terça-feira, 20 de outubro de 2020

Do sobressalto ao desapreço

A COVID mata. O medo e a indiferença também. A divulgação diária do boletim epidemiológico de mortes, infectados e internados associados à doença em nada, a meu ver, ajuda a reduzir o medo e o alarmismo. Tampouco tem contribuído para diminuir o número de contágios, apesar do aumento das medidas restritivas. Tornou-se enfadonho ver os noticiários a abrir e a fechar com o tema da pandemia. Cansa! Assim, fica difícil relançar a economia e a confiança entre as pessoas. Vivemos numa sociedade aterrada, fechada, reclusa, que se olha com suspeita, que desconfia de tudo e de todos. Uma sociedade paranóica. Para percebê-lo basta andar na rua ou olhar para dentro dalguns locais de trabalho.
As regras sanitárias são por demais conhecidas: uso de máscara (sobretudo nos espaços em que ela é obrigatória), etiqueta respiratória, distanciamento social (que é levado à letra!) e lavagem/desinfecção das mãos após tocarmos em superfícies, objectos ou mesmo depois de um aperto de mão, uma forma de cumprimento substituída por outras, algo “exóticas”, e diligentemente seguidas por uma legião de adeptos. Portanto, para reduzir o risco de contágio, há que seguir as regras. Digo “reduzir” porque o risco existirá sempre, por muito zelosos que sejamos. Ou alguém acreditará que as mais de 100 mil pessoas infectadas até à data (incluindo milhares de profissionais de saúde) foram todas elas negligentes ou irresponsáveis!? Desde o início da pandemia que ouvimos vários especialistas alertando para o facto de que ela iria durar. E isso significa, portanto, que o risco estará sempre presente. 
As referidas estatísticas têm encoberto um número bem mais dramático, e que não merece menor preocupação. Segundo o INE, entre Março e Setembro morreram mais 7000 pessoas do que seria normal, sendo atribuídas apenas 2000 à COVID. Consultas, cirurgias e rastreios adiados ou cancelados estarão na origem destes números preocupantes. O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, bem como a Ordem dos Médicos acreditam que parte destas mortes se deve às dificuldades de acesso aos cuidados de saúde. Juntemos a esta situação problemática o que se está a passar a nível da saúde mental, com os pedidos de ajuda a disparar nos centros de saúde, serviços de urgência e nas linhas do SNS24 e do INEM. Mas a opinião pública parece estar concentrada apenas nas vítimas do Coronavírus! 
Vivemos tempos de contradições. As autoridades de saúde e responsáveis políticos enunciam, por um lado, que o sucesso da luta contra a pandemia dependerá da união de esforços de cada um de nós como membros de uma comunidade; por outro, apelam a que nos isolemos, que mantenhamos distanciamento social e que muito menos nos toquemos ou troquemos afectos. É o medo. O medo do contágio e da morte. Um medo que, como diz José Gil, embora “acorde a lucidez, e neste sentido possa ser benéfico, encolhe o espaço, suspende o tempo, paralisa o corpo, limitando o universo a uma bolha minúscula que nos aprisiona e nos confunde”[1]. Como o próprio esclarece, trata-se do medo dos outros, e que “o acaso e o contacto passam a ser perigo e ocasião de morte possível, e todo o encontro, um mau encontro. Neste sentido, o outro é o mal radical”. E desta forma os laços sociais e comunitários ficam seriamente comprometidos porque, como o mesmo acrescenta, a epidemia “faz também emergir, à tona da consciência social, o pior das nossas pulsões”[2]
Num artigo sobre o impacto psicológico da pandemia na sociedade, Pedro Teixeira sublinha que ela deixou grande parte da população num estado de exaustão emocional e de desgaste psicológico. O professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho refere que precisamos de alerta e prontidão, mas que temos de diminuir a hostilidade e a desconfiança[3]. Precisamos que a pandemia não nos mude para pior, “que não crie muros sociais, regionais, nacionalistas ou geracionais”, como alerta Inês Cardoso. Em mais um dos seus preciosos textos, a que já nos habitou no JN, a autora apela à consciência de cada um para “não apontar o dedo aos outros, nem procurar culpados a todo o custo, (…) nem deixar que o azedume tome conta das relações no trabalho, na vizinhança, no café ou no supermercado. (…) Ter consciência social, empatia e capacidade de ponderar os efeitos que cada medida causa nos outros. (…) Manter o toque e os afectos com quem importa. Sabendo que não há risco zero, mas que a privação da relação, a solidão e a distância podem ser mais prejudiciais para a saúde do que qualquer vírus”[4]. Não poderia eu estar mais de acordo. 

[1] GIL, José (2020). O tempo indomado. Relógio D´Água: p. 97. 
[2] Idem, p. 97. 
[3] TEIXEIRA, Pedro. O impacto psicológico do coronavírus. Jornal Público: 06/10/2020. 
[4] CARDOSO, Inês. Que a pandemia não nos mude. JN: 07/09/2020.