho apenas a dizer que do
processo obscuro e atabalhoado de que têm resultado, ao menos que resulte na
manutenção das direcções de escolas competentes e na extinção das que não o
são!
[1] CARRILHO, Manuel Mª (2013). A Bíblia de Passos. Diário de Notícias,
18 de Janeiro de 2013.
[3] Um estudo da Universidade
Porto, que analisou o percurso académico de 4280 estudantes admitidos no ano
lectivo 2008/09, conclui que as escolas públicas preparam melhor os alunos para
terem sucesso no ensino superior.
2 comentários:
Parabéns Rui por mais um excelente post. Pela facilidade de escrita, penso que em breve começarás a publicar os teus escritos em livros e a seres conhecido, pelo menos, nacionalmente.
Obrigado pelas amáveis palavras, mas não tenho essa pretensão. Quero mais! Quero ser conhecido mundialmente!
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