segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Abstenção: da indignação à acção


Eleições após eleições, a taxa de abstenção tem vindo a aumentar. Nas mais recentes, para a Assembleia da República, bateu-se um novo record: 51,43%. Já nem falemos das Europeias, também deste ano, que se cifrou nuns escandalosos 69,27%!
Conhecidos os resultados de cada acto eleitoral, certo é que nos dias seguintes abundam os artigos de opinião, nos quais se manifesta a maior indignação e repúdio por todos aqueles que se escusam a exercer o seu dever cívico de votar. De nada têm servido os apelos ao voto por parte dos sucessivos Presidentes da República, nem de outros responsáveis políticos. Passadas uma ou duas semanas o assunto é votado de novo ao esquecimento até às próximas eleições. Parece que estamos perante um ciclo vicioso, um mal irresolúvel.
As desculpas para não votar são as costumeiras. Para simplificar, poderíamos agregá-las em dois grupos: um deles, aquele onde se incluem todos os abstencionistas que se apoiam naquele velho e absurdo cliché de que os políticos ou partidos são todos iguais, ou seja, no descrédito da classe política em geral; no outro incluem-se aqueles que não prescindem de passar o dia na praia, no centro comercial, de ir ao cinema ou a qualquer outro lugar de entretenimento, ou simplesmente ficar alapado no sofá. Qualquer um dos casos é revelador de uma ausência total de consciência e dever cívicos. Por isso, mais do que os apelos à mobilização do eleitorado e as efémeras indignações, importa reflectir no que se poderá e deverá fazer, sobretudo ao nível dos mais jovens, pois sobre os mais graúdos não restam grandes esperanças.
A escola poderá certamente dar um contributo importante, senão mesmo decisivo, para contrariar estas taxas de abstenção inauditas. Para tal, impõe-se uma acção pedagógica que implica, desde logo, uma (sempre difícil) mudança de mentalidades no seu interior, com o propósito de convocar os alunos a participar na vida democrática da escola. Que cidadania se espera de uma criança ou jovem que não é convidado a participar directamente, por exemplo, na construção do Regulamento Interno da escola ou no Plano Anual de Actividades? Que pulsão cívica se espera de uma criança ou jovem que não é chamado a ser parte na solução dos mais variados assuntos ou problemas que afectam a escola, e em que ele é parte interessada? Que consciência crítica e cívica se espera de uma criança ou jovem que não é levado a reflectir e a discutir problemas que tocam as sociedades contemporâneas? É verdade que com o fim, há relativamente poucos anos, do modelo de gestão democrática que vigorava nas escolas, em que as direcções eram eleitas de forma colegial, perdeu-se um referencial de democracia participativa. Mas isto são contas de outro rosário…
Não é com a mudança de terminologias ou roupagens, que habitualmente acompanham as rotineiras reformas educativas que surgem ao sabor ou capricho de cada governo, que se mudarão mentalidades. Não é com a criação, melhor dizendo, renomeação de disciplinas de formação cívica que se mudarão comportamentos. Como se tem visto, as modas pegam facilmente, quantas vezes de forma acrítica, no seio das escolas. Há “novidades”, e logo o séquito segue atrás, prestando-se a todo o tipo de experimentalismos, sem calcular os impactos!
Educar para a cidadania implica, sim, que os alunos sejam ouvidos e chamados a participar em diversas iniciativas educativas, venham de dentro ou de fora da escola, e que se traduzam numa participação cívica, bem entendido, numa prática reflexiva e transformadora. E aqui as temáticas podem ser inúmeras, tais como: o ambiente, a igualdade de género, o racismo e a xenofobia, o encontro de culturas, a corrupção, a interioridade, o desenvolvimento económico, a cultura e as artes, o Estado Social, etc. São estas temáticas que, grosso modo, são visadas em muitas das políticas dos governos. Façamos, pois, com que os alunos se vão familiarizando com elas ao longo do seu percurso escolar.
Votar num partido político, votar para eleger um governo é pensar antecipadamente no país que queremos para um futuro mais ou menos próximo. Mais do que um desígnio nacional, é comprometermo-nos com a qualidade da democracia. Claro está que o discurso e as práticas dos políticos e governantes terão que mudar. Que casos como o de nepotismo, corrupção, abuso de poder, enriquecimento ilícito, entre outros, deixem de abrir noticiários. Que as promessas não passem disso mesmo, mas que se parta para a efectiva resolução dos problemas que afectam as pessoas. Que os extensos e intragáveis programas eleitorais deixem de ser um repositório de ficções ou demagogias, para além das omissões. A este propósito, seria interessante iniciar os mais jovens na hermenêutica do texto e discurso político-partidário!