segunda-feira, 27 de março de 2017

Que aluno, que cidadão, que sociedade queremos?

Com o despacho nº 9311/2016, de 21 de Julho, o Ministério da Educação (ME) criou um grupo de trabalho, coordenado por Guilherme de Oliveira Martins, a fim de elaborar um documento que viria a designar-se por “Perfil dos alunos à saída da Escolaridade Obrigatória”, e que representa a base para a definição das aprendizagens essenciais e flexibilização do currículo. O documento esteve em consulta pública até 13 de Março, abrangendo alunos, professores e diversas entidades, tendo daí resultado vários contributos, especialmente através de pareceres. Mas antes de me debruçar sobre estes, convirá apontar o propósito que nele perpassa.
Um dos atributos que lhe tem sido consignado é o de ser “marcadamente humanista”. Um perfil, como podemos ler no prefácio do documento em questão, que considera “uma sociedade centrada na pessoa e na dignidade humana como valores fundamentais”. Esclarece-se ainda que o propósito não é o de tentar uma uniformização, “mas sim criar um quadro de referência que pressuponha a liberdade, a responsabilidade, a valorização do trabalho, a consciência de si próprio, a inserção familiar e comunitária e a participação na sociedade que nos rodeia”, com vista a “criar condições de equilíbrio entre o conhecimento, a compreensão, a criatividade e o sentido crítico (…), de formar pessoas autónomas e responsáveis e cidadãos activos”. De modo a trabalhar para este desiderato, de preparar o aluno para a complexidade do mundo, proporcionando-lhe as condições e meios necessários para desenvolver as competências que lhe permitirá aprender ao longo da vida, o Perfil elenca um conjunto de princípios, valores e competências-chave, que vale a pena consultar no sítio do ME.
O Director do Departamento de Educação e Competências da OCDE, Andreas Schleicher, que acompanhou a equipa que, ao longo de meses, elaborou o “Perfil dos Alunos”, esteve em Portugal na sua apresentação, ocorrida no dia 11 de Fevereiro. Em sintonia com o documento, Schleicher defendeu que o ensino não se pode limitar à mera transmissão do conhecimento académico ou reprodução de matérias, mas sobretudo numa formação integral, assente em valores como a perseverança, resiliência, consciência, ética, coragem e liderança. Como sublinha, “as competências sociais, o pensar de forma diferente e a criatividade são determinantes”. Para tal, recomenda a flexibilização do currículo, no sentido de favorecer o trabalho experimental, interdisciplinar e de projecto.
O ME ainda não fez o balanço da consulta pública do projecto/documento em questão, até porque aguarda por mais pareceres, como o do Conselho Nacional da Educação, e também porque ainda estão em curso sessões de esclarecimento e auscultação com as confederações de pais, associações de directores e outros organismos. No entanto, dos pareceres já tornados públicos, a maioria coincide na conclusão de que a sua aplicação recomenda, naturalmente, ajustamentos em programas, currículos, cargas horárias das disciplinas, calendário escolar, modelo de avaliação, etc., e ainda a libertação dos professores da carga burocrática a que estão sujeitos.
Um precioso contributo chegou das associações de professores que representam a generalidade das disciplinas do ensino básico e secundário, através de uma carta conjunta. Embora não deixando de fazer recomendações, o parecer é globalmente positivo. Logo no primeiro parágrafo, a carta é clara no seu apoio ao projecto do Perfil, quando sublinha que, “se o sentido da educação é preparar os jovens para lidar com os problemas inerentes às sociedades multiculturais e tecnológicas (…), deve dotá-los, por um lado, de um domínio acrescido de competências emocionais, sociais, interculturais e de gestão da informação e, por outro, de maior capacidade de adaptação e de flexibilidade para solucionar problemas mobilizando conhecimentos, ferramentas e aplicações que se multiplicam em permanente evolução”. Entre outras questões, destacam o papel e a importância de todas as áreas disciplinares no incremento dos valores e competências assinalados no Perfil, e o trabalho interdisciplinar.
Na passada quarta-feira, dia 23, durante uma sessão de esclarecimento para jornalistas, o ministro da Educação garantiu que a gestão flexível do currículo, ou como prefere chamar, a “flexibilização pedagógica”, irá avançar no próximo ano lectivo nalgumas escolas, através de um projecto-piloto, abrangendo apenas os 1º, 5º, 7º e 10º anos.
Mas para que o documento do Perfil não passe de uma carta de boas intenções, urge resolver um outro problema que encalha todo o processo. Trata-se do actual modelo de gestão escolar. Fica bem evocar o interesse dos alunos, mas depois, e na prática, verifica-se que nem tudo concorre para esse fim. 
De modo genérico, o documento do Perfil eleva a necessidade da Escola contribuir para formar cidadãos críticos, responsáveis, autónomos, interventivos, recomendando ao mesmo tempo uma pedagogia participativa e democrática. Ironicamente, tudo isto num espaço que funciona em sentido contrário! Hoje temos nas escolas um órgão unipessoal, na figura do director, escolhido por um pequeno grupo de intervenientes/interesses, em detrimento da eleição pela comunidade escolar. Ora esta forma de governo presta-se a todo o tipo de arbitrariedades. O actual modelo de gestão pouco tem de democrático. O Conselho Pedagógico foi desvalorizado. Na prática deixou de ser consultivo para passar a ser “auditivo”, esvaziado de competências de decisão. Os seus membros praticamente não são tidos nem achados, como aliás acontece com a generalidade dos professores. Tudo isto afecta indiscutivelmente a motivação e entrega destes profissionais, que é condição sine qua non para qualquer reforma educativa que se queira pôr em prática.