sábado, 22 de março de 2008

Da gestão democrática à gestão
tecnocrática e centralizada

A discussão que se tem produzido em torno da questão da avaliação dos professores tem feito esquecer uma bem mais importante e preocupante. Refiro-me ao modelo de autonomia e gestão dos estabelecimentos escolares do ensino público que o governo pretende implementar, e que dá pelo nome de Regime Jurídico de Autonomia, Administração e Gestão dos Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário. Ufa! Só de citá-lo fiquei… ofegante!
Tal projecto de decreto-lei – curiosamente aprovado pelo Conselho de Ministros em pleno período de férias de Natal, e colocado à discussão pública num reduzido espaço de tempo[1] –, se para os mais vigilantes levanta algumas dúvidas, já para os especialistas em gestão e administração escolar revela várias certezas.
Não me irei debruçar em pormenor sobre o documento em causa, porque alguém bem mais habilitado do que eu já o fez, e com toda a seriedade[2]. A altercação que pretendo levantar tem como principal propósito, convidar o leitor a reflectir sobre algumas ambiguidades e suspeitas que o documento em causa suscita.
No preâmbulo do referido decreto-lei, o governo justifica a revisão do Regime Jurídico de Autonomia, Administração e Gestão das escolas com três objectivos: (i) “reforçar a participação das famílias e comunidades na direcção estratégica dos estabelecimentos de ensino”; (ii) “criar condições para que se afirmem boas lideranças e lideranças fortes”, e (iii) reforçar a autonomia das escolas. Uma consulta ao diploma em vigor, o Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de Maio, permite-nos, desde logo, duvidar da premência de um novo diploma. Como faz notar João Barroso (2008) no seu parecer, as alterações positivas referenciadas «podiam ser introduzidas como revisão do diploma em vigor sem justificar a sua total substituição»[3].
Comecemos pelo primeiro objectivo. Conhecida que é a tradição, no nosso país, em matéria de participação das famílias e da comunidade na dinâmica escolar, bem como as razões a ela inerentes, é caso para manter algumas reservas quanto ao estímulo que o novo diploma diz pretender acalentar. Por outro lado, está ainda por provar que o aumento da representação destes agentes no designado Conselho Geral se venha a traduzir num maior e mais eficaz envolvimento nas responsabilidades educativas. A este respeito, João Barroso (2008) lembra que «mesmo em países onde os direitos de intervenção das famílias na gestão das escolas são superiores, a participação é persistentemente deficitária e os seus efeitos reguladores ficam sempre aquém dos vaticínios do legislador»[4].
Relativamente ao segundo objectivo, não deixa de ser curioso que, apesar de uma recente avaliação externa preconizada pela Inspecção-Geral da Educação ter atribuído uma nota bastante positiva às escolas, quer ao nível da sua organização e gestão, quer ao nível da liderança[5], venham agora falar em lideranças fortes! Por outro lado, e no que respeita ao processo de recrutamento do órgão de gestão e administração (recaída na figura do Director), não se percebe a razão que leva o governo a apostar num “novo” modelo, quando uma experiência anterior, resultante da aplicação do Decreto-Lei 172/91, de 10 de Maio, revelou inúmeras fragilidades. Virgínio Sá (2008) manifesta alguma estupefacção ao referir que «quer o processo de designação, quer a natureza unipessoal do órgão constituem uma ressurreição de uma “solução” que se julgava morta e enterrada após o “arquivamento” do insucedido Decreto-Lei 172/91, de 10 de Maio. Causa alguma estranheza que um processo de recrutamento que já foi experimentado, e objecto de uma “avaliação externa” por parte do Conselho de Acompanhamento e Avaliação criado para o efeito, e que mereceu do referido Conselho uma apreciação negativa, surja agora como um dos pilares para promover “boas lideranças e lideranças fortes”»[6].
Em causa está o abandono de uma liderança colegial para dar lugar a uma liderança individual. Para Licínio Lima (2008), o diploma em questão tem como objectivos «o reforço do controlo central sobre as escolas e a introdução de lógicas tecnocráticas de inspiração empresarial»[7]. Já o referido Conselho de Acompanhamento e Avaliação alertara para o condicionamento da autonomia das escolas (entendida aqui como a possibilidade de participação democrática dos actores escolares no governo da escola) sujeitas à gestão de um órgão unipessoal[8]. E aqui entramos no terceiro objectivo do novo Regime Jurídico de Autonomia, Administração e Gestão das escolas.
Como se pode falar em reforço da autonomia das escolas, quando o que se pretende é efectivar uma concentração de poderes numa só figura (o director), um tentáculo do poder político centralizado, e cercear a liberdade e o espaço de intervenção e participação dos docentes e de outros agentes educativos?
Eis o presente envenenado que o actual governo pretende oferecer à escola pública. Melhor dizendo, aos pais, professores e alunos.


[1] O referido Projecto de Decreto-Lei 771/2007-ME foi aprovado na generalidade em Conselho de Ministros a 20 de Dezembro de 2007, tendo sido anunciada a sua consulta pública até 31 de Janeiro de 2008. Este prazo viria a ser amavelmente prolongado por mais uma semana (!).
[2] Veja-se, por exemplo, o parecer de João Barroso ao Projecto de Decreto-Lei 771/2007-ME, encomendado pelo próprio Ministério da Educação.
[3] BARROSO, João (2008). Parecer ao Projecto de Decreto-Lei 771/2007-ME - Regime Jurídico de Autonomia, administração e Gestão dos Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário. Texto policopiado, p. 10.
[4] Idem, p. 3.
[5] Cf. INSPECÇÃO-GERAL DA EDUCAÇÃO/M.E. (2008). Avaliação Externa das Escolas – Relatório Nacional 2006-2007. Lisboa: Ministério da Educação, p. 14.
[6] SÁ, Virgínio (2008). O futuro ex-novo regime de autonomia, administração e gestão das escolas. Algumas notas soltas. In A Página da Educação, Ano XVII, nº 175, Fevereiro, p. 35.
[7] LIMA, Licínio (2008). A cada escola o seu rosto? Liderança e abertura à comunidade. In A Página da Educação, Ano XVII, nº 176, Março, p. 5.
[8] CONSELHO DE ACOMPANHAMENTO E AVALIAÇÃO/M.E. (1996). Avaliação do regime de direcção, administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário (Decreto-lei nº 172/91, de 10 de Maio). Lisboa: Ministério da Educação, p. 9.

domingo, 2 de março de 2008

Pais responsáveis procuram-se


A opinião pública em geral, em particular aquele público que acompanha os nossos órgãos de (des)informação, desconhece o esforço que os professores têm empreendido para garantir a formação, a educação e o sucesso dos seus alunos. Poderia aqui relatar um número indeterminado de acções que estes profissionais, e em particular aqueles que são directores de turma, têm encetado, desde sempre, para combater o abandono escolar, bem como a luta empreendida em prol da melhoria das aprendizagens dos seus alunos. Pouparei o leitor a essa maçada.
Sem olharem às horas de trabalho extraordinárias, não remuneradas (pois os professores não são mercenários, como alguns opinion makers e algumas figuras da praça pública têm tentado fazer passar através dos media), e por vezes em prejuízo da educação dos seus próprios filhos, os professores têm recorrido ao seu profissionalismo, ao seu altruísmo, enfim, a todas as estratégias e instrumentos de trabalho de que dispõem ou que laboriosamente vão construindo, para garantirem as melhores condições de aprendizagem e de bem-estar dos seus alunos. É por demais evidente que este empreendimento tem crescido na mesma medida em que prospera a desresponsabilização educativa por parte de pais e encarregados de educação. Estes (supostos) agentes educativos não apenas se vêm demitindo progressivamente das suas funções educativas, como ainda por cima têm o arrojo de acusarem os professores pelos males que grassam no nosso sistema educativo. Algumas das políticas ou reformas educativas avulsas, desconexas ou despropositadas, empreendidas pelos sucessivos governos da república, parecem merecer uma atenção residual por parte de alguns pais, quando comparadas com as críticas arbitrárias e generalizadas que têm dirigido ao trabalho docente.
A clarividência parece estar arredada do discurso e das práticas dos primeiros responsáveis pela educação das crianças e jovens. É só ver o que tem sido, por exemplo, o trabalho laborioso do seu mais alto representante, o presidente da Confap[1], o Sr. Albino Almeida, na sua cruzada contra os docentes, de braço dado com a actual responsável pela pasta da educação, a Dra. Mª de Lurdes Rodrigues. Uma aliança que oportunistamente se desfaz, quando se encontra junto dos professores ou dirigentes sindicais, como assistimos no programa da RTP1, “Prós e Contras”, no passado dia 25 de Fevereiro, subordinado aos actuais temas candentes da educação.
Tomemos como exemplo a chamada Escola a Tempo Inteiro[2], uma conquista reivindicada pela Confap, organização que ignora as consequências perniciosas que decorrem do consequente alargamento do ensino formal no 1º ciclo do Ensino Básico. Tivesse o Sr. Albino Almeida, os seus partidários, bem como determinados pais e encarregados de educação, que arcarem, por exemplo, com uma turma de alunos dos 6 ou 7 anos a bocejar e a deitar a cabeça na mesa para um momento (merecido) de descanso, talvez aí reflectissem sobre a hiper-escolarização a que estas crianças têm sido sujeitas. Um pai ou um encarregado de educação que realmente deseja o melhor para o seu educando, pensaria duas vezes antes de apoiar ou fazer propostas avulsas e anti-pedagógicas, e se conhecesse, portanto, o real nível de capacidade de concentração, logo, a disponibilidade para a aprendizagem formal que estas crianças manifestam na parte final da tarde. As actividades de enriquecimento curricular, ou como preferem outros, de prolongamento escolar, têm evidenciado a sobrecarga lectiva e de trabalho a que as nossas crianças têm sido sujeitas.
Talvez um modelo como o proposto por Ariana Cosme e Rui Trindade (2007)[3], os Centros Locais de Educação Básica, seria uma alternativa (entre outras possíveis) ao da Escola a Tempo Inteiro, e daria condições para que se criasse verdadeiramente um espaço cultural, um espaço de animação de tempos livres, um tempo educativo ao invés de um tempo escolar, cumprindo assim uma função sócio-educativa, ao invés do alargamento do espaço de educação formal, como de facto se verifica[4]. Qual a opinião da Confap e do seu presidente a este respeito? É esta a Escola a Tempo Inteiro que os pais e encarregados de educação desejam efectivamente para os seus educandos? Pelo bem das nossas crianças, nós por cá dizemos: não, obrigado.
Então com a notória e inegável demissão das responsabilidades educativas pela generalidade de pais e encarregados de educação, do défice de participação das famílias[5] na vida escolar, ao qual acrescentamos a disposição desregrada do presidente da Confap para acossar os professores, poderemos confiar numa maior intervenção dos primeiros nos destinos da administração e gestão das escolas, tal como alguns pais o desejam? Livra!
A Confap, pela voz do seu presidente, mais não tem feito senão contribuir para criar um clima de desconfiança e um distanciamento entre pais e professores, que em nada abona a favor de uma parceria sustentada na co-responsabilização. O trabalho cooperativo entre estes dois grupos de agentes educativos (diga-se, em abono da verdade, reivindicado pelos professores) que se vinha reforçando, vê-se, actualmente, debilitado com os ataques sucessivos e infundados levados a cabo pelo presidente da Confap e pelos seus fiéis seguidores aos docentes.
Alguém duvida de que os professores trabalham no sentido de garantir o melhor para os seus alunos? Alguém duvida de que estes profissionais mais não querem senão que as crianças e jovens se tornem cidadãos críticos, activos e criativos; que labutam no sentido de formar agentes de mudança, capazes de dar um contributo decisivo na busca de uma sociedade mais justa? Pelos vistos o Sr. Albino Almeida não parece acreditar nestas desígnios! Prefere enclausurar-se nos seus sofismas, contribuir para denegrir a imagem dos professores e para o estabelecimento de um clima de suspeição entre estes e os pais e a sociedade em geral, um comportamento que, no fim, em nada abona a favor do bem dos alunos, como aliás tem hábito de apregoar com a sua habitual petulância.

[1] Confederação Nacional das Associações de Pais. Diga-se, uma organização existente graças ao alto patrocínio do Ministério da Educação, não surpreendendo, por isso, as habituais colagens aos governos, e bem assim, à subscrição da generalidade das suas propostas e medidas.
[2] Criada através do Despacho nº 12591/2006, de 16 de Junho.
[3] Cf. COSME, Ariana & TRINDADE, Rui (2007). Escola a tempo inteiro. Escola para que te quero? Porto: Profedições.
[4] Os Centros Locais de Educação Básica representam, para Cosme e Trindade, um modelo em que as intenções educativas dependem, sobretudo, dos actores (professores, educadores ou animadores) directamente implicados nas acções e projectos educativos, o que não acontece com o projecto da Escola a Tempo Inteiro, que “depende de programas de estudo ou a uma organização e gestão escolar e dos dispositivos de avaliação que se perfilham”. Cf. op. cit., p. 25. Os autores defendem que as actividades de natureza extra-escolar deveriam funcionar em torno de duas áreas maiores: a área de Educação Física e a área de Animação Sócio-Cultural. A segunda englobaria domínios variados, como por exemplo: as expressões artísticas, a educação ambiental, a educação científica, a educação patrimonial, entre outras. Cf. op. cit., p. 44.
[5] Esta é, aliás, uma questão levantada por João Barroso (2008) no seu Parecer ao Projecto de Decreto-Lei 771/2007-ME - «Regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário». Este investigador manifesta algumas reservas quanto à possibilidade de um simples alteração legislativa vir a inverter esta realidade, ou seja, o défice de intervenção das famílias nas dinâmicas escolares.