terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Do berço à universidade e mais além

Com um título bastante sugestivo, “Os ‘pais-helicóptero’ já chegaram à universidade”, o Expresso publicava, no seu número de 10 de Novembro, um artigo sobre a ingerência crescente dos pais na vida académica dos seus filhos. Não sendo, de todo, surpresa para mim, assim como, julgo eu, para a generalidade dos professores dos vários níveis de ensino, o artigo em questão não deixa de revelar algumas curiosidades. Entre outros testemunhos, nele são apresentados relatos de professores universitários, que são contactados pelos pais dos alunos, especialmente através de correio electrónico, para fazerem as mais variadas, e até insólitas, reclamações.
As intromissões passam pela reclamação de notas, pela falta de vagas numa disciplina opcional, pela não equivalência em determinadas disciplinas, etc. Passam igualmente pela manifestação da preocupação com o bem-estar dos filhos, onde não faltam, pasme-se, sugestões para uma melhor integração social dos noviços, ou então uma apreensão com a empregabilidade do curso escolhido!
Vários professores universitários têm manifestado perplexidade e preocupação com a diminuição da maturidade dos seus alunos, em comparação com gerações anteriores, que, dizem, tem-se vindo a acentuar nos últimos anos. Notam-no sobretudo no comportamento manifestado durante as aulas, mais característico da adolescência. A directora dos Serviços de Gestão do Ensino do ISCTE testemunha isso mesmo, relatando que o problema começa logo nas matrículas e se estende ao longo do ano lectivo. Conta que os alunos não são capazes de tratar de situações simples, revelam falta de maturidade e autonomia, menor capacidade para tomar decisões ou de lidar com o imprevisto ou a adversidade, e daí a presença constante dos pais.
Esta tendência de controlo dos pais não é de agora, vem de trás. No referido artigo, a socióloga Lia Pappamikail, investigadora do Observatório Permanente da Juventude da Universidade de Lisboa, salienta que o envolvimento parental na vida escolar dos filhos tem aumentado nas últimas décadas, proporcionalmente ao crescimento da importância social atribuída às qualificações e da habilitação média dos pais. São ainda apresentados indicadores estatísticos que confirmam o acompanhamento parental até idades cada vez mais tardias. E, como o explica a socióloga Maria João Valente Rosa, as razões não são apenas económicas, mas também culturais, dando o exemplo da forma como são actualmente constituídas as famílias, sendo boa parte delas monoparentais. Certo é que este hiperproteccionismo não abona nada a favor do crescimento, da maturidade e da independência dos jovens, diminuindo-lhes a capacidade de enfrentarem os desafios da vida. O psiquiatra Daniel Sampaio toca neste problema, quando assevera que “Níveis exagerados de controlo parental traduzem-se, inevitavelmente, numa maior imaturidade, que os deixa menos preparados para lidar com a vida”.
Como o referi no início deste texto, a realidade aqui descrita não me causa surpresa, pela razão de a constatar no meu quotidiano profissional, no ensino básico e secundário, desde há muito. Mas o que mais me preocupa é o entorpecimento a que assisto à minha volta, ao “assobiar para o lado” de todos ou quase todos, de cima a baixo, enquanto o problema se agrava, receando mesmo que se chegue a um ponto de não retorno. O melhor exemplo que posso dar prende-se com a avaliação pedagógica. Hoje, um professor de uma qualquer disciplina, na hora de atribuir uma nota a um determinado aluno, tem de estar preparado para um provável escrutínio por parte dos seus colegas, em conselho de turma, acerca da seriedade da sua avaliação, mormente por recearem uma eventual reclamação da parte do respectivo encarregado de educação. Sobretudo se a nota for negativa. Portanto, o ónus da prova recai, não no aluno que não teve um desempenho que se impunha, mas, sim, no professor! Isto faz franzir o sobrolho sobre o grau de confiança entre colegas! Daí que não poderia estar mais de acordo com Paulo Guinote, quando diz que a avaliação dos alunos “não passa de um enorme atestado de desconfiança em relação ao trabalho dos docentes, à sua competência pedagógica e à sua autonomia profissional.” (JL, nº1387) Os alunos, independentemente da faixa etária ou nível de ensino em que se encontrem, só poderão amadurecer, é este o termo, se forem confrontados com as vicissitudes da vida. Quanto mais tarde os pais tomarem consciência desta evidência, pior será para o futuro dos seus filhos. É disso que nos dá conta Raquel Varela, professora universitária, quando partilha as seguintes palavras: “Quando falo com os meus filhos sobre a importância fundamental da Escola explico-lhes que há essencialmente duas formas de aprender na vida: apoiando-nos no que os nossos melhores professores, pais e mestres nos ensinaram – e eles vão transmitindo o saber acumulado ao longo da história da humanidade – ou às custas dos nossos erros individuais, por tentativa e erro, ou seja, caindo, sozinhos. E meditar sobre a dor.” (Jornal i, 28/01/2023)

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O tempo dos necrófagos e profetas

O conhecimento público de uma investigação do Ministério Público na passada terça-feira, dia 7, a envolver o Primeiro-Ministro, do qual resultaria a apresentação da sua demissão, apanhou muita gente com as calças na mão, incluindo os líderes partidários. Imagino o pasmo de alguns deles, tomados pelo inesperado acontecimento e ainda a digerir as sondagens sobre os índices de popularidade que lhes têm sido pouco abonatórios. A extrema-direita, cheia de rabos-de-palha, regozija-se ao ver uma oportunidade para levantar ainda mais alto uma das suas bandeiras, o combate à corrupção, e surfar a sua onda de demagogia. Imagino a atmosfera radioactiva que estará a contaminar as redes sociais, onde reinará o discurso justiceiro. Certo é que os tiros nos pés já começaram na luta pela pole position, com líderes a precipitarem-se em comunicados e conferências de imprensa. Uns com pose de estadista, já em jeito de campanha, outros de rosto angelical e ufano, mal disfarçando o sorriso rufia, mas ambos a salivar e ensaiando o canto de sereia. Sobram os adultos, os mais avisados e sensatos. Entretanto, o PS terá no curto prazo de escolher o seu próximo líder, que irá disputar as próximas eleições.
As casas de apostas multiplicaram-se de uma forma exponencial, que nem cogumelos. Os julgamentos e as condenações nos média já estão em curso. Os comentadores de serviço, munidos das cartas de Tarot, acotovelam-se para preparar o epílogo deste filme de acção. O enredo já está criado, os personagens já são conhecidos e a banda sonora (ruidosa) já se faz ouvir. Os efeitos especiais estarão a caminho.
Ora reza a história que António Costa demitiu-se, depois de “surpreendido” com uma nota da Procuradoria-Geral da República (PGR), dando-o como alvo de um inquérito-crime no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). O caso envolve figuras próximas do Primeiro-Ministro (PM), entre os quais João Galamba, num processo que envolverá corrupção, tráfico de influências e prevaricação.
No momento em que António Costa decidiu segurar Galamba em Maio deste ano, abrindo assim uma crise institucional entre governo e Presidência da República, de pronto a espada de Dâmocles ficou pendida sobre a sua cabeça. Por ironia do destino, a “bomba atómica”, à qual Marcelo aludira em discurso oficial e em entrevistas, acabaria por ser largada pelo Ministério Público. Bastou, para tal, que este convencesse a PGR a elaborar um comunicado, dando conta que o STJ abriu um inquérito ao PM. Ouvidos os partidos e o Conselho de Estado, o Presidente da República (PR) comunicou ao país, no dia 9, a decisão de convocar eleições antecipadas para o dia 10 de Março de 2024. Anunciou ainda que a votação final global do Orçamento do Estado ocorrerá no final deste mês, dia 29, de modo a garantir a aprovação de várias medidas, para assegurar o máximo de “estabilidade económica e social” e não comprometer a execução de metas do PRR. No mesmo comunicado, e numa alusão ao processo judicial que envolve o nome do PM, o PR pediu respeito pela presunção de inocência enquanto durar o processo e recomendou celeridade à Justiça.
Num país onde a vox populi não entende, nem se preocupa em entender o que significa a presunção de inocência, a palavra “suspeito” logo é equiparada à de “culpado”, seguindo-se a incontinência das populares expressões, “são todos iguais!” ou “o querem é mamar!”, dando assim conta da sua elevada cultura cívica, ética e política. Há quem perspective fugas de informação a conta-gotas sobre o processo judicial até ao dia das eleições, o que não tem nada de surpreendente! Este seria o melhor tónico para alimentar a retórica populista. Corre-se o risco de a agenda e o debate político serem infectados com o tema da corrupção, tirando espaço e destaque à discussão dos programas eleitorais de cada partido. Antevê-se uma luta partidária decorrida sobre um ambiente de suspeição, ao qual não escapará o poder judicial. Não é por acaso que vários ilustres democratas, e em consonância com o PR, têm vindo a público alertar para a necessidade do processo que alegadamente visa o PM ser célere e transparente, para que todos os cidadãos sejam esclarecidos, de forma contundente, sobre o que motivou este inquérito, que lançou o país numa crise política. E que tal se faça não tanto pela situação do PM, mas pela defesa da democracia e do Estado de direito. Seria comprometedor os portugueses chegarem ao dia das eleições sem poder aferir devidamente das suspeitas levantadas sobre a governação de um dos maiores partidos da democracia portuguesa. Esperemos que a uma crise política não se soma uma crise na justiça, pois aí estaríamos perante uma crise de regime.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

A falta de professores. Sobretudo dos “principais”!

As notícias sobre a falta de professores no ensino básico e secundário, nalgumas disciplinas, têm sido, infelizmente, recorrentes. É um problema sério, com um horizonte que não augura nada de bom. O número de docentes que se têm formado anualmente está muito longe de compensar os que se estão a aposentar. Nem as medidas agora avançadas pelo governo apontam para uma resolução eficaz, num prazo mais ou menos alargado. Diga-se, em abono da verdade, que a carreira de professor não consegue ser atractiva para os candidatos ao ensino superior. O nível de burocratização a que os professores estão sujeitos, a sua desqualificação por parte de governos e da sociedade em geral, as más condições de trabalho verificadas em muitas escolas e uma tabela salarial que não tem em conta as enormes responsabilidades, a carga de trabalho e as despesas que suportam (traduzido por miúdos, salários que não permitem ter uma vida estável, programada e, por isso, livre de freimas), de modo algum poderão seduzir os jovens, que terminam o ensino secundário, a enveredar por um curso de formação de professores. Poucos estarão dispostos a dar o corpo e a alma por uma profissão sujeita a todos os problemas que acabo de elencar, para além de outros, por muito vocacionados que se sintam.Imagino e compreendo o alívio dos pais que vêem os seus filhos com todos os professores presentes. Também há aqueles que, apesar de faltar um ou outro professor da turma, sentem também algum alívio por os seus filhos terem, pelo menos, os professores das “principais” disciplinas. E aqui chego ao que verdadeiramente motivou este texto.
Aqui há relativamente poucos anos, um sábio e esclarecido ex-ministro da Educação, que me escuso a nomear, não utilizava o termo “principais”, mas algo equivalente: “fundamentais”. Referia-se o dito governante às disciplinas de Matemática, Português, Ciências e pouco mais. Aquelas que vulgarmente se designam de “estudo”. Como se houvesse disciplinas em que não se tenha de estudar!
Ora este é um tema que já explorei em vários artigos e que já me fez perder a esperança de que algum dia isto mude, neste pequeno rectângulo banhado pelo Atlântico. Refiro-me, em concreto, à desvalorização das disciplinas de artes ou de ensino/educação artística por parte de sucessivos governos e pela sociedade em geral, ao contrário do que sucede, por exemplo, em países do centro e norte da Europa. O que as últimas décadas dão conta é das sucessivas reformas, melhor dizendo, remendos curriculares que acabam sempre ou quase sempre por penalizar as disciplinas artísticas, tidas, está visto, apenas como um adorno no currículo. Falo das Artes Visuais, da Educação Musical, da Dança ou Teatro. Estas duas últimas existentes em pouquíssimas escolas. Poderia juntar ao grupo, e bem, a Educação Física e a Educação Tecnológica, esta última nas ruas da amargura! E quando não são os governos a cortar-lhes na carga lectiva, reduzindo-as quase à insignificância, são os próprios directores, alguns deles, a fazê-lo de forma obsequiosa. O que dá conta da enorme sageza e mundividência destes gestores escolares para com esta questão, tal como para tantas outras!
É verdade que a falta de professores nestas disciplinas é coisa rara e circunstancial (por enquanto!), mas os meus 30 anos de serviço, passados por várias escolas, mais o que vou lendo e ouvindo, dão conta de que é algo que não tira o sono a muitos pais. O que interessa mesmo são as disciplinas “principais”! Pena é que muita gente não pare sequer um minuto para pensar e, perante o mundo distópico em que vivemos, se questione sobre quais as aprendizagens verdadeiramente prioritárias a considerar na educação dos jovens. Pena é que não se dêem conta de que o que tirou o homem das cavernas e o trouxe até à Inteligência Artificial se deu, em boa parte, graças à imaginação e à criatividade. Como dizia Dulce Maria Cardoso, “o criador encontra o que ainda não existe e apresenta-o ao mundo”. A escritora resume bem esta mentalidade lusa, de subvalorização daquele que tem a capacidade de criar, nestas breves palavras: “O menor respeito, ou desrespeito, que existe em relação à criação artística e aos criadores resulta de se considerar que a sociedade não sobrevive sem engenheiros, médicos, operários, agricultores, mas que seria possível sobreviver sem criadores, mesmo que isso correspondesse a uma sociedade estagnada em termos de progresso e imaginação”(JL, Ano XLIII, nº 1383). E de humanismo, acrescento eu.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Também sou candidato a presidente

Não à Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, mas à Presidência da República.
Se Marques Mendes, com pouco mais de metro e meio de altura, é candidato a candidato, eu, com 1,78m, porque não poderei sê-lo também? Dirão alguns que “um homem não se mede aos palmos”. Certo, mas também é inegável que, em tempo de campanha, e em especial nas arruadas, o facto de não precisar de usar calçado de salto alto dar-me-ia vantagem. Ou acham aceitável que um candidato, para se fazer notar, desfile por entre o povo empoleirado nos ombros de alguém, ou então num andor? Sobre essa desvantagem, que o diga Alberto João Jardim, que durante uma arruada na Madeira, numas eleições regionais, aqui há alguns anos, a dada altura perguntou, respeitosa e polidamente, pelo ex-líder do PSD, que se tinha perdido no meio da multidão, mais ou menos assim: “Onde está o gajo?”. Por outro lado, porque que é que, nesta corrida ao mais alto cargo da nação, o comentador da SIC não poderá ter como concorrente, um comentador do Notícias de Aguiar? Além do mais, embora não sendo eu conselheiro de Estado, nem ter acesso a uma privilegiada variedade de fontes de informação de que o próprio goza (pese embora a sua conhecida verborreia), sou mais certeiro nos prognósticos.
Quanto a Santana Lopes, que anda por aí, de olhos postos no céu a ver o que está escrito nas estrelas, pode ser que nas suas andanças acabe por se perder e termine algures nalguma noite branca. Sobre Rui Rio, uma fonte anónima, próxima do ex-líder do PSD, diz ser “prematuro estar a discutir o tema a 27 meses de distância das eleições presidenciais, porque isto é queimar uma hipótese” (Público, 6/09/2023). Rio parece apostado na prudência, jogando com o tempo, longe de fontes de ignição. A mesma bitola parece seguir Paulo Portas. Algo que também se poderia dizer de Passos Coelho, embora amigos próximos do ex-primeiro-ministro continuem a afirmar que a sua vocação é a governação ou, parafraseando António costa, ser um “fazedor”. Durão Barroso já veio confirmar que não é candidato. Pudera, perder dinheiro e a paz de uma reforma tranquila!? Só se fosse tolo!
Quanto à esquerda, os eventuais candidatos ainda são uma incógnita. Contudo, não representarão uma ameaça à minha candidatura. Desde logo porque poderão ser assediados para cargos bem mais aliciantes do que o de Presidente da República. Estou a pensar, por exemplo, e no caso do PCP, do eventual candidato acabar por ser convidado por Putin, para assumir o cargo de Ministro das Operações Especiais. António Costa, dizem as más-línguas, estará com um olho em Bruxelas. Augusto Santos Silva hesita entre concorrer à Presidência da República ou à sua junta de freguesia. O Bloco de Esquerda parece seguir a mesma prudência de Rui Rio, ou seja, não quererá precipitar-se, com o receio de queimar eventuais candidatos na praça pública.
Do lado dos offsiders a coisa também não se revela muito auspiciosa. Veja-se o caso do almirante Gouveia e Melo, cujo tiro de partida (com algum retardamento) acabou por atingir o próprio pé, com o episódio dos marinheiros que recusaram embarcar no navio Mondego. Ora nenhum (potencial) presidente da república quererá correr o risco de se confrontar com a deserção de assessores, conselheiros ou, pior ainda, da mulher das limpezas! Sobre Ana Gomes, paira a dúvida se ela estará disposta a pousar o taco de basebol, assim que (e se) receber algum chamamento da ala esquerda do PS, ou da esquerda à esquerda deste, para se candidatar. Sendo uma mulher versada, acredito que ela acredita que conseguiria conjugar as duas ocupações: a de comentadora-gladiadora com a de candidata. Mário Centeno é uma carta fora do baralho. Quanto a Guterres… é só fazer as contas.
Por fim, e a respeito da extrema-direita, muito provavelmente iremos suportar de novo com o jogral do costume, o Ventura, seguido pela sua tribo, a fazer do espaço público uma latrina. Do candidato megafone não faltarão as mentiras, demagogia, ilusionismo, gritaria, vitupérios, caça aos ciganos e imigrantes, enfim, o espectáculo grotesco do costume, para assim acicatar e embriagar a plebe.
A única razão que me levaria a desistir das presidenciais de 2026, era se o Tino de Rans voltasse a entrar na corrida. Com o seu hino de campanha, “Pão-pão-pão-pão-pão-pão, com manteiga é tão bom…” eu não teria a mínima hipótese de vir a sentar-me no trono de Belém, e aí clamar: veni, vidi, vici!

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Andanças pela Bolívia

Às 7h de 10 de Agosto, ao nascer do sol, alcancei o cume do Huayna Potosí, depois de ter largado o campo alto, a 5200m de altitude, e de 5 duras horas de ascensão, por um terreno misto de rocha, neve e gelo, num desnível de cerca de 900m. No dia anterior efectuara a subida desde o campo base, a 4700m, até ao referido campo alto. 
O Huayna Potosí, com 6090m de altitude e uma proeminência de 1130m, é um pico da Cordilheira dos Andes localizado na Bolívia, a 25 km da sua capital, La paz. Une a linha da Cordillera Real ao maciço de Mamacora Taquesi e do Condoriri, por uma cadeia de picos abruptos. O seu nome, em aimará (língua nativa falada por mais de dois milhões e meio de pessoas desta etnia, principalmente no Peru, na Bolívia, no Chile e na Argentina), significa "colina jovem" (Huayna: jovem; Potosí: colina).
Antes destes dias de montanha, e porque programara duas semanas de permanência na Bolívia, aproveitei para visitar o Lago Titicaca e o deslumbrante Salar de Uyuni. Dois lugares que certamente perpetuarão na minha memória. Mais do que as palavras, ficam as imagens.












quarta-feira, 12 de julho de 2023

Sobre rankings e outros devaneios

Acerca de quatro semanas, uma vez mais foi tornado público o ranking das escolas, para glose da imprensa e comentadores. Relembro que esta espécie de tabela classificativa apenas toma como referência a classificação obtida nos exames nacionais, feitos num curto espaço de tempo, que pode ir de 1h30 a 2h30. Muito se joga neste hiato de tempo. Ficam de fora factores determinantes no sucesso escolar do aluno, tais como a sua condição socioeconómica, explicações ou o meio envolvente no qual está inserida a escola. Para lá daquilo que advogam os que são a favor ou contra a divulgação dos rankings, é frequente o enviesamento consciente e propositado presente em muita da opinião publicada, a respeito deste tema. Daí que considero inconcebível o aproveitamento político-partidário para denegrir a Escola Pública, a favor do ensino privado. A propósito desta questão, há precisamente um ano, num texto com o título “Os rankings não avaliam as escolas”, Elvira Tristão denunciava esta especulação, da seguinte forma: “É pernicioso e redutor usar os rankings para uma certa construção social da excelência e do mérito. Esse exercício conduz a uma certa naturalização da iniquidade, porquanto todos sabemos que genericamente o desempenho dos alunos, dos professores e das escolas depende das características económicas, sociais e culturais do público que serve e do meio envolvente.” (Público, 14/07/2022). E é precisamente esta questão da iniquidade que levanta as mais legítimas preocupações, dado estarmos perante a subvalorização das desigualdades existentes entre alunos, que terá forçosamente repercussões na sociedade. É isto que nos assevera Paulo Guinote, quando salienta que “As desigualdades crescentes no desempenho dos alunos não se reduzem, mas explicam-se em muito pelas crescentes desigualdades existentes na sociedade portuguesa. […] O pior serviço que se pode prestar à Escola Pública é essa fabricação administrativa e artificial de sucesso.” Pois, como lembra, “A desigualdade educativa espelha a desigualdade socioeconómica do país (…).” (JL, nº1376). É o regime meritocrático a fazer o seu caminho, como um vírus que se espalha diligentemente na maior das branduras. Olhamos em nosso redor e vemos as coisas a acontecer naturalmente, sem obstáculos, de forma acrítica, sem cálculo dos riscos e consequências, que desde há muito se vão fazendo sentir, não só dentro da própria escola, como na sociedade. A meritocracia é, como afirma o sociólogo João Teixeira Lopes, “um conto de fadas, a nova moral. Endeusa os vencedores e martiriza quem falha, como se partíssemos todos de condições iguais. É o darwinismo social dos nossos dias. Ao naturalizar-se, a meritocracia é uma espécie de ar que respiramos: coloniza o pensamento e a nossa forma de estar no mundo.” (Visão, Nº1574).
Num livro que recomendo a todo aquele que se dá ao cuidado de pensar a escola e a sociedade, com o título “A Tirania do Mérito”, o seu autor, Michael J. Sandel (2022), alerta para o mundo altamente competitivo em que vivemos, dividido entre vencedores e perdedores. Alerta para o crescendo das desigualdades sociais, a polarização e a culpabilização dos perdedores pelos seus infortúnios. Ao analisar conceitos em torno da ética do estudo, do trabalho, do sucesso e do fracasso, o autor propõe um olhar clínico sobre essas relações. Advoga que a polarização vencedor-perdedor levou à estagnação da mobilidade social, tendo promovido um sentimento generalizado de raiva e frustração, que desperta o protesto populista e a descrença nas instituições, no governo e entre cidadãos. Para Sandel, a meritocracia gera uma complacência prejudicial entre os vencedores e impõe uma sentença
dura aos perdedores.
Para quem, como eu, é contra os rankings, sobretudo a forma como são concebidos, ou seja, apenas com base na nota dos exames, não pode, pelas razões atrás descritas, ser a favor dos quadros de mérito impulsionados pelas escolas. O sistema é o mesmo: alunos que jogam numa mesma “liga”, mas oriundos de “habitats” bem distintos. E claro, no final, só alguns terão a honra de pisar o palco, numa sessão magna, para serem laureados, enquanto os progenitores, directores e outras entidades batem palmas, acompanhadas de loas tecidas aos “vencedores”. E aqui importa reflectir sobre o que por vezes precede este cerimonial, e que chega a tomar contornos anedóticos. Ora para o aluno integrar o quadro de mérito, tem, como é óbvio, de reunir nota máxima a todas as disciplinas ou então uma média tal, que lhe permita fazer parte dele. Já nem vou falar no stresse que isto provoca nalguns alunos, ao ponto de os ver regatear uma nota junto dos professores, tal como já me aconteceu. Ora a decisão cabe a cada Conselho de Turma, que na reunião do final do ano lectivo prepara a dita lista. Dá-se o caso que nesse órgão acontece, por vezes, um professor, de uma determinada disciplina, ser persuadido por alguns dos seus pares para subir a nota que atribuiu a um determinado aluno. Caso contrário, este ficaria fora do quadro de mérito, o que faria com que eventualmente alguns protagonistas se sentissem mal na fotografia!
É o primado do pódio sobre a avaliação séria e criteriosa, da competição sobre a cooperação.

domingo, 18 de junho de 2023

Presos na rede

No passado dia 30 de Maio era tornado público um estudo sobre o impacto das redes sociais na saúde mental dos jovens portugueses, dando conta de que 86% se assumiam viciados nestas plataformas, sendo que 90% já as utilizavam desde os 13 anos. O estudo foi levado a cabo pela Dove em Portugal, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Brasil, Estados Unidos, Canadá, tendo sido inquiridos 1.200 jovens e pais em Portugal. Mais preocupante é o facto de 80% dos jovens preferirem comunicar pelas redes sociais, em vez de o fazer pessoalmente. Comentando estes dados à Agência Lusa (30/05/2023), Eduardo Sá, psicólogo e porta-voz do estudo, reconhece que “[o impacto] que as redes sociais têm, muitas vezes, na deformação dos adolescentes, acaba por ser uma espécie de droga (…) e com o assentimento dos pais, com consequências que, nalguns casos, são manifestamente graves.”
Entretanto, foi lançada uma petição pública, que já ultrapassou as 17.000 assinaturas, com o título “Viver o recreio escolar, sem ecrãs de smartphone!”, que pretende dar entrada na Assembleia da República. Como é referido no seu texto, o que se pretende é uma revisão do actual estatuto do aluno quanto ao uso de telemóveis smartphones nas escolas, a partir do 2º ciclo, a favor da socialização das crianças nos recreios, ou seja, que conversem cara-a-cara, que brinquem e para que diminuam os casos de cyberbulling e contacto com conteúdos impróprios para a sua idade.
Para o pediatra Mário Cordeiro, o uso excessivo do smartphone pode representar o princípio de algo mais grave, e explica-o: “Quando uma criança deixa de se interessar pelas aulas e pela aprendizagem, fica sem saber que, para aprender, é preciso tempo, treino, paciência, técnica e trabalho, e começa a pensar que pode viver sem os outros”. O pediatra refere ainda que a redução da criatividade é uma consequência de deixar de brincar (Revista Sábado, 1/06/2023). Também o psiquiatra Augusto Cury alerta para as consequências que está a ter o uso excessivo de videojogos e das redes sociais por parte das crianças, que está a prejudicá-los, tornando-os imaturos, impacientes e sem saber lidar com as frustrações. Numa entrevista à revista Sábado (4/05/2023), Cury defende a redução dos estímulos, que causam uma intoxicação digital, pois, como diz, “se não o fizermos não vamos ter uma geração de jovens mentalmente saudáveis”. Recomenda que as crianças se envolvam noutras actividades, tais como: tocar um instrumento, ler bons livros, aprender a pintar, a cuidar de plantas, a fazer desporto, etc. Aquilo que ele considera “actividades lentas”, para ajudar a desacelerar a mente e para gerar a interiorização.
É uma triste e inquietante realidade, esta de ver os jovens presos a um ecrã, seduzidos por influencers, completamente alienados, rendidos à grosseria e à trivialidade que grassa no mundo virtual. Daqui resulta a redução da sua capacidade de imaginação, a sua curiosidade e sentido crítico em relação ao seu entorno social. Juntemos ainda um decréscimo nas competências de leitura e escrita. Hoje-em-dia ler um pequeno parágrafo ou uma simples frase escrita por um aluno tornou-se um hercúleo exercício de decifração para o professor. E perante esta realidade, qual tem sido a reposta da Escola? Sobre esta, Mafalda dos Anjos vê com desconfiança o processo de digitalização a que vem sendo sujeita nos últimos anos. Sublinha que, “O problema está em fazer do digital o principal recurso de ensino, com a prevista digitalização dos manuais escolares e dos testes de avaliação, o que inevitavelmente leva a que as crianças passem a estar ainda mais horas em frente a ecrãs do que aquelas que já passam fora da escola.” Por isso recomenda: “Neste mundo digital, as escolas têm de apostar naquilo que nos distingue verdadeiramente das máquinas. (…) O ensino deve estimular a interacção humana, a criatividade, a empatia, a experiência. A sua tarefa principal (…) [será] criar cidadãos que reflictam, que relacionem, que acrescentem, que idealizem, que se mexam.” (Visão, 19/05/2023). E porque de certa forma estamos a pensar o futuro, termino fazendo uma alusão a algumas das inquietações de Yuval Noah Harari, que nos dá que pensar. No mês passado, o historiador esteve em Lisboa para uma conferência intitulada “Humanidade, não é assim tão simples”, promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde alertou para os perigos da inteligência artificial para o ser humano e a sociedade. Numa entrevista ao Expresso, respondendo à pergunta, “Não sabendo que profissões vão existir, o que é que a escola deve ensinar no presente?”, Harari respondeu que “A competência mais importante é como continuar a aprender ao longo de toda a vida e ter uma mente flexível. As escolas não têm de dar informação às crianças porque elas estão inundadas em informação. Mas têm de ensiná-las a distinguir entre fontes de informação credíveis e não credíveis.” (Expresso, 26/05/2023). Este parece-me um bom ponto de partida.

terça-feira, 16 de maio de 2023

Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado

As perspectivas de resolução dos principais problemas que afectam o sistema educativo não são as melhores. E ninguém melhor que os professores conhece a realidade das escolas e as suas lacunas. As suas legítimas reivindicações, tantas vezes levianamente distorcidas na praça pública, incidem, grosso modo, em melhores condições de trabalho, no reconhecimento e dignificação da figura do professor, da sua carreira profissional, e na defesa de uma escola pública dotada das melhores condições de aprendizagem para os seus alunos.
Começo pela carga burocrática que pesa sobre os ombros dos professores, que mais não faz do que lhes retirar tempo para a sua principal função, que é ensinar. Como sublinha Luís Vilar (DN, 13/03/2023), “A crescente exigência, burocrática e social, para que os nossos professores provem exaustivamente a adequação de uma qualquer acção e/ou decisão avaliativa e/ou disciplinar, por menor que seja, removeu-lhes a capacidade de cumprir com a função que justifica a sua existência.” Pegando num exemplo, lembra que hoje “obrigamos os professores a pensarem duas vezes antes de reprovar alunos, porque se arriscam a ter de passar o seu fim-de-semana a preencher relatórios e relatoriozinhos e verificar que encarregados de educação vêem as suas mais irrealistas reclamações surtirem efeito.”
Sigo para o labirinto da legislação que chega às escolas em catadupa (quantas vezes absurda ou inconsequente), alguma dela apenas para preparar o terreno para a transição administrativa de alunos que se entregaram, de alma e coração, ao ócio durante todo o ano lectivo. Disto se tem feito catecismo, com um crescendo de acólitos. Acrescente-se as reformas e contra-reformas curriculares que fazem dos professores e alunos ratos de laboratório. Junta-se o cansaço e o desgaste físico e emocional acumulado, a frustração de verem uma carreira estagnada, desvalorizada, que não reconhece o esforço e a dedicação ao ensino. E aqui importa denunciar um modelo de avaliação de professores envolto em controvérsia, por ser altamente penalizador e permeável a interesses nebulosos. Como destaca Paulo Sucena (JL, nº1370), estamos perante “um processo punitivo, porque construído sobre a existência de quotas e vagas de que resulta o impedimento dos professores e educadores terem o normal processo de progressão na carreira.”
O actual modelo de gestão das escolas é outro dos calcanhares de Aquiles que afecta a escola pública. Falamos de um modelo centralizador, que condiciona a actividade pedagógica dos professores. Juntemos-lhe a falta de infra-estruturas, salas adequadas, equipamentos, recursos humanos, etc.
Igualmente alarmante é a conhecida falta de professores, problema denunciado há muito e sobre o qual não se augura um futuro risonho, pois é do conhecimento público que têm sido mais os que se aposentam anualmente (mais os que desistem da profissão) do que aqueles que se formam. Não espanta! Às políticas erráticas e desastrosas na área da gestão dos recursos humanos na Educação, seguidas por sucessivos governos, junta-se um conjunto de circunstâncias que retiram aos jovens, que acabam o secundário, o desejo de apostar numa carreira profissional no ensino. Seguramente que não lhes passará despercebido, para além dos problemas atrás descritos, os conhecidos contractos precários de milhares de docentes, que percorrem o país de norte a sul, a auferirem salários miseráveis, impossíveis de suportar a renda de uma casa ou quarto, sem perspectivas de futuro.
Outro problema prende-se com a autoridade do professor. São conhecidos inúmeros e recorrentes casos de falta de respeito pela autoridade de várias figuras ou entidades com responsabilidades sociais, cívicas ou políticas. Assistimos a relatos diários de desrespeito para com profissionais de saúde, agentes policiais, magistrados, órgãos de soberania, etc. Não admira, pois, que este tipo de afronta já tenha chegado, desde há muito, aos professores. Como lembra António Cortez (DN, 6/02/2023), “Passou-se do autoritarismo mais sórdido que caracterizava a relação pedagógica do Salazarismo, para a absoluta falta de autoridade docente (…).” E aqui regresso a Luís Vilar para manifestar a minha total concordância, quando refere que “Temos de voltar a dar confiança e autoridade ao professor, para que este se permita ser exigente, competente para reprovar alunos pouco dedicados ao seu futuro (e ao futuro do país) e penalizar os pais que tenham usufruído do seu direito de ter filhos e abdicado do seu dever de os educar.” Mais adiante acrescenta que “A incapacidade de responsabilizar-se (ética, moral, social e até financeiramente) os encarregados de educação pelos comportamentos inadequados dos seus filhos na escola e a remoção da autoridade social e dignidade profissional do professor são passos decisivos para a deterioração da escola pública como hoje a conhecemos.” Luís Vilar termina o seu texto com uma advertência: “Como é possível compaginar o desenvolvimento civilizacional do nosso Estado democrático com professores cada vez mais limitados no exercício da sua actividade profissional?”
Como cantava Amália Rodrigues, “Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado”.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

O espaço das artes e da cultura na escola

O desenvolvimento e o progresso de uma sociedade ou de um país podem medir-se pela importância que atribui às artes e à cultura, e daí no investimento que nelas faz. A UNESCO e a OCDE são duas organizações, entre outras, que têm apontado para esta realidade insofismável, através dos diferentes relatórios e pareceres que têm produzido ao longo dos tempos. Infelizmente ainda são muitos os países que não priorizam esse desígnio. Nestes casos, o desfecho é claro: sociedades menos educadas, menos humanistas, menos criativas, menos livres.
Para além dos necessários recursos que deverão ser proporcionados pelos governos aos diferentes agentes e instituições culturais, o investimento nas artes e na cultura passa igual e forçosamente pela educação. Dotar as escolas de espaços adequados e dos mais variados equipamentos e recursos materiais, assim como fixar uma carga horária semanal decente às disciplinas de ensino artístico, são condição sine qua non para a sua leccionação eficiente, assim como para levar a cabo projectos de educação para as artes e para a cultura. Quando me refiro a uma “carga horária decente”, faço-o para dar conta da aleatoriedade que a chamada “flexibilização curricular” permite às direcções das escolas fazer em matéria de horários escolares, e que em muitos casos resulta na subtracção de tempos lectivos às disciplinas de ensino artístico (Educação Visual, Educação Musical, teatro, etc.), para cedê-los a outras disciplinas. Aquelas que um douto ex-ministro da Educação, Nuno Crato, apelidou de “fundamentais”! Não surpreende este (pre)conceito e esta visão estreita, pois ela é, ainda hoje, partilhada dentro das escolas por alguns professores, e fora delas por vários pais. Veja-se, a respeito destes últimos, já assisti a manifestações de preocupação, quando não mesmo de indignação, quando são confrontados com o desejo dos seus filhos, terminado o ensino secundário, quererem seguir um curso superior de artes. A vocação ou a realização pessoal dos filhos é secundarizada face à vontade, 
aos desejos ou aos sonhos dos progenitores!
Apesar destas desmesuras, ainda podemos contar com o altruísmo e o empenho de gente que conhece as potencialidades das artes na humanização e progresso das sociedades, seja dentro ou fora das escolas. E aqui chego a um relevante projecto de âmbito nacional, iniciado em 2019, o chamado Plano Nacional das Artes (PNA). A iniciativa partiu de Graça Fonseca (na altura ministra da Cultura) e João Costa (então secretário de Estado e actual ministro da Educação), numa parceria entre os dois ministérios, e pretendia criar uma plataforma com o propósito de fundir cultura e escola. Para tal, seria convidado Paulo Pires do Vale, investigador, filósofo e curador de exposições, para conceber e comissariar esse projecto, tendo o próprio começado por se interrogar: “O que pode a arte? Como se constrói uma comunidade onde a cultura seja transformadora na vida dos cidadãos?” No momento, Paulo Vale manifestou a sua convicção de que “a cultura possa ser um depósito da Humanidade”, e “a arte um veículo que nos transporta na descoberta de lugares que por vezes nem sabemos que temos dentro de nós.” (Expresso - Revista Especial nº4, de 10/03/2023)
O PNA começou com a adesão de 65 agrupamentos e hoje conta já com 403. Tive o privilégio de ter participado nesta iniciativa, há poucos anos, num dos que a ela aderiu, o Agrupamento de Escolas Gomes Monteiro, de Boticas, através daquilo que o mesmo intitulou de Plano de Promoção das Artes, no qual projectei e dinamizei algumas actividades, com destaque para a criação daquilo que apelidei de “Espaço CriARTE”. Na prática, tratou-se de uma transformação que operei na sala de aula de Educação Visual (3º ciclo), convertendo-a num espaço polivalente que, para além da actividade lectiva, funcionou como galeria de exposições, oficina de artes plásticas, espaço para workshops levados a cabo por artistas convidados, e ainda para actividades/apoio a alunos com necessidades específicas. Saliento ainda a minha colaboração, no âmbito da disciplina de Educação Visual, num projecto de parceria entre o agrupamento, a autarquia e a Universidade do Minho, que incidiu no estudo dos castros existentes no concelho. Para estas e outras actividades, foi determinante a sensibilidade, a visão e o apoio da direcção dessa escola, que não poupou esforços para dar todas as condições e recursos para levar a cabo as inúmeras actividades projectadas. Algumas delas tiveram a colaboração da autarquia, da biblioteca municipal, entre outras entidades.
Este é apenas um exemplo, entre muitos outros, do trabalho que se pode desenvolver nas escolas, com impacto na educação e formação dos jovens. Basta, para tal, haver sapiência, sensibilidade, capacidade de visão e vontade da parte de quem tem o poder de decidir e apoiar este tipo de iniciativas, dentro e fora da escola.

terça-feira, 14 de março de 2023

A autocracia nas escolas

Um dos temas que nunca esteve na mesa das negociações entre sindicatos de professores e Ministério da Educação é o actual modelo de gestão das escolas. Não porque o assunto esteja esquecido, mas porque o Ministério simplesmente mantém a porta trancada, por razões que adiante se perceberá.
Com o Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de Abril, da autoria da então Ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues, do governo Sócrates, era aprovado o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, e assim se enterrava um modelo de eleição e gestão democrática das escolas, que até aí vigorara. Os então designados presidentes de conselhos directivos passariam a directores, fazendo lembrar os reitores dos liceus do “tempo da outra senhora”. Esta é a principal razão da degradação progressiva do ambiente que se vive no seio dos estabelecimentos escolares, e que resultou naquilo que Santana Castilho classifica de “supremacia crescente do caciquismo paroquial na gestão das escolas” (Público, 19/01/2022). Sem poupar nas palavras, por certo certeiras, o autor, numa outra crónica, alerta que as escolas “são cada vez mais organizações pouco democráticas (quando não totalitárias), laboratórios sim, de experiências pedagógicas sem sentido, viveiros de integração hipócrita, fábricas de falsos sucessos e altares da mais estúpida e castradora burocracia”. Logo acrescenta que as mesmas “são hoje, com raras ilhas de excepção, mundos de venenosos interesses miudinhos e subservientes, onde a vontade colectiva é secundarizada por visões unipessoais” (Público, 13/04/2022). E a propósito dessas “ilhas de excepção”, farei justiça ao referir que conheço alguns poucos directores que, apesar do modelo de gestão unipessoal vigente, têm desenvolvido um trabalho meritório, pautado pelo respeito por toda a comunidade escolar, num clima de democraticidade, como é exemplo o director do Agrupamento de Escolas Gomes Monteiro, de Boticas, o meu caro amigo Américo Barroso.
Umas vezes por subserviência hierárquica, outras por iniciativa ou capricho próprio, o director tornou-se numa espécie de tiranete, que interpreta algumas leis segundo as suas conveniências (quando não se considera ele próprio a Lei!), que recorre a todo o tipo de expedientes para controlar ou mesmo intimidar os professores. Tudo serve para chantagear ou tentar silenciar os mais intrépidos, tais como as ameaças de penalização na avaliação e progressão docente, na elaboração de horários de trabalho retalhados, na aplicação de processos disciplinares, etc. Casos que muitas vezes terminam em litígio. E que dizer das indecorosas pressões sobre as avaliações que os professores fazem dos seus alunos, quando são chamados a justificarem, em especial, os níveis negativos atribuídos? A este respeito, importa dizer que este desvelo inscreve-se na chamada “escola de sucesso” que os governos querem ver espelhada nos rankings, e a que diligentemente muitos directores se entregam. Não importa se os alunos sabem ler e escrever correctamente, a pensar e a desenvolver uma consciência crítica, a apreciar o património, as artes e a cultura ou a desenvolverem um espírito humanista. Importam sim, os números! E isto é mais notório em concelhos em que há mais do que um agrupamento de escolas, que acabam por se digladiar entre si para assegurar a “clientela” discente. Mas é bom lembrar urbi et orbi que o que decide uma boa nota é a dedicação, aliado a um comportamento exemplar, e não a casta a que o aluno pertence ou as pressões dos seus progenitores junto do director ou professores.
Face a este retrato negro, marcado pela autocracia e por um ambiente policial reinantes em muitas escolas, alguém esperava outra reacção que não fosse a revolta e a oposição dos professores ao modelo de recrutamento e colocação docente pretendido pelo ME, a urdir por conselhos locais de directores, entretanto travestido de “Conselho de Quadro de Zona Pedagógica”?
Como dizia Elvira Tristão, o problema das actuais direcções de escolas, que designa de “lideranças tóxicas”, “obriga a uma reflexão séria sobre a recente involução do regime jurídico da administração e gestão escolar, e a sua revisão, com a valorização das lideranças intermédias, na colegialidade colaborativa, e num sistema de accountability inteligente, assente nos valores da democracia colaborativa, da transparência da equidade e da justiça” (Público, 9/04/2022).

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

O respeitinho é muito bonito

Uma das palavras de ordem que mais se tem ouvido nas manifestações dos professores, dirigida ao governo, é “RESPEITO”. Grosso modo, respeito pelas condições de trabalho e carreira docente. Mas o que me traz por cá é outro patamar de respeito, melhor dizendo, a falta dele para com os professores, mas da parte dos pais. Digo “pais”, e não “encarregados de educação”, porque a realidade actual dá conta de que são cada vez mais raros os que efectivamente se encarregam da educação dos seus filhos, especialmente no que toca a valores. Temos sim, como diz António Cortez, professor, num artigo do DN (17/01/2023), “pais fanatizados pelo endeusamento dos filhos.”
Hoje em dia, a velha expressão “o respeitinho é muito bonito”, tantas vezes proferida em tempos idos pelos nossos pais e avós, parece não passar de uma memória longínqua. E que tanta falta tem feito! Desde há alguns anos a autoridade dos professores tem sido posta em causa paulatinamente e de forma alarmante. Sem escrúpulos, quantas vezes de forma vil, pegando em questões do mais mesquinho que se possa imaginar, tudo serve para denegrir ou condicionar o trabalho e a autoridade do professor.
Se atentarmos criticamente no que tem sido a evolução das sociedades nas últimas 2/3 décadas, não haverá surpresa sobre esta realidade, que ameaça tornar-se um flagelo. As razões dos comportamentos desrespeitosos de muitos pais para com os professores são de vária ordem. Mas a mais determinante foi certamente a mudança do paradigma de socialização das crianças e jovens. Sobre esta questão, Pacheco Pereira, num artigo publicado no Público (21/01/2023), faz uma síntese certeira, que eu não resisto a transcrever. Diz o historiador que “há poucas décadas, a escola competia com a família na socialização dos alunos e, nalgumas áreas mais pobres, competia com a rua […], não havia a epidemia do “défice de atenção”.” Entretanto, acrescenta, deu-se o “enfraquecimento da socialização familiar”. Veio aquilo que ele chama de “tempestade perfeita”, “que ameaça seriamente o papel da escola, incapaz de competir com uma ecologia social cada vez mais hostil, que põe em causa a capacidade da escola de ser um factor eficaz de socialização, já para não falar de aprendizagem.” O autor alerta para “a destruição da capacidade de atenção pela rapidez da imagem dos jogos desde a infância, a deseducação do valor do tempo lento, do silêncio, do saber, da leitura, a ignorância agressiva das redes sociais (...).”
Muitas crianças e jovens não têm a atenção em casa que lhes é devida. Com o advento da internet e das redes sociais, vivem mergulhados num mundo virtual, sem filtros, sem nenhum escrutínio parental, muitas vezes lado a lado com os pais, também eles frequentadores dessas redes, às vezes utilizadas, já agora, para injuriar, de forma cobarde, os professores. Se é verdade que alguns deles educam os seus filhos para os valores, para o cumprimento de regras, para o respeito por outrem, para a disciplina, outros há que não se dão minimamente a esse trabalho e obrigação sua. Bem a propósito, o ex-ministro da Educação David Justino, na sua última aula na Universidade Nova de Lisboa, ocorrida a 13 de Janeiro, antes da jubilação, dizia: “Torna-se difícil para mim entender a educação que não assente no conhecimento e na cultura, no esforço e no rigor, na exigência e na disciplina.” Ao encontro desta declaração vão igualmente as palavras de Francisco Assis (Expresso - 20/01/2023) quando refere, cito, que “Os professores sentem-se profundamente desrespeitados. Há um problema existencial de quem se sente permanentemente posto em causa pela comunidade em geral, pelos pais, pelos alunos. O ensino pressupõe disciplina e autodisciplina, rigor e exigência. […] Há hoje uma infantilização e uma juvenilização excessiva da sociedade que leva à cretinice. O problema é que caminhamos no sentido de uma certa cretinice, e essa cretinice tem consequências do ponto vista do ambiente escolar.” Estamos perante a desvalorização do professor como fonte de saber e do seu papel fundamental na transformação da sociedade. Apesar desta realidade nua e crua e das perspectivas pouco optimistas, sobram ainda alguns professores que ainda resistem, como é o meu caso, que não abdicam da ordem, respeito, disciplina e empenho na sala de aula, quiçá ancorados naquele conhecido verso do velho poema “Trova do vento que passa”, de Manuel Alegre, notavelmente cantado por Adriano Correia de Oliveira, e que dizia, “Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Sobre democracia

O facto de hoje em dia ser maior o número de portugueses que chegam ao ensino superior tem levado a anunciar-se que estamos perante aquilo que se diz ser a geração mais preparada de sempre. Isto tem sido repetido incansavelmente pela opinião pública e publicada.
Num artigo publicado no jornal Público, a 5 de Novembro passado, Pacheco Pereira põe em causa esta apreciação. O historiador e comentador político sublinha que tal juízo desvaloriza uma análise que deveria ser mais abrangente e profunda. Entende o mesmo que a actual geração não tem dado sinais de estar preparada para dar resposta à crise da democracia, por se notar “uma crescente degradação dos factores culturais e de mundivisão”, que implica saber como proceder perante a conflitualidade e desestruturação social a que vamos assistindo. Para tal, Pacheco Pereira defende que contrariar este rumo “implica educação, saber, vontade de saber, ler, ouvir e ver com olhos de ver, procurar informação, reconhecer desinformação, falar com voz alta quando é preciso, e ser prudente na fala quando é preciso, reconhecer o valor da privacidade, não ir em ondas mediáticas e da moda (…).” Ora isto representa exactamente o oposto daquilo que revelou o mais recente e lamentável episódio registado em Brasília, protagonizado por uma turba de imbecis e delinquentes, que decidiram atacar o coração do poder político brasileiro. Para além de preocupante, foi confrangedor assistir àquela invasão bárbara, àquele protesto grotesco de milhares de fanáticos.
Há muito que as campainhas soaram. Se por um lado estes casos de insurreição, já verificados noutras latitudes (quem não se lembra do assalto ao Capitólio, em Janeiro de 2021?), merece um profunda reflexão e uma acção pensada e estruturada para tentar atacar o mal pela raiz, por outro não pode haver complacência para acções que ponham em causa o Estado de direito. Como dizia Manuel Carvalho, no editorial do Público de 10 de Janeiro, “A inteligência nem sempre demove os imbecis”, isto a propósito da dificuldade em usar da razão para confrontar estes actos de puro atentado à democracia, algo que, como o próprio diz, “escapa às nossas categorias de entendimento”, e que carece de uma acção mais musculada.
Numa acção preventiva, diga-se nada fácil, o primeiro passo passará por agir sobre a desinformação e as fake news que campeiam nas redes sociais, e mesmo nalguma imprensa escrita, sobretudo a de facção. Torna-se imperativo não dar tréguas a uma estratégia que visa confundir as pessoas, o senso comum, frequentemente concebida por alguns charlatães que pretendem tirar proveitos políticos, partidários ou mesmo económicos, e que põem em casa os pilares do Estado de direito e da própria democracia. A informação, como diz Pacheco Pereira, “é substituída pelo consumo do ‘engraçadismo’, pelo desprezo pela privacidade, pela raiva, pela calúnia, pelo comportamento em matilha, pelo julgamento imediato, pelo desprezo pelo outro (…).”
A democracia defende-se praticando-a todos os dias e em vários contextos. Faz-se acompanhando o desenvolvimento cognitivo, ou seja, desde a infância, através de uma educação para os valores e para a cidadania. Faz-se na escola, em casa e no espaço público por diferentes intervenientes com responsabilidades educativas e sociais.
Defender a democracia passa por INFORMAR, no sentido lato do termo. E informar significa ou implica, como poderemos encontrar em qualquer dicionário ou enciclopédia, esclarecer, avisar, instruir, fundamentar, indagar, documentar-se, entre outros. É disto que se trata.