quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Uma Educação Visual para o entendimento da Cultura Visual

Conceitos como os de Sociedade da Comunicação, Sociedade da Informação, Sociedade do Conhecimento, Sociedade Tecnológica ou Sociedade da Imagem, são, por vezes, utilizados e/ou associados ao mundo das imagens em que as sociedades ditas mais desenvolvidas estão imersas. Este universo de imagens, também designado de iconosfera, resume-se àquilo que alguns autores apelidam de Cultura Visual. Num sentido lato, os objectos da cultura visual vão desde os produtos artísticos ou artefactos (que podem ser encontrados em diferentes espaços), até àqueles que são permanentemente veiculados pelos media, e que podem ou não constituir objectos artísticos. Para Fernando Hernández (2002: 114), a cultura visual constitui um universo de significados, e “está relacionado com os factos visuais nos quais a informação, o significado ou o prazer é registado pelo consumidor num artefacto com a tecnologia visual”.
O desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, e com ele a torrente de imagens que chega à grande maioria dos cidadãos de forma aleatória e desordenada, acabaria por ter consequências na transformação das sociedades, num mundo que se diz globalizado.
A avalanche de imagens que nos chega, sobretudo através dos media, condiciona a nossa compreensão e as nossas escolhas. O volume, a sucessão e confusão de imagens, bem como a velocidade a que são transmitidas, baralham-nos, confundem-nos, levando-nos, às vezes, a tomar as opções menos acertadas, pelo simples facto de termos tomado decisões de forma irreflectida. No entender de Eduarda Coquet (2002: 180), “somos consumidores compulsivos de imagens, procurámo-las por toda a parte, e quantas mais vemos, mais queremos ver. Quanto mais diversificadas, mais diferentes, mais sofisticadas, mais apelativas elas são, mais nos deixamos manipular por elas”. Face a este fenómeno, “a criança não é capaz – nem a pessoa adulta – de diferenciar e canalizar devidamente, e de acordo com os seus interesses, toda a informação”, pois frequentemente, “a quantidade transforma-se em ruído” (Miralles, 2002: 32).
A televisão é, sem dúvida, o meio audiovisual que resume o maior universo de imagens veiculadas a todo o momento. Isabel Marcelino (2000: 45) acredita que “a proliferação de imagens atrofia a nossa imaginação e conduz a um certo estado de desorientação, e mesmo de esquizofrenia”. Pois, segundo a autora, as imagens televisivas acabam por ocupar o espaço destinado àquelas que cada um de nós tem para criar, uma vez que somos seres dotados de imaginação e capacidade de criação. Mais preocupante se torna quando nos apercebemos que a informação imagética que prolifera e domina os órgãos de comunicação social, reproduz, como defendem Sérgio Grácio e Emília Nadal (2001: 43), “apenas aspectos da realidade e manipula imagens fabricadas pelas próprias tecnologias, esbatendo as fronteiras entre o real e o virtual, o verdadeiro e o falso”. É este esbater ou confundir de fronteiras que torna preocupante a forma como a cultura e a comunicação visual são assimiladas pelos cidadãos, merecendo, por isso, uma reflexão cuidada e profunda, e um repensar do papel da escola e da educação.
São várias as estratégias utilizadas na cultura visual ou, para sermos mais precisos, pela cultura visual, para aliciar, seduzir e convencer os cidadãos. Todo o investimento feito na promoção e divulgação de um determinado produto tem por detrás, e na maior parte das vezes, profissionais que sabem como convencer o público a adquiri-lo. O produto é envolto de uma espécie de magia que encanta o sujeito pela imagem e envolvência projectadas. Esta cultura visual, profusamente difundida pela comunicação social, e em particular pela comunicação visual, circunda e atinge os mais incautos, os menos preparados para compreender este caudal de imagens. Queremos naturalmente frisar que o que está aqui em causa são os aspectos negativos que resultam de uma incompreensão e incapacidade de avaliação séria e objectiva dos efeitos negativos de uma cultura visual, que, se por um lado sobrevaloriza os valores estéticos, por outro transfigura as identidades culturais.
Esta visão crítica da cultura visual, e de certa forma das sociedades pós-modernas, manifesta uma preocupação com o rumo que a construção social e a construção de identidades têm seguido. Se é verdade que o império de imagens tem fomentado a designada “estetização” (Cf. Melo, 2002: 62-63) ou cultura esteticista, também não é menos verdade que tais fenómenos não são sinónimos ou promotores de maior competência estética por parte do cidadão. Pelo contrário, Dmitry Leontiev, em reflexões feitas acerca do público que consome os diferentes géneros de arte, afirma que a grande parte daquele se situa num nível inferior de competência estética. No seu entender, “a indústria da cultura de massas contribui grandemente para a manutenção deste nível dentro das massas, produzindo obras de arte que exigem apenas um nível muito primitivo de competência” (Leontiev, 2000: 133). O autor chama a estas obras de arte de «quase-arte». Em vez de despoletar uma análise crítica, questionadora ou reflexiva no sujeito – e assim ser capaz de exercer efeitos na sua personalidade –, a «quase-arte» limita-se, no entender daquele autor, a agradar ou a chocar as emoções pessoais. Verificamos, portanto, uma sobreposição do emocional sobre o racional.
Tomando em linha de conta as reflexões de Isabel Calado (1994), através de uma alfabetização visual dos alunos poderemos dotá-los de competências que lhes permitam mover-se no mundo que os envolve, manifestando um comportamento consciente e interveniente. São pedagogias activas, adaptadas a cada contexto, que se exigem para que efectivamente levemos a cabo uma educação visual que proporcione aquela ou outra alfabetização visual; que permita aos alunos a compreensão e domínio de uma gramática e linguagem visuais, enfim, que os dote de competências de leitura desse universo que até ao momento temos ventilado.
Entretanto, reconheçamos que a aprendizagem e o exercício das linguagens artísticas, ou simplesmente visuais, requerem o conhecimento de técnicas e gramáticas específicas que permitam quer a livre expressão do sujeito, quer o desenvolvimento da sua imaginação, da sua criatividade, e a aquisição de competências que lhes sejam preciosas para o seu dia-a-dia. A gramática da imagem deve, de uma vez por todas, e hoje mais do que nunca, ser colocada ao nível de destaque que outros campos do saber desfrutam. O próprio professor deve fazer por dominar minimamente essa gramática, pois, caso contrário, correrá o risco de “não ser capaz de usar uma linguagem com que os seus alunos mais se defrontam no espaço exterior à escola – o da vida” (Calado, 1994: 50).
A nosso ver, a educação visual não pode, nem deve, tal como na origem do conceito, limitar-se à simples análise ou reprodução dos elementos formais ou estéticos que compõem as formas, ignorando uma realidade polifórmica que nos envolve. Perante o universo visual existente, para o qual confluem produções artísticas, mediáticas ou outras de natureza imagética, uma educação visual deverá ter como uma das prioridades o estudo da cultura visual, nos diferentes contextos sociais e culturais em que ela se desenvolve. Importa compreender de que forma o público, em especial os mais jovens, assimila essa cultura visual presente em jogos de vídeo, na televisão, na Internet, filmes ou em outros suportes; que impacto tem no comportamento, nas representações ou na construção da identidade desses jovens. Numa sociedade que frequentemente se designa de informação, o professor de Educação Visual tem por missão desenvolver nos alunos as capacidades necessárias para que ele possa, de forma autónoma, interagir com o envolvimento cultural e icónico que o circunda.
A Educação Visual não pode ignorar a cultura visual, nem a influência que esta exerce na construção de identidades – uma construção, sabemos, que se faz tendo em conta as influências de entornos socioculturais e dos significados que o sujeito deles extrai. Significados esses que se podem retirar da arte ou dos artefactos da cultura visual, e que de certa forma traduzem modos de pensar, de comunicar e, até mesmo, de produção científica. São, por isso, essenciais à compreensão das sociedades e da cultura geral. Como destaca Fernando Hernández (2003: 47), “devemos assumir a cultura visual como um campo de estudo, um objectivo para a compreensão crítica do papel e das suas funções sociais, bem como das relações de poder às quais se vincula”. O desenvolvimento da percepção visual faz-se, então, pelo estudo de duas componentes que interagem: as qualidades estéticas do objecto ou imagem e o seu enquadramento histórico, social, cultural ou político
A defesa de um ensino da leitura analítica da imagem, o fomento de uma atitude crítica e questionadora do sujeito fazem-nos repensar o papel da escola e das medidas e práticas pedagógicas que nela deverão ser tomadas. Uma das prioridades estará certamente em começar por aproximar as crianças e jovens do mundo da arte e da imagem para que se tornem espectadores e interlocutores activos e conscientes. Logo, o professor tem como desafio proporcionar as condições e meios necessários para que os alunos desenvolvam um comportamento que tenha em consideração a análise cultural, o juízo moral e a reflexão que as imagens tendem a ocultar. A educação visual deve, por isso, ir para além dos seus domínios estritamente expressivo e artístico, abarcar os que são próprios da imagem e da cultura visual.

BIBLIOGRAFIA

CALADO, Isabel (1994). A utilização educativa das imagens. Porto: Porto Editora.

COQUET, Eduarda (2002). “A ilustração tridimensional (as imagens que querem fugir dos livros)”. In Leitura, Literatura Infantil e Ilustração. Braga: Centro de Estudos da Criança/Universidade do Minho, pp.174-182.
GRÁCIO, Sérgio & NADAL, Emília (2001). “Modos diferenciados de aprender e saberes do futuro”. In Carneiro, Roberto (Coord.). O futuro da educação em Portugal: tendências e oportunidades. Um estudo de reflexão prospectiva. Tomo III. Lisboa: Ministério da Educação, pp. 40-114.
HERNÁNDEZ, Fernando (2002). “Repensar el papel del arte en la educación desde una cultura llena de imágenes”. In Huerta, Ricardo (Ed.). Los valores del arte en la enseñanza. Valencia: Universitat de Valencia, pp. 113-117.
HERNÁNDEZ, Fernando (2003). “Educación y cultura visual: repensar la educación de las artes visuales”. In Vários. Figuras, formas, colores: propuestas para trabajar la educación plástica y visual. Barcelona: Editorial Graó, pp. 45-50.
LEONTIEV, Dmitry (2000). “Funções da Arte e da Educação Estética”. In Fróis, João Pedro (Coord.). Educação Estética e Artística: abordagens transdisciplinares. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 127-145.
MARCELINO, Mª Isabel (2000). Da palavra à imagem. Porto: Edições Asa.
MELO, Alexandre (2002). Globalização Cultural. Lisboa: Quimera.
MIRALLES, Sebastiã (2002). “Arte y educación hoy, carrera hacia una libertad condicionada”. In Huerta, Ricardo (Ed.). Los valores del arte en la enseñanza. Valencia: Universitat de Valencia, pp. 27-32.