terça-feira, 29 de maio de 2018

O legado do Maio de 68


Comemoram-se os 50 anos do Maio de 68. O que se passou, o que ficou e qual o legado são questões que merecem toda a atenção e reflexão, hoje mais do que nunca.
As semanas conturbadas que a França viveu foram precedidas, e de certa maneira acalentadas, por outros acontecimentos que se vinham registando e mesmo acentuando noutros países, especialmente nos EUA. A guerra do Vietnam, com os seus milhares de mortes de norte-americanos, fez crescer a oposição interna àquele conflito. Para além de desmascarar as mentiras de Washington, mostrou que não só não estava ganha, como revelava a sua barbaridade e os seus custos económicos astronómicos. Os filhos da nação americana iam caindo no campo de batalha, sem um fim à vista. A contestação alastrou-se às universidades, com destaque para a de Columbia, tomando o espaço público. A mobilização contra a escalada imperialista no Vietnam cedo se estendeu a outros países. A este caldo junta-se ainda a luta pelos direitos humanos encetada pelo pacifista e activista Martin Luther King. A sua luta contra a discriminação racial e as desigualdades social e económica acabaria por lhe ditar a morte a 4 de Abril de 1968. Estes e outros acontecimentos fizeram germinar no seio da sociedade, sobretudo nas camadas mais jovens, um sentimento de injustiça e revolta.
Em França, o regime gaullista tornara-se insuportável. O peso de uma sociedade conservadora e autoritária, com uma liderança moral marcadamente católica, o pesadelo das guerras imperialistas e coloniais, o belicismo fomentado pela Guerra Fria, assim como o desencanto com uma civilização industrial/capitalista moderna, criadora de uma sociedade de consumo e individualista, fez estalar o verniz.
Foi a 22 de Março que o movimento estudantil francês arrancara com a ocupação da Universidade de Nanterre, chegando ao Quartier Latin a 2 de Maio, tomando aí maiores proporções. No dia seguinte a Universidade de Sorbonne era tomada pelos estudantes. Depois de várias reuniões e confrontos entre grupos de estudantes rivais, por ordem do reitor a Universidade é evacuada pela polícia, seguindo-se horas de batalha campal. Daqui resultaram dezenas de feridos e centenas de prisões, tendo os distúrbios prosseguido nos dias seguintes. Daí até o movimento extravasar para o mundo laboral, foi um passo. Eis que se dá a gigantesca manifestação de 13 de Maio, seguindo-se uma longa e incontrolada greve geral, que teria um efeito dominó, dadas as sucessivas greves que se seguiram ao longo de semanas, um pouco por toda a França. O movimento reflectiu-se nas artes, na literatura, na música, na filosofia, etc.
Maio de 68 não foi, pois, um movimento de mera euforia iniciada por um grupo de jovens, de forma aleatória ou marginal, de proscritos ou libertinos. Foi algo bem diferente. Algo maior. Alain Krivine e Alain Cyroulnik, num texto publicado no jornal Le Monde (24/01/2018), resumem-no da seguinte forma:
“Para nós, 68 não se reduz a uma revolução cultural nem à libertação sexual, mesmo que, sem dúvida alguma, se tenha dado tudo isso […] foi, sobretudo, 10 milhões de grevistas a ocupar fábricas com as bandeiras vermelhas ao alto, os estudantes a ocupar as suas faculdades e institutos durante semanas, e as pessoas a discutirem em conjunto, por todo o lado. […] Para nós, o Maio de 68 continua a ser o que falta fazer, mas sendo capazes de coordenar as lutas, de suscitar nas empresas e nos bairros, nas cidades e nos campos, um verdadeiro poder das e dos trabalhadores, juntando todas e todos, pessoas não organizadas, associações ou sindicatos, partidos, pessoas com ou sem emprego, franceses ou estrangeiros, que acreditam que outro mundo é possível e que o querem construir, sem fronteiras, sem muros e sem ódio, como afirmava esta consigna de Maio 68: Que se lixem as fronteiras!”
A mobilização internacional contra a globalização neoliberal, a luta por comunidades humanas livres e igualitárias, esse “outro mundo” possível tem sido discutido nos vários encontros promovidos pelo Fórum Social Mundial. Não importa se as roupagens são hoje diferentes. Sabemos que a História não se repete, pois as sociedades reinventam-se com as novas gerações, mas o legado do Maio de 68 está aí. Os últimos anos têm sido denunciadores de um movimento social à escala planetária, que se vai alargando, diversificando e, tal como na década de 60, manifesta-se contra um sistema capitalista, agora mais selvagem e desenfreado, comandado pela finança e pelos mais variados interesses obscuros, que acentua as desigualdades sociais, amentando o fosso ente ricos e pobres; contra o autoritarismo, nacionalismos e xenofobia; contra os novos teatros (e cenários) de guerra (agora com novos protagonistas, que dispensam apresentações!), mas também com novas causas, tais como a defesa do meio ambiente ou a luta pela igualdade de género. A Internet e as redes sociais vieram dar um novo impulso e uma nova forma de intervir no espaço público e na arena política, mobilizando diferentes grupos de activistas que reinventam uma cidadania que se deseja activa, participativa e transformadora de uma sociedade que tem sede de justiça.