terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Perda de memória ou perda de vergonha

Muitos têm sido os que se dedicam a traçar o perfil psicossociológico do partido Chega. Apesar de opiniões divergentes, que podemos ler e ouvir sobretudo na imprensa, o grosso delas desemboca na convicção de que estamos perante um partido demagógico, boçal e sem escrúpulos. Ora só podemos ver tal exercício de reflexão e comentário, de análise crítica, como algo de muito útil, na medida em que expõe as verdadeiras entranhas desse partido e o perigo que representa para a democracia.
A recente convenção do Chega, decorrida em Viana do Castelo, foi uma magnífica e exemplar montra do que são boa parte dos seus militantes e o que os move. Foi ainda uma mina para os nossos humoristas. Desde o que se assumiu como fascista, passando por aquele que se revia nas ideias de André Ventura, embora as desconhecesse, ou aquele que subiu ao “público” para se dirigir ao “púlpito”, foram vários os intervenientes que, dentro e fora do palco, primaram por performances algo exóticas, capazes de levar à exasperação da turba, mas também de provocar incredulidade nos mais cientes.
A aposta do chega é captar os descontentes e capitalizar o ressentimento de quem se sente esquecido. Para tal, recorre à demagogia, à mentira, à manipulação de números, ao acicatar dos instintos mais primários, enfim, a todo o tipo de truques e artimanhas para iludir os cidadãos mais incautos ou pouco interessados em procurar a verdade, entenda-se, em estar informados. Mas isso dá trabalho, exige leitura, estudo, reflexão, discutir, pensar. Sim, sobretudo pensar. Tarefas a que muitos não se dispõem.
As tácticas utilizadas e os temas eleitos por Ventura e seus apaniguados são típicos da extrema-direita, que já levam mais de um século. Os alvos, que considera “parasitas”, são os de sempre: os estrangeiros, os imigrantes, as minorias étnicas e raciais, aqueles que designa de “subsídio-dependentes”, as elites corrompidas, desde logo os banqueiros. Aí está o homem de faxina, que promete “Limpar Portugal”! Sobre os imigrantes, nunca é demais lembrar o recente relatório do Observatório das Migrações, que dá conta de que em 2022 estes foram responsáveis por um saldo positivo de 1604,2 milhões de euros da Segurança Social. Acrescenta ainda que sem eles alguns sectores da nossa economia paralisariam, já para não falar do seu contributo para o aumento da taxa de natalidade. Mas Ventura está bem ciente de que não está a apontar para os verdadeiros culpados pelo desagrado legítimo de muitos portugueses. E aqui volto aos “descontentes”. Para Fernando Rosas, os problemas dos portugueses, que são comuns aos cidadãos de muitos outros países, resultam do capitalismo neoliberal, responsável por deixar “um rasto de destruição económica e social, com despedimentos, a liberalização do movimento de capitais, a liberalização das relações laborais”, tendo levado à criação de “uma massa de desempregados, de precários, de gente marginalizada, de pequenos proprietários ameaçados, gente que não se sentia representada no sistema político”, sendo aqui onde “a extrema-direita pesca o descontentamento, a raiva, o medo” (DN, 14/01/2024). E aqui entram as promessas inexequíveis, insustentáveis e demagógicas de Ventura, que promete tudo e a todos, sem explicar como, melhor dizendo, fantasiando sobre números, estatísticas, cenários económicos, etc. Puro engodo. E ainda tem, este senhor, o desplante de evocar o nome de Sá Carneiro, que está nos seus antípodas!
Os sucessivos congressos do Chega têm sido marcados por uma retórica e por coreografias que vão sendo pontualmente salpicadas com uma linguagem e símbolos da direita radical histórica. É disto que nos lembra o politólogo António Costa Pinto, que conta com várias obras publicadas sobre ditaduras, fascismo e o Estado Novo. Ventura tem sido pródigo em utilizar lemas do salazarismo, do fascismo italiano e do nazismo. Quem não se lembra do “Deus, Pátria, Família e Trabalho”, este último acrescentado como uma indirecta aos alegados “subsídio-dependentes”? Trata-se, como sublinha Costa Pinto, de uma clara ligação ao Estado Novo (Público, 12/01/2024). Nas presidenciais de 2021, em que Ventura foi candidato, o próprio publicou na rede social Twitter (actual X) uma fotografia sua, que se fazia acompanhar do lema “Um líder, um país, um destino”, uma adaptação de um dos lemas utilizados por Hitler (“Um povo, um império, um líder”). Por mais de uma vez André Ventura levantou em público o seu braço direito em riste, lembrando a saudação romana, que viria a ser adoptada por Hitler.
Este saudosismo não criará espanto a quem está atento e conhece a História do antes e pós-25 de Abril. Como dizia Ana Sá Lopes, “Portugal não acordou de repente com um monte de fascistas, xenófobos e racistas. Sempre cá estiveram.” (Público,14/01/2024). A jornalista responsabiliza PSD e CDS por terem dado refúgio à “direita nostálgica”, acrescentando ainda que as ideias xenófobas sempre existiram na sociedade portuguesa. A título de exemplo, atente-se ao que se pode ler no jornal Observador… Porventura já poucos se lembrarão de um programa da RTP, que foi para o ar em 2006, a que deram o nome de “Os Grandes Portugueses”, e em que os telespectadores eram convidados a votar naquele que consideravam “o maior português de sempre”. O resultado chegaria a 25 de Março de 2007, com a eleição, vejam só, de António de Oliveira Salazar! Confesso que não fiquei muito surpreendido, pois fui ouvindo a miúde e ao longo dos anos, da boca de simpatizantes ou militantes de partidos tidos como democráticos, que fazia falta ao país um Salazar. É caso para dizer que estaremos perante uma perda de memória ou perda de vergonha. Ou então ambas.