Tem sido interessante e deleitosa a profusão de artigos e comentários televisivos e radiofónicos, que têm proliferado sobre as recentes eleições nos EUA. Refiro-me, em concreto, àqueles que vaticinam um futuro sombrio aos candidatos democratas vencedores, em especial, a Zohran Mamdani, devido às políticas que defendem para os seus territórios. Tais ilustres analistas apostam todas as fichas no seu descalabro. Do lado de cá do Atlântico, numa lufada de ar despoluído, lembro a vitória do democrata Rob Jetten, nas recentes legislativas dos Países Baixos, que apostou num discurso optimista, por oposição ao ódio e rancor do seu principal adversário, Geer Wilders, líder da extrema-direita holandesa.
Ainda antes da sua vitória em Nova Iorque, Mamdani já era rotulado de “comunista” por Donald Trump. O presidente dos EUA, bem ao seu estilo arruaceiro, não poupou nas críticas ao democrata, onde não faltaram as ameaças de cortes de financiamento à cidade que nunca dorme, caso este vencesse. De nada lhe valeu a investida. Acredito mesmo que teve o efeito contrário.
A vitória dos democratas estendeu-se aos estados de New Jersey e da Virgínia, com a eleição para governadoras de Mikie Sherill e Abigail Spanberger, respectivamente. Ambas centraram as suas campanhas no aumento do custo de vida, focando-se no impacto da inflação em áreas como a habitação e a alimentação. Sherill diria mesmo que “A liberdade por si só não é suficiente se o governo tornar impossível alimentar a sua família, obter uma boa educação ou conseguir um bom emprego”. Spanberger, para além do referido elevado custo de vida, denuncia a falta de escolas e hospitais nas vastas regiões rurais da Virgínia, assim como de habitação. Uma posição muito próxima de Mamdani.
Centrando-se no custo de vida, o novo mayor de Nova Iorque, uma cidade cuja renda média ronda os €4000 e uma creche custa metade disso, propôs o congelamento das rendas controladas, creches e autocarros gratuitos, financiado por um mísero aumento de 2% nos impostos dos multimilionários. Mamdani, que se afirma socialista democrata, quer mercearias sob controlo municipal e taxar mais os bairros de população maioritariamente branca do que os restantes, por via do imposto sobre a propriedade. Para vencer, Mamdani não precisou de recorrer à gritaria ou à manipulação nas redes sociais, de que é useiro e vezeiro Trump e seus apaniguados. Apostou, sim, nas medidas revolucionárias atrás descritas. Fê-lo criticando o nacionalismo, a intolerância, a especulação imobiliária, a promiscuidade do governo com os senhores das tecnológicas, sobre os abusos de poder sobre a liberdade e a democracia. Fê-lo com um discurso próximo do do socialismo europeu ou da social-democracia, como preferirem. Boa parte do que propõe existe pela Europa adentro. Só que a defesa do que se aproxime de um Estado social redistributivo é, nos dias que correm, um ultraje.
Hoje, assumir-se “socialista” ou até de “esquerda” equipara-se ao incómodo de dizer-se de “direita” nos tempos imediatos ao 25 de Abril. Nessa altura as pessoas tinham vergonha ou medo de o afirmar, pois tínhamos acabado de sair de uma ditadura de direita, de quase meio século. Hoje temos um líder de um partido de extrema-direita que, de forma desavergonhada, invoca não um, mas três Salazares.
O candidato presidencial António José Seguro, depois de muita pressão dos jornalistas, de hesitação e rodeios, lá acabou por se se afirmar como sendo de uma esquerda “moderada e moderna”. Apressei-me a procurar o seu significado em enciclopédias, mas nada encontrei. Talvez se trate um novo movimento vanguardista que me tem passado despercebido!
Voltando a Mamdani, Daniel Oliveira lembrava que o democrata nova-iorquino “Venceu porque não teve medo de dar esperança, essa arma subversiva contra um desalento que definha a democracia, paralisa o povo e engorda a extrema-direita [e já agora, a direita que a ela se encosta]. Quando a esquerda perceber que é disso, e não da gestão cínica da derrota, que as pessoas têm fome, talvez volte a existir.” (Expresso, 7/11/2025)