terça-feira, 27 de abril de 2021

Do justicialismo

A decisão instrutória do Processo Marquês provocou estilhaços. As manifestações de ódio a José Sócrates e ao juiz Ivo Rosa não se fizeram esperar. A reacção da vox populi era já expectável, uma vez que na sua mente colectiva está bem recalcado o juízo de que os políticos são todos iguais, ou seja, que são todos corruptos e de que a justiça continua a marcar passo. Daqui ao pedido da cabeça do dito juiz foi um curto passo, logo surgindo uma petição a pedir o seu afastamento. Já da parte de políticos e de certos comentadores, sobretudo com formação jurídica, exigia-se que houvesse mais decoro, prudência e seriedade, antes de tomarem o megafone na mão. Uns mais exaltados do que outros apressaram-se a condenar Ivo Rosa na praça pública, chegando ao ponto de haver quem o considerasse “um perigo à solta”, palavras de Marques Mendes no seu comentário dominical, na SIC. Enquanto advogado não lhe cai nada bem, por razões óbvias. Aqueles que dizem que se deve deixar a justiça seguir os seus trâmites, são os mesmos que vêm agora rasgar as vestes na praça pública, condenando juízes, procuradores, tribunais, molduras penais, etc. Tal investida e exasperação, tais discursos apocalípticos não se verificaram relativamente a outros casos de julgamento de políticos e ex-governantes, que viriam a ser absolvidos, ou não, de crimes de que eram acusados, e que muitos bem se lembrarão. Quiçá porque faziam (e ainda farão) parte da mesma irmandade!
Tentando pôr alguma água na fervura e apelar à clarividência, Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, num excelente artigo publicado no Público no passado dia 15 deste mês, fazem notar, e bem, que “as ineficiências e as perplexidades da acção da justiça não podem colocar em causa pilares fundamentais do Estado de direito, como a independência e a autonomia dos juízes. Em democracia, as decisões dos tribunais, além da avaliação pela via do recurso, devem ser criticamente escrutinadas pela sociedade no seu conjunto. Mas são totalmente inaceitáveis abaixo-assinados e outras atitudes persecutórias contra juízes por tomarem decisões que não agradam a determinados grupos”. O clamor que se levantou em torno do ex-Primeiro-Ministro e do juiz Ivo Rosa apenas contribui, como dizem estes académicos, para “enfraquecer a democracia e descredibilizar a justiça”, e que o “poder judicial tem obrigação de rejeitar inequivocamente a ideia de que deve ser “justiceiro” em determinado caso concreto”. Por outro lado, e ainda a respeito de Sócrates, estou inteiramente de acordo com o apelo do vice-presidente da bancada socialista, Pedro Delgado Alves, feito no programa “Sem Moderação”, do Canal Q, para que o partido fizesse uma “introspecção” sobre o percurso do ex-Primeiro-ministro até chegar ao que chegou, subentendendo-se da sua alocução que foram muitos os camaradas que ao longo do tempo fecharam os olhos. No dia seguinte, numa reunião do grupo parlamentar do PS, Pedro Delgado seria silenciado pela líder Ana Catarina Mendes! Outros partidos de poder não terão razão para deleite com o caso Sócrates, pois também eles não se deitam em lençóis imaculados.
Nunca nutri simpatia por José Sócrates. Nunca ele granjeou o meu voto. Tenho a minha opinião (nada abonatória) acerca daquilo de que é acusado no Processo Marquês. Enquanto cidadão interessado na coisa pública, não me privo de tecer críticas a alguns dos seus comportamentos, quer enquanto governante, quer enquanto simples cidadão. Mas daí até diabolizar o sistema judicial vai um grande e perigoso passo que me abstenho de tomar. Este alvoroço a que assistimos, com incitamento e proveito da imprensa tablóide, que promete novos capítulos, é um fertilizante para os populismos, prestando um péssimo serviço à defesa do Estado de direito, à separação de poderes e à própria democracia. Sem dúvida que ainda há muito por fazer para melhorar a justiça. Haja em definitivo honestidade intelectual, seriedade e determinação, livres de querelas e interesses partidários, da parte da classe política parlamentar, ou seja, dos deputados, para dotar o sistema judicial dos meios e recursos necessários, para tornar as leis mais fortes para punir a corrupção e o enriquecimento ilícito ou injustificado, e sobretudo para tornar a justiça mais célere.