domingo, 12 de outubro de 2008

Educar para a cidadania*

Se por um lado a evolução da sociedade se caracteriza por alguns progressos a nível científico, tecnológico e social, por outro não deixa de revelar problemas e carências que afectam milhões de pessoas em todo planeta. À semelhança do que ocorre com outras organizações internacionais (tais como a OMS, a ONU ou a UNESCO), os sucessivos relatórios do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) têm dado a conhecer a pobreza e as inúmeras desigualdades sociais e económicas que se verificam no nosso planeta.[1] A fome, as doenças, o analfabetismo, a desigualdade entre sexos, a escassez de recursos naturais, entre outros, representam factores que têm contribuído para o agravamento do fosso entre ricos e pobres, situações que atentam contra a dignidade e sobrevivência do ser humano. Constata-se que o modelo económico dominante não tem dado resposta às necessidades mais básicas de muitas populações.
Ninguém de bom senso pode ficar indiferente perante este quadro. Não podemos continuar a achar que pouco ou nada se poderá fazer para inverter, ou pelo menos atenuar este cenário. Falamos de uma responsabilidade que é de todos. Aquilo que efectivamente a humanidade necessitará será, como sublinha Ricardo Petrella (2005), “de quem seja capaz de construir uma forma de vida em conjunto, graças a um contrato social mundial fundado na aspiração de todas as pessoas e povos à dignidade, à justiça, à liberdade e à paz”.
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Como conceber uma sociedade democrática, livre, solidária e coesa se continuamos a pensar que os problemas mais prementes que a sociedade atravessa não são da nossa estrita responsabilidade, ou que estamos perante um fatalismo, algo de irreversível? Como conceber uma cidadania nacional, europeia ou global assente num projecto comum e na coesão social, se o que verificamos é uma sociedade materialista e individualista (particularmente as sociedades ocidentais e outras igualmente desenvolvidas)? Como preparar as crianças, jovens e adultos para uma cidadania democrática, crítica e participativa, quando o modelo económico dominante tem contribuído, de forma mais directa ou indirecta, para o consumismo desenfreado, para a desestruturação das instituições de educação tradicionais, para a competição, para o desmembramento do estado social, para uma rotura entre povos e culturas, para o aumento do racismo ou xenofobia, para o “choque de civilizações” de que nos fala Samuel Huntington (1999), para tantos e outros problemas que suscitam a nossa maior apreensão? [3]
Algumas questões nos parecem claras: há que repensar e redefinir conceitos como o de cidadania ou de democracia; há que reinventar as práticas de participação cívica em diferentes contextos sociais; há que erigir uma educação para a cidadania suportada na defesa e promoção dos direitos humanos e nas liberdades de expressão e manifestação; há todo um trabalho a desenvolver para que despontem cidadãos críticos, activos, participativos, autónomos, solidários e conscientes de que o progresso social terá que ser sustentado pela coesão social e pela defesa do interesse público.
Esta é, sem dúvida, uma obra de tão grande responsabilidade e de uma enorme envergadura. A história das civilizações está recheada de grandes projectos sociais, alguns megalómanos, outros assentes em utopias. Mas também ela tem revelado que quando um aglomerado de pessoas, com maior ou menor dimensão, decide levar a cabo um projecto que vise essencialmente a promoção e o garante de direitos e de melhores condições de vida, as obras acontecem, surpreendendo, por vezes, os mais cépticos. Já dizia Fernando Pesoa, “Deus quer, o homem sonha e a obra nasce”. Reestruturar o tecido social será certamente um dos imperativos mais imediatos para devolver à sociedade, em geral, a esperança num mundo mais humano e mais solidário.
O conceito de educação para a cidadania é de tal modo abrangente que se torna difícil atribuir-lhe uma definição mais ou menos consensual. A educação para a cidadania desenvolve-se ou abrange diferentes áreas de formação, tais como: a Educação Ambiental, a Educação Patrimonial; a Educação para os Direitos Humanos, a Educação Democrática; a Educação Intercultural, entre outras. Contudo, e de modo a simplificar e sistematizar o nosso raciocínio, propomo-nos desenvolver e clarificar alguns pontos que nos parecem essenciais à concepção e construção de uma sociedade mais justa.
Devemos começar por reflectir sobre um conjunto de situações e preocupações que perturbam a sociedade e que certamente limitam ou condicionam a acção do indivíduo. A este respeito, evocamos as palavras de Michael Apple (1999): “Aspectos como a negação dos direitos humanos básicos, a destruição do meio ambiente, as condições desumanas em que sobrevivem as pessoas, a ausência de um futuro com sentido para milhares de crianças […] não constituem unicamente, nem tão-pouco primordialmente, um “texto” a ser decifrado nos nossos volumes académicos sobre diversos temas pós-modernos”. Trata-se, diz o autor, de uma realidade experimentada diariamente por milhares de pessoas. Assim, acrescenta o mesmo, “o trabalho educativo que não se encontre profundamente relacionado com a compreensão sólida desta realidade – e esta compreensão não pode ignorar uma análise séria da economia política e das relações de classe, pois perde grande parte da sua força – corre o risco de perder a sua alma”.
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Uma educação para a cidadania como projecto emancipatório passará necessariamente pela criação de requisitos para que o educando desenvolva uma consciência autónoma e crítica, que lhe permita desconstruir e detectar no discurso político ou ideológico eventuais armadilhas, denunciar situações de violação de direitos humanos ou de desrespeito por liberdades fundamentais e empreender acções cívicas mobilizadoras, para defesa do interesse colectivo. Educar para a cidadania trata-se, como sublinha Maria Praia (1999) de “um processo contrário à rotina, que exige da escola uma prática consequente e desmistificadora do que é a política, do que é governar, do significado dos opacos invólucros dos tabus ideológicos, das suas intenções ambíguas ou distorcidas”.
[5] Uma acção consciente e reflexiva sobre os factos que nos rodeiam é condição primeira para que o cidadão possa desempenhar, na sua plenitude, uma intervenção cívica tendente a melhorar as suas condições de vida e as dos outros.
Quando já acreditávamos que, com as lições retiradas da Segunda Guerra Mundial, e com a esperança que ficou depositada na Declaração Universal do Direitos Humanos e na criação dos Estados-Providência, estaríamos em condições de perspectivar uma vida melhor, o que na realidade acabaríamos por assistir, infelizmente, foi às mais variadas situações atentatórias da condição humana, através dos múltiplos conflitos (territoriais, políticos, religiosos, económicos, entre outros) que se verificam em vários pontos do globo. A insegurança que destes decorre por vezes cega-nos ou inibe-nos de levar a cabo uma acção empreendedora, com o sentido de mobilizar consciências em torno de um objectivo comum, sustentado nos diferentes parâmetros que temos vindo a apontar: liberdade, democracia, igualdade de oportunidades, inclusividade, interculturalidade, solidariedade, diálogo, paz, etc.
Como se ainda não bastasse, assistimos ainda a algumas tentativas de reescrever a história, numa clara tentativa de branquear factos que muito poderiam contribuir para comprometer individualidades, grupos organizados ou Estados. Escusamo-nos a apontar nomes ou entidades responsáveis pela violação de direitos humanos, e que continuam impunemente a escapar à justiça dos homens. É precisamente sobre esta questão que Ignacio Ramonet (2005) se insurge, apontando o dedo acusador aos grandes media, “que não têm o rigor dos historiadores” e que, por isso, “reconstroem, segundo modas, um passado muitas vezes determinado, corrigido e rectificado pelo presente”.
[6] Para Ramonet, “há poucas diferenças entre esta nova «história oficial» e a censura de Estado que vigora nos países não democráticos. Em ambos os casos, é este passado revisto que as jovens gerações são levadas a conhecer. É pois uma tal distorção da história que devemos insurgir-nos”.[7] O conhecimento da verdade e da realidade dos factos são elementos imprescindíveis à construção de uma cidadania consubstanciada na justiça, na democracia e na pluralidade.
Entrámos num novo século, e com ele novos desígnios se colocam ou se desejam reforçados. As transformações que se registam, sejam a nível social, político ou económico, vêm redefinir o conceito de cidadania. Da cidadania nacional transpusemo-nos para uma “cidadania europeia” (naturalmente no contexto europeu) ou para uma “cidadania global”. A Globalização – e com ela a sociedade de informação e o conhecimento de outras realidades, outras culturas, em outros continentes – contribuiu para a redefinição do conceito de cidadania. Para Manuela Santos (2005), “a Globalização está a dar à cidadania novos significados emergentes e novas configurações sociais e culturais”. Logo, acrescenta a autora, “a cidadania traduz cada vez mais o valor da qualidade de vida, do respeito do Outro, do respeito por si próprio e pela natureza”.
[8] Dar-se-á, deste modo, a devida relevância e introdução à abordagem dos direitos humanos em contexto educativo, não de uma forma abstracta, descontextualizada, mas sim pela sua promoção e defesa em actividades partilhadas e efectivas, em contexto social.
Atendendo que é na defesa dos direitos humanos que se depositam as esperanças num mundo melhor, cabe aos Estados e às instituições educativas criar condições e desenvolver meios para assegurar que todos os indivíduos, sem excepção, possam crescer e desenvolver competências de cidadania democrática. Em síntese, e tal como destaca Roberto Carneiro (1997), está em causa “uma cidadania estruturalmente alicerçada no património dos direitos humanos e de liberdades fundamentais que sustentam o pensamento democrático. Uma cidadania onde se reconhece a centralidade do valor inalienável da pessoa humana e da sua dignidade”.
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Uma educação para a cidadania exige um amplo consenso e determinação, quer nas políticas educativas a definir, quer nas práticas a exercer em contexto educativo. A cidadania democrática participativa só será possível se for assumida pelo sujeito como um compromisso social efectivo, como um vínculo que se constrói com um determinado público em qualquer espaço comunitário. A escola é, por isso, um espaço propício à aprendizagem de valores que sustentam a cidadania. Esse compromisso desenvolve-se quer pela reclamação de direitos, quer pela assumpção de responsabilidades individuais e colectivas. O Projecto Educativo de Escola (PEE) – e os projectos curriculares a ele agregados – constitui um instrumento definidor e impulsionador de práticas educativas e pedagógicas que poderão ser orientadas precisamente para uma educação para a cidadania. A educação para a cidadania constitui, pois, uma componente do PEE, efectivando-se quer na relação escola-meio, quer na dinâmica da organização escolar e das áreas curriculares.
As experiências decorrentes das práticas cidadãs podem e devem ultrapassar o espaço-escola, para que possam consolidar-se noutros contextos (sociais e culturais) da sociedade em geral. Aludimos à cidade educadora e à pedagogia urbana de que nos fala Roberto Carneiro (1997) para salientar o devir da cidadania, quer dizer, o processo ou processos necessários para a sua aprendizagem e exercício. Considera-se, pois, a polis como o espaço por excelência para que o educando aprenda e cresça, na relação com os outros, tornando-se num ser criador, mobilizador, transformador, vigilante e regulador de uma sociedade mais justa. De forma insigne e peremptória, Roberto Carneiro sintetiza as potencialidades da cidade educadora nos seguinte termos: “No drama social quotidiano educa-se para a justiça e para a solidariedade. Na contextura política da cidade e nas suas contradições de poder aprofunda-se o apego à liberdade e à democracia como valores perenes. No confronto com a diversidade educa-se para a descoberta do diferente e para o respeito com o outro. Na voracidade do consumo, forma-se para discernir entre o necessário e o supérfluo. Perante a multiplicação da violência, conquistam-se corações para a paz”.
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* Texto retirado e reajustado de DUARTE, Rui (2007). Educação Visual para a Cidadania: um estudo comparativo em contexto escolar. Braga: Universidade do Minho (tese de doutoramento – policopiado), pp 159-162.

[1] Cf. http://www.pnud.org.br/rdh/.
[2] PETRELLA, Ricardo (2005). “Para abolir a pobreza é possível mudar o mundo”. In Le Monde Diplomatique, nº 77, Ano 6, p.22.
[3] HUNTINGTON, Samuel (1999). O choque das civilizações e a mudança na ordem mundial. Lisboa: Gradiva Publicações.
[4] APPLE, Michael (1999). Políticas Culturais e Educação. Porto: Porto Editora, p. 31.
[5] PRAIA, Maria (1999). Educar para a cidadania: teorias e práticas. Porto: Edições Asa. p. 15.
[6] RAMONET, Ignacio (2005). Faces escondidas da Segunda Guerra Mundial. Lições de História. In Le Monde Diplomatique, nº 74, Ano 6, p.7.
[7] Cf. RAMONET, Ignacio (2005), p. 7.
[8] SANTOS, Mª Manuela (2005). A Formação Cívica no Ensino Básico. Contributos para uma análise da prática lectiva. Porto: Edições Asa, p. 24.
[9] CARNEIRO, Roberto (1997). “Educação para a cidadania e cidades educadoras”. In Brotéria, 144, pp. 397-398. p. 400.
[10] Cf. CARNEIRO, Roberto (1997), p. 411.