quarta-feira, 12 de julho de 2023

Sobre rankings e outros devaneios

Acerca de quatro semanas, uma vez mais foi tornado público o ranking das escolas, para glose da imprensa e comentadores. Relembro que esta espécie de tabela classificativa apenas toma como referência a classificação obtida nos exames nacionais, feitos num curto espaço de tempo, que pode ir de 1h30 a 2h30. Muito se joga neste hiato de tempo. Ficam de fora factores determinantes no sucesso escolar do aluno, tais como a sua condição socioeconómica, explicações ou o meio envolvente no qual está inserida a escola. Para lá daquilo que advogam os que são a favor ou contra a divulgação dos rankings, é frequente o enviesamento consciente e propositado presente em muita da opinião publicada, a respeito deste tema. Daí que considero inconcebível o aproveitamento político-partidário para denegrir a Escola Pública, a favor do ensino privado. A propósito desta questão, há precisamente um ano, num texto com o título “Os rankings não avaliam as escolas”, Elvira Tristão denunciava esta especulação, da seguinte forma: “É pernicioso e redutor usar os rankings para uma certa construção social da excelência e do mérito. Esse exercício conduz a uma certa naturalização da iniquidade, porquanto todos sabemos que genericamente o desempenho dos alunos, dos professores e das escolas depende das características económicas, sociais e culturais do público que serve e do meio envolvente.” (Público, 14/07/2022). E é precisamente esta questão da iniquidade que levanta as mais legítimas preocupações, dado estarmos perante a subvalorização das desigualdades existentes entre alunos, que terá forçosamente repercussões na sociedade. É isto que nos assevera Paulo Guinote, quando salienta que “As desigualdades crescentes no desempenho dos alunos não se reduzem, mas explicam-se em muito pelas crescentes desigualdades existentes na sociedade portuguesa. […] O pior serviço que se pode prestar à Escola Pública é essa fabricação administrativa e artificial de sucesso.” Pois, como lembra, “A desigualdade educativa espelha a desigualdade socioeconómica do país (…).” (JL, nº1376). É o regime meritocrático a fazer o seu caminho, como um vírus que se espalha diligentemente na maior das branduras. Olhamos em nosso redor e vemos as coisas a acontecer naturalmente, sem obstáculos, de forma acrítica, sem cálculo dos riscos e consequências, que desde há muito se vão fazendo sentir, não só dentro da própria escola, como na sociedade. A meritocracia é, como afirma o sociólogo João Teixeira Lopes, “um conto de fadas, a nova moral. Endeusa os vencedores e martiriza quem falha, como se partíssemos todos de condições iguais. É o darwinismo social dos nossos dias. Ao naturalizar-se, a meritocracia é uma espécie de ar que respiramos: coloniza o pensamento e a nossa forma de estar no mundo.” (Visão, Nº1574).
Num livro que recomendo a todo aquele que se dá ao cuidado de pensar a escola e a sociedade, com o título “A Tirania do Mérito”, o seu autor, Michael J. Sandel (2022), alerta para o mundo altamente competitivo em que vivemos, dividido entre vencedores e perdedores. Alerta para o crescendo das desigualdades sociais, a polarização e a culpabilização dos perdedores pelos seus infortúnios. Ao analisar conceitos em torno da ética do estudo, do trabalho, do sucesso e do fracasso, o autor propõe um olhar clínico sobre essas relações. Advoga que a polarização vencedor-perdedor levou à estagnação da mobilidade social, tendo promovido um sentimento generalizado de raiva e frustração, que desperta o protesto populista e a descrença nas instituições, no governo e entre cidadãos. Para Sandel, a meritocracia gera uma complacência prejudicial entre os vencedores e impõe uma sentença
dura aos perdedores.
Para quem, como eu, é contra os rankings, sobretudo a forma como são concebidos, ou seja, apenas com base na nota dos exames, não pode, pelas razões atrás descritas, ser a favor dos quadros de mérito impulsionados pelas escolas. O sistema é o mesmo: alunos que jogam numa mesma “liga”, mas oriundos de “habitats” bem distintos. E claro, no final, só alguns terão a honra de pisar o palco, numa sessão magna, para serem laureados, enquanto os progenitores, directores e outras entidades batem palmas, acompanhadas de loas tecidas aos “vencedores”. E aqui importa reflectir sobre o que por vezes precede este cerimonial, e que chega a tomar contornos anedóticos. Ora para o aluno integrar o quadro de mérito, tem, como é óbvio, de reunir nota máxima a todas as disciplinas ou então uma média tal, que lhe permita fazer parte dele. Já nem vou falar no stresse que isto provoca nalguns alunos, ao ponto de os ver regatear uma nota junto dos professores, tal como já me aconteceu. Ora a decisão cabe a cada Conselho de Turma, que na reunião do final do ano lectivo prepara a dita lista. Dá-se o caso que nesse órgão acontece, por vezes, um professor, de uma determinada disciplina, ser persuadido por alguns dos seus pares para subir a nota que atribuiu a um determinado aluno. Caso contrário, este ficaria fora do quadro de mérito, o que faria com que eventualmente alguns protagonistas se sentissem mal na fotografia!
É o primado do pódio sobre a avaliação séria e criteriosa, da competição sobre a cooperação.