quarta-feira, 20 de maio de 2020

Paredes de vidro e liberdade condicionada

É notório o receio de andar na rua. As pessoas olham-se com desconfiança, evitam-se ou mantêm-se à distância. As recomendações diárias das autoridades de saúde, em especial da DGS, parecem estar bem arreigadas na cabeça de cada transeunte. Tão apregoado tem sido o ditame “manter a distância social”, que as pessoas passaram a evitar conhecidos, amigos e até familiares. E sobre estes últimos, atente-se ao suplício pelo qual têm passado os idosos, desde há dois meses, quer os que se encontram institucionalizados, quer os que permanecem nas suas residências, privados da companhia e dos afectos dos seus familiares. Entretanto, as visitas a utentes de lares e unidades de cuidados continuados foram autorizadas a partir desta Segunda-Feira, mas apenas nos estabelecimentos que reúnam condições para que tal aconteça, e com algumas condicionantes. As visitas terão de ser previamente marcadas e ocorrer num espaço próprio, preferencialmente no exterior da instituição, mantendo a distância de segurança de dois metros e respeitando outras e conhecidas regras de segurança e higienização. Além disto, cada utente só poderá receber a visita de uma pessoa uma vez por semana, por um período máximo de 90 minutos! É uma medida que vem apenas atenuar uma realidade dolorosa. Chegam relatos de alguns idosos que dizem preferir morrer da COVID, do que do encarceramento e da solidão aos quais estão votados. Aliás, o JN, no passado dia 12, divulgava um aumento do número de suicídios nos lares, suspeitando-se de que a falta de visitas de familiares poderia estar na sua origem. Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, lembrou ao jornal a fragilidade dos mais velhos, decorrente da saudade e de uma sensação de abandono, o que, segundo o próprio, agrava os problemas mentais, podendo levá-los a tomarem decisões extremas. Especialistas não se cansam de alertar para este problema, que consideram merecer a mesma atenção que qualquer outra doença. Pedro Afonso, psiquiatra e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, já vinha defendendo que os mais idosos “têm o direito de escolher correr o risco [de ficarem infectados]”, pois, como sublinha, “há mais vida para além do confinamento”. O mesmo reforçava que era fundamental que os idosos “fossem novamente visitados e amparados do ponto de vista emocional, sempre adoptando medidas de segurança”. (Público, 10 de Maio). 
Voltando à rua, o aperto de mão foi substituído, entre outras performances, por um aceno, por uma vénia ou um simples olhar contingente, mantendo uma distância que, por vezes e caricaturalmente, chega a ser medida entre passeios. Tenho uma opinião concisa acerca do aperto de mão no actual cenário, mas prefiro não a revelar, pelo menos por enquanto, para não ser apelidado de irresponsável ou de subestimar o risco de propagação do vírus. De um momento para o outro ergueram-se paredes de vidro a separar as pessoas. O confinamento não termina com a saída para o exterior. As pessoas continuam emparedadas, amedrontadas, condicionadas na sua liberdade. E o pior é que este comportamento é, em parte, auto-imposto. Chega a ser burlesco. Não se trata de colocar em causa as recomendações das autoridades de saúde, pese embora as contradições em que por vezes têm sido apanhadas. E já nem vou sequer debruçar-me sobre as opiniões divergentes entre especialistas. A questão parece-me bem mais abrangente. Falamos de liberdade com responsabilidade, é certo, mas sem alienação de direitos consagrados. 
Numa entrevista recente, dada ao DN (9 de Maio), José Rentes de Carvalho caracterizava, de forma cáustica, o comportamento que atrás aludi, e bem assim o momento que atravessamos, da seguinte forma: “Assusta-me ver como as pessoas tão docilmente aceitam medidas que lhes coartam a liberdade, lhes impõem uma quarentena drástica, como as autoridades calam os cientistas que provam a insensatez de tanta obrigação. Assusta-me também a perspetiva de que este ambiente de medo veio para ficar, porque ajuda eficazmente a manter o cidadão assustado, obediente, pronto a denunciar o vizinho que não obedece. Por muito democráticos que sejam ou aparentem ser, todos os governantes sonham com um rebanho dócil, e nenhum é mais agradável do que aquele que sem discutir aceita as ordens do pastor. […] O rebanho aceita a quarentena, a perda de liberdade - temporária, prometem eles -, a perda da vida social, o carnaval das máscaras, a paródia da desinfeção constante, as luvas, o termómetro à entrada do restaurante, o fim dos abraços, dos beijos, dos apertos de mão, enfim, de tudo o que é intrinsecamente humano e mostra de amor, carinho, amizade, vida social. É o mundo que George Orwell previu, um mundo de fracos, medrosos e subservientes”. 
Sem esquecer os dramas resultantes do aumento do desemprego e da pobreza crescentes a que assistimos, entre o deve e o haver, há um longo e sinuoso caminho a percorrer em matéria de direitos, liberdades e garantias. Tal deverá ser feito de forma atenta, crítica, reflexiva e ponderada, de modo a evitar que embarquemos numa espécie de Big Brother que nos desumanize.