terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Os tempos que se seguirão

Sou mais um dos que contribuíram para que o livro “A peste”, de Albert Camus[1], se tornasse num bestseller de 2020. Publicado pela primeira vez em 1947, este é mais um dos clássicos da literatura intemporal. Face aos acontecimentos que temos vivido desde inícios de Março, a obra torna-se indubitavelmente actualíssima. Tal como muitos outros leitores, não resisti à pulsão e à curiosidade em conhecê-la, levado que fui pelas sugestões que fui ouvindo aqui ou ali.
Trata-se de um romance histórico que narra uma terrível peste que assolou a cidade argelina de Orão na década de 40 do século passado. Albert Camus descreve a resistência e a resiliência do ser humano ao longo de um extenso período de quarentena. Narrado na perspectiva de um médico envolvido nos esforços para conter a doença, o Dr. Bernard Rieux, o autor ressalta a solidariedade, a solidão, a morte e outras questões fundamentais para a compreensão dos dilemas do ser humano.
Ao ler o livro é impossível não fazer um paralelismo com a situação pandémica que estamos a atravessar. Apesar de ficcionada, a história de Camus é inspirada num acontecimento real, a saber, uma epidemia de cólera ocorrida na mesma cidade, mas um século antes, mais precisamente, em 1849. Salvo as devidas diferenças entre as doenças em questão, os contextos históricos e sociais e o grau de dramatismo, certo é que muitos pontos em comum poderão ser aferidos. E é a questão comportamental e das relações humanas que me importa particularmente aflorar, de forma sucinta.
Num cenário de guerra marcado pelo confinamento, pelas restrições de circulação, pelo racionamento de bens essenciais, pela separação familiar e de amigos, por um sistema de saúde débil e ao qual a epidemia não dá tréguas, a população de Orão entra num estado emocional que experimenta uma multiplicidade de sentimentos, por vezes contraditórios, que vão desde o sofrimento e a loucura por uma lado, e a indiferença ou letargia por outro. Mas também registam-se casos manifestos de resiliência, compaixão e solidariedade. Ao longo do livro Camus vai fazendo descrições quer dos personagens principais, quer da população em geral, bem como do ambiente vivido nessa cidade. Assim, a páginas tantas podemos ler que a peste lhes retirara o poder do amor e o da amizade (p. 156). Que a população vivia um longo sono, que a cidade estava povoada por “adormecidos-acordados” (p. 157). Que as pessoas “compartilhavam as agitações pueris da cidade. Perdiam as aparências do senso crítico, ao mesmo tempo que ganhavam as aparências de sangue-frio” (p.158). Ainda mais próximo daquilo que presentemente vivemos, Camus fala-nos das contradições dos habitantes que “ao mesmo tempo que sentem profundamente a necessidade de calor que os aproxima, não podem, contudo, entregar-se-lhe por causa da desconfiança que os afasta uns dos outros” (p. 170).
Depois de um longo e penoso período, a peste decide, quase que por milagre, abandonar a população de Orão de um momento para o outro. Mas algo irá permanecer, segundo relata o narrador. A retirada brusca da doença não tornou os habitantes menos relutantes, nem se apressaram em regozijar-se. A prudência mantinha-se. Lembravam-se que a rapidez com que ela partiu foi a mesma com que surgiu, e que não estariam, por isso, livres de que ela pudesse voltar num futuro mais ou menos longínquo. Apesar dos festejos que naturalmente acabaram por acontecer, nalgumas pessoas a peste “tinha enraizado um cepticismo profundo, de que não podiam desembaraçar-se” (p. 229).
Veremos os tempos que se seguirão ao pós-COVID-19. Veremos se alguns dos actuais comportamentos se manterão, mas acima de tudo as consequências que trarão, sobretudo a nível das relações humanas. Pois, se alguns deles são justificáveis e até recomendáveis, outros há, que tenho registado para memória futura, que são incompreensíveis e que menosprezam os seus efeitos presentes e futuros.
No seu livro “Este vírus que nos enlouquece”, Bernard-Henri Lévy[2] manifesta precisamente o receio de que alguns dos gestos e comportamentos a que vamos assistindo, e sobre os quais já me debrucei em recentes artigos, venham a perdurar no tempo, depois do fim da pandemia.

[1] CAMUS, Albert (2016). A peste. Livros do Brasil.

[2] LÉVY, Bernard-Henri (2020). Este vírus que nos enlouquece. Guerra & Paz.