quarta-feira, 30 de junho de 2021

Sentir na pele

Chega a ser de indignação o sentimento que me provoca a ligeireza com que muita gente utiliza certos conceitos, com destaque para os de justiça, liberdade ou democracia. Torna-se revoltante o seu mau emprego ou desvalorização, que só pode ser fruto de uma ignorância inaudita ou de um pensamento pérfido. Apenas posso concluir que só quem não sente ou sentiu na pele as consequências da governação de regimes déspotas, é que pode subestimar os valores que tais conceitos representam e, como no caso português, o quanto que custaram a conquistar. Bem vistas as coisas, não surpreende. Numa sociedade que banaliza, quando não estimula, o insulto, a mentira, a xenofobia, o racismo, o ostracismo, a discriminação de género ou sexual, o conluio, enfim, uma lista interminável de formas e atitudes de desrespeito por outrem, tão amplamente veiculadas nas redes sociais e até nalguns media, só se podia mesmo esperar esta triste forma de pensar e de estar na vida.
Vem isto a propósito dos resultados de um estudo recentemente publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian, conduzido pelos investigadores Alice Ramos e Pedro Magalhães, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, intitulado “Os valores dos portugueses”, que por sua vez faz parte de um outro mais alargado, a nível europeu, e que se intitula European Values Study. Como se pode ler na introdução do documento, esses resultados reflectem os valores, as atitudes e as opiniões dos cidadãos acerca de uma multiplicidade de temas centrais na vida quotidiana, como sejam a família, a religião, a política e o trabalho, assim como questões relacionadas com a percepção de bem-estar e felicidade, a moralidade, os movimentos migratórios, o papel de Estado-Providência, as redes sociais ou as alterações climáticas. Sem desmerecer as demais questões aí tratadas, sobressai uma em particular: a avaliação do regime. Segundo o estudo, 37% dos portugueses rejeitam um líder autoritário que não responda perante o Parlamento ou o voto popular, o que significa que a grande maioria dos inquiridos, 63%, admite outras formas não democráticas de governação! Curiosamente, a maior disponibilidade dos portugueses para regimes autoritários, tecnocráticos ou militares coexiste, por outro lado, com uma avaliação crescentemente positiva da democracia! Quase nove em cada dez dos inquiridos afirmam que um sistema político democrático é uma maneira boa ou mesmo muito boa de governar o país. Em resposta à perplexidade ou estupefacção que estes dados poderão suscitar ao mais comum dos mortais, a hipótese avançada pelos investigadores para esta discrepância entre uma adesão sólida à democracia e o recuo na rejeição de formas não democráticas de governação está numa definição imperfeita de democracia entre os inquiridos. Eu não diria ‘imperfeita’, mas sim ‘deficiente’!
Num primeiro impulso, seria levado a dizer que para quem não valoriza ou não reconhece o valor da liberdade ou da democracia, uma estadia, mais ou menos prolongada, num país governado por um regime autocrático ou autoritário seria recomendável. A sugestão é extensível a alguns radicais e populistas, amplamente mediatizados, assim como aos saudosistas do Estado Novo. Mas numa análise mais fria o problema terá logicamente de ser tratado de outras maneiras, porventura mais pensadas, trabalhadas e prolongadas no tempo. Imperativamente, uma delas passará pela educação.
De uma vez por todas, urge abordar estes e outros conceitos/valores na escola, de uma forma regular, analítica, contextualizada, multidimensional, multidisciplinar, suportada numa prática-reflexiva, através dos mais variados projectos e actividades educativas e com múltiplos parceiros. Primazia deverá ser dada ao desmontar das narrativas populistas, segregadoras e demagógicas que borbulham nos palcos mediáticos. Mas enquanto a prioridade se centrar, para muitas doutas almas no seio do corpo docente, no cumprimento obsessivo dos programas disciplinares, quantas vezes ignorando os diferentes ritmos de aprendizagem no seio da turma, na preparação dos alunos para exames, para que depois políticos, governantes e demagogos cavalguem os rankings, ou em iniciativas que não trazem qualquer valor acrescentado à educação cívica das crianças e jovens, iremos continuar a confrontar-nos com resultados idênticos aos que o estudo aqui referido revela.