sábado, 6 de junho de 2015

O Primado dos Exames e o definhar de uma Educação para os Valores


Em Fevereiro deste ano o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicava uma Recomendação intitulada, “Retenção Escolar nos Ensinos Básico e Secundário”. Nela, este órgão consultivo do Ministério da Educação, presidido pelo ex-ministro da Educação, David Justino, manifesta a sua preocupação com a elevada taxa de retenção verificada no nosso país, com uma subida considerável a registar-se no ensino básico a partir de 2011.[1]
Só entre o ano 2011 e 2013 a taxa de retenção verificada no 6º ano de escolaridade duplicou, a que, segundo o CNE, não deverá ser alheia a introdução das provas finais, a partir precisamente do ano lectivo 2011-2012. Também nas transições de ciclo os valores da retenção aumentam, em especial nos 7º e 10º anos, denunciando uma ruptura no grau de exigência, entenda-se, uma não progressividade das aprendizagens na transição do 2º para o 3ºciclo, e entre este e o ensino secundário.
Começando pelos exames de final de ciclo (4º e 6º ano), introduzidos pelo actual ministro da Educação, Nuno Crato, o CNE deixa claro que estes vieram perturbar, para além do normal funcionamento das escolas, o processo de ensino-aprendizagem, com consequências nefastas quer no que toca às taxas de retenção, quer na alteração dos processos de avaliação interna, contrariando o que tem defendido a investigação científica e os próprios normativos. Ou seja, e tal como lembra o CNE, “a forma como se concretiza a avaliação sumativa externa tem contaminado os procedimentos de avaliação interna”. As consequências mais evidentes são, entre outras, “a sobrevalorização das disciplinas sujeitas a exame em detrimento das restantes áreas do currículo; a replicação, em sede de avaliação interna, da estrutura dos instrumentos de avaliação externa, bem como dos respectivos critérios de classificação, e o desenvolvimento da prática sistemática de treino para provas ou para os critérios das provas, nas disciplinas sujeitas a avaliação externa”.
Numa primeira síntese, poder-se-á dizer que a cultura de avaliação das aprendizagens voltada para a classificação e seriação, adquire um carácter penalizador da avaliação, ao invés de se focar na intervenção sobre as dificuldades detectadas. No caso do ensino secundário a situação adquire proporções mais preocupantes, em especial nos cursos científico-humanísticos, uma vez que, e tal como frisa o CNE, “os resultados da avaliação sumativa interna e externa são o critério único de acesso ao ensino superior, na maioria dos cursos. Tal condição tem modelado o ensino secundário à condição de ‘preparação para o ensino superior’, minimizando o valor intrínseco da formação de ensino secundário.”
Resumindo, a avaliação externa tem condicionado a avaliação interna, na medida em que o trabalho docente passou a privilegiar a preparação para os exames, em detrimento de uma escola que promova a curiosidade, desenvolva a inteligência e fomente a criatividade. Pilares fundamentais, segundo António Branco (2015), “da edificação de uma personalidade humana comprometida com o mundo, de cidadãos capazes de intervir activamente na sociedade”.[2]
Atente-se ao exemplo da Finlândia, um verdadeiro modelo de escola cidadã, que tem figurado no topo dos países da OCDE a nível do sucesso nos resultados escolares. A par de uma real autonomia das escolas e dos professores, e não falaciosa como aquela que vivemos no nosso país, na Finlândia os exames só acontecem no final do ensino secundário; o ensino dá-se de forma integrada, com todas as disciplinas colocadas ao mesmo nível de importância; os processos pedagógicos fazem do aluno o centro das atenções, em que a exigência convive em harmonia com os ritmos de aprendizagem diferenciados, que naturalmente se verificam no seio das turmas, e em que o principal desígnio da escola é preparar os alunos para a vida[3].                                                
Num momento em que tanto se reclama a falta de valores e de cidadania na nossa sociedade, como aliás dão conta diariamente os noticiários, é tempo de fazer da escola um lugar para a criatividade e a investigação, para as artes e a cultura, para a educação física e a saúde, para uma educação multicultural, para uma educação para os valores, para a compreensão dos desafios e dilemas contemporâneos, para uma cidadania democrática e participativa. Enfim, para uma educação humanista.




[1] De acordo com os dados do PISA 2012, Portugal ocupa o terceiro lugar dos países da OCDE com uma taxa de retenção mais alta. Anualmente são mais de 150 mil os alunos que ficam retidos no mesmo ano de escolaridade. Cerca de 35% dos jovens portugueses com 15 anos tinham já sido retidos pelo menos uma vez, contra a média OCDE de 13%, e mais de 7,5% apresentam no seu percurso mais de uma retenção.
[2] BRANCO, António (2015). A Universidade desde o princípio. Jornal de Letras, Ano XXXV, nº 1165.
[3] Vale a pena ler a reportagem de Isabel Leiria sobre o sistema de ensino finlandês, publicada na revista do jornal Expresso, do dia 30 de Maio de 2015.