terça-feira, 27 de novembro de 2018

Sobre a cultura e a miopia


Desde há cerca de três décadas que ouvimos críticas (justíssimas, diga-se) dirigidas aos sucessivos governos, a respeito da mísera percentagem do PIB recorrentemente atribuída à cultura. É sobre esta questão que se deveria actualmente centrar a atenção, em vez da guerrilha fastidiosa instalada entre os aficionados e os críticos das touradas. A despesa com a cultura nunca passou de escassas décimas percentuais do PIB. Só para ter uma ideia, e segundo dados da Pordata, entre 1995 e 2017 variou entre os 0,1% e os 0,4%. E também ainda não é no orçamento de Estado para 2019 que vamos ver o tão ansiado 1% de despesa (melhor dizendo, investimento) do PIB neste sector. Aliás, desde de 2013 que ininterruptamente ficamos pelos 0,1%, o mais baixo de sempre. Portanto, a “tróica” mantém-se na cultura! Um governo, um país, uma nação que não coloca nas suas prioridades o investimento na cultura, não pode aspirar a níveis elevados de desempenho nos mais variados planos, seja político, económico, educativo ou social.
Ao nível autárquico outras formas de indignação se levantam sobre o tema em questão. Não tanto a respeito do montante atribuído à cultura pelos municípios, mas sim o que dentro da agenda cultural consideram prioritário. Deixando de parte o investimento na construção ou recuperação de equipamentos culturais ou na promoção do património, tradições ou certames do concelho, só para dar alguns exemplos, percebe-se que algumas autarquias têm uma lista de prioridades (porventura alinhada com aquilo que poderá trazer, no futuro, algum retorno eleitoral), no que respeita às artes do espectáculo e às artes visuais. Sobre estas últimas, a minha experiência tem-me dado a conhecer algumas situações pontuais de clara discriminação, nalguns casos revestida de sobranceria, com que algumas delas tratam os artistas, em especial os artistas plásticos, no momento da discussão das condições necessárias para acertar uma eventual exposição.
De um modo geral, e no que me toca, até nem me posso queixar. As várias exposições de pintura que já levei a cabo em vários municípios resultaram de uma compreensão e respeito mútuos. No entanto, pontualmente lido com casos que têm tanto de hilariante como de indigno, ao mesmo tempo que são reveladores da impreparação de certas pessoas para dirigirem um pelouro da cultura. Seja um vereador, seja alguém a quem sejam delegadas competências neste departamento. Alguns amigos, pintores e escultores, vão-me dando naturalmente conta de iguais experiências.
Ora é sabido que em muitas autarquias não faltam recursos nem dinheiro para apoiar certas actividades culturais, muitas delas de qualidade duvidosa, desde que tais satisfaçam as massas… Falamos em valores na ordem das centenas ou milhares de euros. Escuso-me a dar exemplos dessas actividades. Mas quando se trata de uma exposição de artes plásticas, aí surgem as mais variadas restrições, especialmente financeiras, para logo colocar um impasse ou mesmo abortar a realização de tal evento. Passo a dar um exemplo. Para concelhos que distem da minha residência mais de 60/70kms coloco como condição legítima, o pagamento das despesas de deslocação. Na generalidade dos casos, isso traduz-se em montantes que têm variado entre os 50€ e os 150€, dependendo obviamente da distância. Lembro que esses valores (uns trocos para um município!) incluem duas deslocações: uma para a montagem da exposição e outra para a desmontagem. Dá-se o caso que em contactos com algumas autarquias, habitualmente feito por correio electrónico, depois de estabelecer acordo acerca da logística que uma exposição normalmente implica, sempre feito sem qualquer entrave, eis que se segue um silêncio absoluto após a apresentação da condição do pagamento das despesas de deslocação! A inicial conversa simpática e cordial repentinamente dá lugar à retirada. Compreendo o silêncio, pois fosse qual fosse a resposta, seguramente que seria pouco abonatória para as edilidades, pois poria a nu a miopia que nalgumas delas abunda!
Portanto, os munícipes desses concelhos e visitantes ficam privados de fruir da arte, de um sector da cultura, pelo facto de determinado autarca entender que os artistas plásticos não têm, bem entendido, estatuto para colocar tamanha e ousada condição!
E que dizer daquelas autarquias que, para que um artista plástico possa expor num dos espaços sob alçada da autarquia, exigem a oferta de uma das suas obras?! A esses repondo sempre o mesmo: “não ofereço pinturas, vendo-as!”

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Formar para o incerto, preparar para exercício da cidadania

As duas últimas emissões do programa Fronteiras XXI, da RTP, trouxeram a debate duas questões da maior relevância, e sobre as quais se podem estabelecer algumas pontes. Uma das emissões, transmitida no dia 12 de Outubro, teve como tema, “Uma vida, várias carreiras”, tendo-se nela discutido os motivos que levam os jovens a escolher determinado curso superior. A outra, transmitida no passado dia 17 deste mês, apresentava um título na forma de interrogação, a saber, “Jovens de costas voltadas para a política?”. Em ambas, das várias intervenções feitas pelos especialistas convidados e por elementos do público presente, assim como pelas pessoas entrevistadas nas reportagens que habitualmente acompanham o programa, retive algumas das ilações que considerei úteis para a reflexão que aqui desenvolvo.
No primeiro caso, relembrou-se que hoje um curso superior não significa em absoluto uma profissão e que o futuro poderá passar por várias carreiras. Daí, questionava-se a forma como poderiam as instituições do ensino superior preparar os seus alunos para estes desafios, e como estará a ser feita a adaptação às novas exigências do mercado de trabalho. As estatísticas revelam que há cada vez mais portugueses formados em Engenharia, Informática, Gestão, Ciências, ou na área da saúde. Entretanto, o mercado tem dado sinais de que procura, cada vez mais, jovens licenciados ou mestres com pensamento crítico, boas capacidades de comunicação e negociação, capazes de se adaptarem rapidamente a diferentes desafios e com ideias “fora da caixa”. Atendendo a que hoje assistimos a um consenso generalizado de que o futuro deixou de ser perspectivado com um emprego para toda a vida, mas sim como sinónimo de várias experiências profissionais e umas quantas formações permanentes, impõe-se questionar quais as competências que as universidades e politécnicos deverão aprofundar para dotar os jovens de mais e variadas ferramentas para um futuro que se afigura incerto.
Para responder a esta e outras necessidades de âmbito formativo, a Universidade de Lisboa abriu em 2011 um curso que é único em Portugal, e que se trata da licenciatura em Estudos Gerais, que abrange áreas como as Artes, Letras e Ciências, permitindo aos alunos escolher as disciplinas que mais lhe interessam. Este é um exemplo da criação de cursos que misturam disciplinas de ciências e de humanidades, que exploram diferentes temáticas, que dão a devida importância a disciplinas basilares na formação de qualquer jovem, como é o caso da Filosofia, tão necessária para compreendermos o mundo, para questionarmos e reflectirmos sobre uma série de fenómenos políticos, económicos e sociais, alguns deles bastante inquietantes. 
A preocupação em dar resposta ao espaço que as novas tecnologias, as máquinas e a robótica têm conquistado, vindo a extinguir profissões e postos de trabalho, levou a que determinadas entidades, incluindo governos, apostassem em formações que agregassem distintas competências. É o caso do que se verifica na província canadiana de Ontário, que estão a formar os seus jovens em pensamento crítico, criatividade, comunicação, colaboração e empreendedorismo, ferramentas que seguramente farão deles pessoas mais úteis em áreas em que não terão a concorrência das máquinas.
E daqui passo à segunda emissão do programa do Fronteiras XXI, que se debruçou sobre o alheamento dos jovens portugueses para com a política, como o confirmam vários estudos. Estes mostram que a maioria dos adolescentes e jovens não têm interesse na política. Não se revêem nos partidos, são pouco participativos na vida associativa, não lêem notícias nos jornais nem vão à internet aprofundar estes temas. E, apontam alguns dados, até votam menos do que há uns anos. Contudo, e para além de algumas iniciativas no terreno, verifica-se que é na internet que os jovens mais revelam os seus comportamentos cívicos. E são várias as causas que os movem, desde o combate ao desemprego e à precariedade, a protecção do meio ambiente, passando pela defesa da igualdade de género, dos direitos das minorias, etc. Em síntese, são mais as grandes causas do que os partidos que hoje levam os jovens a envolverem-se na sociedade, a exercerem a sua cidadania e, por acréscimo, a lutarem por mais justiça e melhor democracia.
Agregando o que se extrai de mais substancial das temáticas abordadas nas referidas emissões do Fronteiras XXI, e em jeito de reflexão final, podemos concluir que estamos perante um desígnio que não tem mais espaço para adiamentos. Impõe-se dotar os jovens de ferramentas para estarem preparados para responder às transformações que se vão registando no mercado de trabalho, através de uma formação que, para além das competências atrás referidas, comporte imperativamente uma forte componente humanística e ética. Assim, estaremos decerto a contribuir para o desenvolvimento de um espírito crítico e uma pulsão para o envolvimento cívico, para uma acção política que passe pela luta por várias causas, mas sobretudo que combata os ataques à democracia, às liberdades, à soberania e ao Estado de direito, que perigosamente se vão registando um pouco por todo o lado, em parte fruto dos populismos que vão grassando.