terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O mundo encantado da Iniciativa Liberal e seus "compagnons de route"

A leitura do programa eleitoral da Iniciativa Liberal (IL) para as legislativas de Março, embora sem surpresas, não deixou de me causar calafrios. Estão lá plasmados os fundamentos da cartilha neoliberal. Reduzir, para não dizer extinguir (o Estado Social), privatizar e liberalizar são o mantra e a fórmula mágica que salvará o mundo. Na impossibilidade de acabar com os impostos (o que verdadeiramente desejariam), este partido propõe uma redução fiscal drástica, beneficiando, para não variar, especialmente a banca e os grandes grupos económicos. Sobre os problemas da habitação, a solução apresentada passa, como esperado, por deixar o mercado funcionar, ou seja, pela especulação imobiliária – a principal razão pela escassez de um tecto para uma classe média ou remediada. Entregar, claro está, a educação e a saúde aos privados, distribuindo cheques de forma generosa – cheques-creche, cheques-ensino, cheques-saúde, cheques... Quem os passa? Parcerias Público-Privadas na saúde em força, ou seja, exponenciar os lucros deste profícuo negócio. Propõem fazer depender o valor da remuneração do desempenho do trabalhador. Melhor dizendo, instituir um sistema de competição individualista entre assalariados, em detrimento da cooperação e da solidariedade. Ainda sobre os rendimentos dos trabalhadores, prevalece a fé cega da IL na generosidade das entidades patronais em determinar o valor do salário mínimo e dos aumentos salariais, e a determinação em enfraquecer, ainda mais, as leis laborais, permitindo, entre outras coisas, a flexibilização dos despedimentos e a redução das indeminizações. Sobre segurança social as medidas propostas apelam à(s) poupança(s). Mas de quem? De quem ganha o salário mínimo ou médio?! Sabemos bem quem são os aforradores! Muito mais teria a dizer sobre o referido programa, mas só concluo com o evidente enfraquecimento do Estado Social que resultaria, se as propostas da IL fossem aplicadas, com uma acentuada redução da receita fiscal. Sabemos ao que levam estas políticas predatórias do Estado e dos trabalhadores. Mas nem por isso os neoliberais deixam de prometer o paraíso. Só que a este apenas acede uma percentagem mínima de milionários, que concentram a maioria da riqueza produzida mundialmente.
Num notável artigo publicado no Público (15/01/2024), o economista Ricardo Paes Mamede apresenta, como exemplo, um retracto socioeconómico daquilo que já foi e o que é actualmente a Nova Zelândia. Por se tratar de um longo artigo, retiro a essência do que nele é dito, e que narra o antes e o pós implementação das políticas neoliberais neste país. Pioneiro na instituição do salário mínimo e no alargamento do direito de voto às mulheres, ainda no século XIX, o país viria a desenvolver no século XX um Estado eficiente, revelando-se um dos mais transparentes e menos corrupto do mundo. Os progressos conseguidos fizeram-se não através de um regime pró-mercado, mas sim de um socialismo democrático. As reformas trabalhistas promoveriam uma reforma agrária, distribuindo terras pela população, criaram um serviço nacional de saúde, um sistema público de segurança social e um parque de habitação social. Nas décadas que se seguiram à 2.ª Guerra Mundial, permaneceu o consenso social-democrata, ou seja, os impostos sobre os mais ricos atingiram uma taxa marginal de 66%, a protecção dos sindicatos assegurava uma distribuição razoável dos rendimentos entre capital e trabalho, enquanto o Estado mantinha sob controlo directo importantes sectores da economia. Ao longo de todo este período a Nova Zelândia tornou-se mais rica e muito menos desigual. Contudo, o primeiro abalo na economia neozelandesa surgiria com a adesão britânica à CEE, em 1973, sua principal importadora. Mas foi em meados da década de 80 que se operaria uma reviravolta, com a entrada em força do neoliberalismo e a aplicação da sua já conhecida e testada receita: privatização de empresas públicas, desregulação do mercado de trabalho, concessão dos serviços colectivos a empresas privadas, redução de impostos sobre os mais ricos e redução acentuada da despesa pública. Tudo em prol da exultante livre escolha e da concorrência! Consequências: agravamento das desigualdades sociais; os 1% mais ricos viram aumentar o seu peso na riqueza nacional; a riqueza dos 10% mais ricos passou de 57% para 70% no mesmo período; os escalões de rendimentos mais baixos viram o seu poder de compra diminuir em termos reais; voltaram as bolsas de pobreza, que tinham sido praticamente extintas no país. Estes são os resultados da falácia da liberdade individual, da prosperidade, do livre mercado e do Estado mínimo preconizados pelos neoliberais.
É este o catecismo da Iniciativa Liberal. É o seu genoma. É o capitalismo de mercado a funcionar sem freio e com fulgor. É a apologia de uma sociedade meritocrática, individualista, interesseira, disfuncional, uma sociedade onde predomina a lei do mais forte, o “cada um por si”. É este o ethos dos neoliberais que, como lembra Camilo Darsie, “conduz à produção e à acumulação de recursos e à reprodução de uma lógica de produtividade e de superação de metas, por meio de uma perspectiva individualizante e competitiva” (A Página da Educação, nº222). É o desmoronamento dos princípios basilares do viver em sociedade, do contrato social. É este o perigo que Nuno Ramos de Almeida (DN, 4/02/2024) denuncia, ao afirmar que “A multiplicação das identidades e a tentativa neoliberal de reduzir todos os problemas sociais a questões de biografia individual, tornaram mais difícil a existência de um sentimento colectivo de pertença e de identificação numa comunidade de luta.”
E é este o partido que o PSD (AD) está disposto a acolher no seu regaço! Visto bem, até acho coerente. Com os escassos sociais-democratas do partido remetidos para as franjas, está aberto o caminho para que se reúna a Irmandade Neoliberal, que comunga, in genere, das mesmas políticas governamentais.