terça-feira, 22 de novembro de 2022

Pecados do líder

Não se nasce líder. Faz-se líder. Mas nem qualquer um está talhado para sê-lo. E quando algum não tem clarividência suficiente para perceber que não está à altura de o ser, então alguém terá de lho fazer ver.
Tomo o conceito de “líder” num sentido abrangente. Entre outros, poderá tratar-se de um presidente (de junta de freguesia, de câmara municipal, da República, de um conselho de administração, etc.), um primeiro-ministro, um governante ou um director do que quer que seja.
Podem ser imensas e variadas as razões que levem determinada figura a querer assumir uma posição de liderança. Podem ser das mais nobres às mais interesseiras. Certo é que para que tenha sucesso na sua governança terá de revelar idoneidade para assumir o cargo. Mais ainda quando for responsável por um povo, uma comunidade, um grupo ou uma equipa de trabalho que venha a chefiar.
Nos últimos tempos tem sido notícia vários casos polémicos envolvendo políticos e governantes, mais concretamente, sobre supostas incompatibilidades entre o exercício de cargos públicos/governativos e outras actividades privadas ou empresariais. Mas sobre questões legais não me pronunciarei, porque esta não é a minha praia. Apenas tomaria como exemplo o caso que foi mais mediatizado nas últimas semanas, o de Miguel Alves, o agora ex-secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro. Envolto em polémicas, sobretudo relativas ao período em que foi presidente da câmara de Caminha, o adjunto de António Costa acabaria por cair como uma maçã podre. Moral da história: cuidado na hora de escolher os adjuntos!
Voltemos ao início. Dizia eu que não é qualquer um que está talhado para ser líder. Tomarei como exemplo a governação de uma escola, muito embora ele possa ser estendido a outros contextos. Além da evidente necessidade de estar minimamente por dentro da Lei, entenda-se, da legislação em vigor para o cargo e funções que venha a exercer, o líder, vulgo, director, tem o dever de procurar reunir todos os meios necessários para proporcionar as melhores condições de trabalho para a comunidade escolar. E uma dessas condições passa, desde logo, pela imprescindível criação de um clima de empatia. Só assim conseguirá conquistar a confiança e respeito daquela. O líder terá de ter lucidez e conhecimento no momento de priorizar os investimentos em equipamentos, recursos materiais ou recuperação de espaços, tendo a humildade de auscultar os mais directos interessados (professores e alunos), pois é das condições de trabalho de todos os envolvidos, bem como da aprendizagem e formação dos alunos que se trata. Apoiar iniciativas que sejam efectivamente uma mais-valia para as aprendizagens dos alunos, em detrimento daquelas que são puro marketing ou propaganda. Ser imparcial e sério na avaliação e gestão de conflitos ou das mais variadas ocorrências. Por último, e voltando atrás, o líder deve munir-se de adjuntos que se orientem pela mesma bitola.
Se a grande meta de uma escola é, e bem, contribuir para o sucesso escolar dos seus alunos, então neste caso nenhuma destas premissas poderá ser ignorada. Caso contrário, voltamos ao primeiro parágrafo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Sobre a colocação de professores

A falta de docentes continua a atormentar muitas escolas. Cronicamente milhares de alunos vêem-se sem professor, não só pela escassez destes profissionais nalgumas disciplinas, mas também por alguns deles se recusarem a leccionar longe da sua residência, por não poderem suportar as despesas de deslocação ou a renda de uma segunda habitação. Uma decisão legítima. A formação de novos professores é aquilo que se sabe. Muitas das universidades e politécnicos não chegam a abrir cursos por falta de candidatos, e outros há que se iniciam com apenas um punhado deles.
A colocação de professores é feita respeitando uma lista nacional de graduação, ou seja, são primeiro colocados nas escolas, aqueles que têm mais tempo de serviço, logo, os que têm mais experiência de ensino. O Ministério da Educação prepara-se para dar às direcções das escolas a possibilidade de contratarem um terço dos seus docentes. Aquilo que, à partida, poderia ser uma solução para colmatar algumas falhas, acaba por levantar dúvidas quanto à forma como tal processo de recrutamento se venha a realizar. Os sindicatos de professores questionam igualmente a seriedade e isenção de alguns directores no momento desse recrutamento. Receiam que este seja condicionado àquilo que designam de “amiguismo”. Ainda que não se saiba ao certo a forma como venha a decorrer, certo é que é justificada essa desconfiança.
Sobre este tema, o ministro da educação, João Costa, noticiado por vários órgãos de imprensa, referiu o seguinte: "Eu não gosto de partir do princípio que os meus interlocutores são todos corruptos e tenho respeito pelos professores, os directores também são professores, e obviamente será possível desenhar modelos de recrutamento, mesmo quando houver contratação mais local que previne coisas desse tipo. Fazer imputação de suspeitas de corrupção a directores é desvalorizar professores". Em síntese, João Costa refuta a ideia de que os directores são todos desonestos. Esta forma cândida de abordar o assunto, e até com um certo grau de cinismo, pretende lançar uma cortina de fumo para cima de alguns problemas que afectam os professores, em particular os entraves na progressão na sua carreira.
Quando os sindicatos falam em “amiguismo”, sabem bem o que os motiva a utilizar este termo. Também estes não consideram que todos os directores de escola são desonestos, mas é bem conhecida a forma obscura como alguns deles decidem a atribuição da nota da avaliação dos professores no final de cada ciclo avaliativo, em especial no momento da ascensão a escalões sujeitos a quotas. Quem está por dentro sabe que nem sempre os professores mais empenhados, mais dedicados, enfim, mais profissionais, são aqueles a quem lhes são atribuídas as merecidas menções de “Muito Bom” ou “Excelente”. Quantas vezes, estas são reservadas aos aduladores ou àqueles com quem o director tem favores a saldar. Sobre este tema já tive a oportunidade de me debruçar num artigo aqui publicado, no mês de Abril deste ano, e que intitulei de “Educação, as pedras no sapato”. Entre outros males que afectam o sistema educativo português, lembrava precisamente nesse texto o problema da avaliação de desempenho dos professores e do estrangulamento das suas carreiras, não só pelo injusto sistema de quotas para ascender a certos escalões, mas pela forma insidiosa como nalguns casos eram atribuídas as classificações finais.
Ao JN, a 22 de Setembro, Pedro Barreiros, dirigente da Federação Nacional da Educação, lembrava o seguinte: "Sabemos o país em que vivemos, as histórias que nos contam e o que se passa em concreto nas escolas". (…) E sabemos os processos judiciais que temos relacionados com amiguismo e com factores ditos C [cunha]. As coisas têm de ser ditas como elas são", reforçou. O dirigente sindical receia, pois, que o novo modelo de contratação de professores venha a sofrer do mesmo mal que já se verifica na avaliação de desempenho docente.
Não haverá modelos de colocação de professores perfeitos, e certamente o actual não o será, mas aquele que o Ministério da Educação pretende adoptar levanta várias reservas, nem eventualmente será o melhor para solucionar o problema da falta de professores.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Por um jornal

No início de Setembro é comum assistirmos ao encerramento para férias de alguns estabelecimentos comerciais, particularmente os de restauração. Normalmente, cafés, pastelarias e restaurantes encerram, pelo menos por duas semanas, para um merecido período de descanso do pessoal. Só me dou conta disso quando esbarro na porta, dando de caras com um aviso afixado, a dar conta do fecho. Assim aconteceu mais uma vez, no início do mês, ao chegar à porta do café onde habitualmente me desloco, para aí cumprir o meu ritual de leitura do jornal diário (o JN), acompanhado da amiga bica. Que chatice! Logo tratei de procurar outros cafés onde me desloco menos amiúde, que também têm jornais diários, mas para azar dos meus azares também eles estavam encerrados. Continuei o périplo por outros lugares, que raramente visito, mas não fui bem-sucedido. Apesar de abertos, jornal nem vê-lo!
No conjunto de cafés, pastelarias e restaurantes, presumo que o total destes estabelecimentos comerciais na “baixa” aguiarense rodará as duas dezenas. Mais coisa, menos coisa. Pelo que sei e pude constatar são pouquíssimos os estabelecimentos da vila que disponibilizam um jornal diário para os seus clientes. Outros já o tiveram, mas encontraram na COVID uma desculpa a jeito para terminar com as assinaturas. Sei de casos que alegaram que deixaram de comprar o jornal por causa do perigo de contágio da referida doença. O mais curioso é que mantiveram o jornal da terra. E ainda bem. Pelos vistos, com o Notícias de Aguiar não há com que se preocupar. E assim sai uma rima!
Um café ou uma pastelaria não são apenas um espaço para consumo. Também são um lugar de encontro, de convívio ou para um momento de leitura, mais ou menos breve. Muitas pessoas, como é o meu caso, vão ao café especialmente para ler o jornal, acabando por consumir, claro. Habitualmente começo por uma bica, e se me demorar mais um pouco segue-se um cálice de Porto, e já aconteceu até ficar para almoçar. É pena que num país, como o nosso, onde as baixas taxas percentuais de leitura continuam a envergonhar-nos, onde muita gente dá erros ortográficos, gramaticais e de sintaxe, onde grassa muita desinformação e ignorância sobre tantos assuntos relevantes (especialmente nas redes sociais), se dê tão pouca importância à imprensa, neste caso aos jornais.
Por um jornal se conquistam ou fidelizam clientes.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Sobre a estupidez humana

«O problema do mundo é que os estúpidos são
presunçosos e os inteligentes são cheio de dúvidas.» 
Bertrand Russell

Em 1976 Carlo M. Cipolla publicava um pequeno livro, curiosamente não na sua língua materna, o italiano, mas sim em inglês, a que daria o título de “As leis fundamentais da estupidez humana”. Só em 1988 é que este ensaio seria publicado na língua do autor, juntamente com um outro, de 1973, que resultaria num volume intitulado Allegro ma non troppo (“Alegre, mas não muito”). Como é dito no prefácio do primeiro título, escrito por Nassim Nicholas Talleb (edição de 2021, Editora Cultura), o que parecia tratar-se de uma sátira, era na realidade um trabalho académico sério sobre análise económica. De registar que o autor foi professor de História Económica, tendo leccionado em várias universidades.
Segundo Cipolla são 5 as leis fundamentais da estupidez humana, a saber:
1ª – Inevitavelmente, toda a gente subestima sempre o número de indivíduos estúpidos em circulação.
2ª – A probabilidade de uma certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dessa pessoa.
3ª – Uma pessoa estúpida é aquela que causa perdas a outra pessoa ou grupo de pessoas, enquanto ela própria não retira nenhum ganho da acção e pode até incorrer em perdas.
4ª – As pessoas não-estúpidas subestimam sempre o poder destrutivo dos indivíduos estúpidos.
5ª – Uma pessoa estúpida é o tipo mais perigoso de pessoa que existe.
No seu livro, para cada uma destas leis o autor dá vários exemplos que acorrem no dia-a-dia de qualquer pessoa, deixando inclusive algumas sugestões para o indivíduo se proteger da estupidez humana. Quer da sua, quer da dos outros.
Entretanto, gostaria de destacar 3 das 5 leis da lista. Começo pela segunda, pela simples razão do pasmo que poderá (ou não) causar. Para Cipolla, ser-se estúpido é algo determinado pela natureza e não por forças ou factores culturais, e sustenta-o da seguinte forma: “É-se estúpido da mesma forma que se é ruivo; pertence-se ao conjunto dos estúpidos da mesma forma que se pertence a um grupo sanguíneo. Um homem estúpido nasce como homem estúpido por determinação da Divina Providência.” À parte a ironia, visto por este prisma parece-me que a estupidez acaba por ser uma fatalidade para muita gente! Passando à terceira lei, Cipolla define ‘estúpido’ como alguém que prejudica os outros sem obter qualquer ganho para si próprio. De facto, o qualificativo parece assentar que nem uma luva. Sobre a quarta lei, o autor chama a atenção para as consequências de subestimar os estúpidos. Neste caso, o mesmo adverte para o seguinte: “Podemos ter a esperança de conseguir ultrapassar as maquinações dos estúpidos e, até certo ponto, poderemos mesmo consegui-lo. Porém, devido ao seu comportamento errático, não podemos prever todas as acções e reacções dos estúpidos e, em breve, seremos pulverizados por jogadas imprevisíveis do parceiro estúpido.”
Para ajudar a compreender e a defendermo-nos da estupidez humana, presente em inúmeros contextos do nosso cotidiano, Cipolla criou um modelo de análise, traduzido no gráfico a seguir apresentado. Neste gráfico o comportamento das pessoas é dividido em 4 categorias: Inteligentes; Bandidos; Desamparados e Estúpidos. Como se vê, os estúpidos ocupam a parte inferior esquerda do gráfico, por oposição aos inteligentes, que ocupam a parte superior direita do mesmo.




A forma como em cada um dos 4 espaços as relações sociais se desenvolvem, com ganhos ou perdas individuais ou colectivas, é ilustrada no livro com vários exemplos, que não vou agora e aqui elencar. O livro, além das suas reduzidas dimensões (11x17cm), tem apenas cerca de cinco dezenas de páginas para ler, numa linguagem muito clara. Vale a pena ler esta preciosa obra. Quanto mais não seja para nos precavermos da estupidez!

terça-feira, 31 de maio de 2022

Linha vermelha

Com o título “WhatsApp: a nova arma dos pais”, a revista Expresso, do dia 20 de Maio, edita um longo e interessante artigo, assinado pelas jornalistas Isabel Leiria e Joana Bastos, que analisa os efeitos do desenvolvimento da tecnologia na relação entre pais e escola, com o contributo de testemunhos de professores, pais, especialistas, entre outros. Segundo as autoras, aquela aplicação de mensagens instantâneas e chamadas de voz, se por um lado aproximou os pais da escola, também é verdade que veio criar situações de abuso e conflito. Uma maior participação e envolvimento dos pais nos assuntos que dizem respeito aos seus educandos é louvável e até desejável. Diria mesmo, imprescindível. Mas quando esse envolvimento se faz de forma desregulada e, pior de tudo, ultrapassando o limite das suas competências, aí entramos em terreno perigoso. Esta é uma situação que já decorre há vários anos, mas que se agravou com a pandemia e com o confinamento dela decorrente, mantendo-se até à data.
Com o WhatsApp, os professores, mas muito em particular os Directores de Turma, passaram a estar sob permanente escrutínio por partes dos encarregados de educação. Para tal têm contribuído as “assembleias de pais”, entretanto criadas, quantas vezes apenas para aí se fazerem insinuações, acusações recíprocas ou dirigidas a professores, desencadear insurgências, isto tudo feito sem moderador, sem filtros e por detrás de uma cortina. Alguns pais revelam inclusive falta de respeito pela vida privada dos professores, ao contactá-los a qualquer hora do dia, incluindo fins-de-semana.
No tempo em que o contacto entre pais e professores se dava apenas presencialmente, olhos nos olhos, as reuniões faziam-se geralmente com respeito e polidez. Hoje, apesar de estas ainda acontecerem, muitos pais, quantas vezes por comodismo, optam pelo contacto por meios digitais, como o WhatsApp.
Através deste a postura dos pais tornou-se, como sublinha Paulo Guinote, muito abusiva em termos psicológicos. Tal como descreve este professor, “os pais atuam como matilha e fazem ameaças de queixas dos professores porque não deixaram o filho ir à casa de banho, por exemplo”. Este é apenas um entre outros exemplos mesquinhos com que um professor se confronta hoje em dia.
Georgina Torrado fala-nos de um não problema que facilmente se transforma numa bola de neve, desencadeado por pura especulação de um determinado pai. Esta professora refere-se ao que diz ser uma contaminação da informação, e que se por um lado acha que os pais têm o direito de querer saber e perguntar, por outro têm de perceber que há limites. Sublinha, e bem, que os professores não têm de explicar à exaustão os seus métodos, estratégias e opções, porque, e como explica, “o que se passa na escola não é fruto do acaso; é discutido e trabalhado entre os professores”.
A autoridade do professor tem vindo a ser posta em causa num crescendo preocupante. A pressão e as ameaças a docentes tornaram-se, infelizmente, correntes. Em tempos idos a autoridade dos docentes raramente era questionada. Hoje o tom e a forma de abordagem são outros, tendo o contacto virtual contribuído muito para que se chegasse ao estado em que se encontram as relações entre pais e professores/escola. Como bem refere Benedita Salema, também docente, hoje em dia “comunica-se de forma mais leviana, mais agressiva, com termos e frases que os pais nunca usariam numa reunião presencial. Cara a cara, as pessoas tendem a ser mais cuidadosas (…). Agora, são muito mais impulsivas e irreflectidas”.
Hugo Rodrigues, pediatra, acusa o excesso de zelo dos pais sobre os filhos, levando-os a uma intervenção exagerada na vida escolar destes, com prejuízo para o seu crescimento. Para o especialista, “as crianças têm de perceber que cada contexto em que se movem tem as suas autoridades. Em casa são os pais, nos clubes os treinadores e nas escolas os professores e funcionários. É importante que os pais deixem os filhos resolver os problemas com a autoridade de cada um desses espaços, sem a sua intromissão. Têm de confiar e perceber que não são os donos da verdade e que não têm de estar sempre a contestar, quais treinadores de bancada. Caso contrário, estão a contribuir para minar o poder dessas autoridades”.
Na mesma direcção vão as declarações da psicóloga Margarida Matos, quando denuncia a ingerência abusiva das famílias no espaço escolar. Para esta especialista em comportamento adolescente, “os filhos não são flores de estufa que tenham de ser protegidos de tudo, nomeadamente dos professores, e nos casos por vezes relatados de abusos a escola tem de ter modos de se regular sem um take over [controlo] por parte dos grupos de pais (…)”, e que a sobreprotecção “atrasa o processo de autonomia e responsabilização dos jovens, tornando-os dependentes e pouco resistentes a qualquer frustração”. Enquanto seres humanos, os professores têm naturalmente os seus defeitos, comentem erros. Mas jamais a sua autoridade poderá ser posta em causa, pois os próprios estão bem cientes da sua missão, que se poderia resumir no desejo do sucesso dos seus alunos. E aqui está uma linha vermelha que qualquer professor deve considerar intransponível. No meu caso em particular, nunca o permiti e jamais o permitirei.

terça-feira, 26 de abril de 2022

Educação, as pedras no sapato

João Costa, agora promovido a ministro da Educação, conhece bem a casa. Durante os últimos seis anos, onde ocupou lugar na Secretaria de Estado do ministério, foi o principal obreiro de algumas das políticas educativas mais emblemáticas, com destaque para a flexibilização curricular e a Educação Inclusiva. Não admira, pois no que respeita a conhecimentos sobre educação e o sistema de ensino estava (e está) bastante acima de Tiago Brandão Rodrigues, o seu antecessor. Não foi apenas um homem de gabinete mas também de terreno. Poucas terão sido as escolas que não foram visitadas pelo próprio. Apesar de o preferir a Brandão Rodrigues nos destinos da Educação, tal não significa que nele aposte todas as fichas. Veremos quais as suas capacidades de negociação com sindicatos, dirigentes escolares, autarquias e outras entidades ligadas à educação, o seu empenho em resolver os problemas mais prementes, assim como o seu peso político dentro do executivo de António Costa.
O programa de governo, entretanto aprovado, não deixa boas perspectivas, desde logo porque deixa de fora uma série de problemas que se arrastam há demasiado tempo, e que comprometem a estabilidade e a qualidade das escolas e do próprio sistema de ensino.
À cabeça dos problemas a resolver no curto/médio prazo, com medidas entretanto anunciadas, está a falta de professores, que se tem vindo a agravar. Urgente será também rever o regime de recrutamento, a precariedade docente, um regime específico de aposentação, acabar com a enorme e inconsequente burocracia que sobrecarrega os professores, rever a tabela salarial, de modo a que finalmente lhes sejam atribuídas remunerações decentes, justas, consentâneas com as enormes responsabilidades e os encargos financeiros que a profissão acarreta. E porque falamos de valorização da carreira de professor, importa, aqui, começar por denunciar o modelo de avaliação docente vigente, envolto de controvérsia, por ser altamente penalizador e permeável a interesses nebulosos.
O que resulta desse modelo anacrónico é tão-só um estrangulamento da carreira, imposto por um sistema discriminatório de cotas, que limita e atrasa as progressões, e uma desvalorização do trabalho docente. Acresce o facto de que nem sempre as melhores classificações (de ‘muito bom’ ou ‘excelente’) são atribuídas aos melhores professores, daí resultando, como diz Alberto Veronesi, uma desmotivação de quem trabalha e uma condecoração de quem melhor bajula (Público, 8/07/2021). Este autor traz à superfície uma realidade sentida por quem conhece bem o sistema de ensino por dentro, traduzindo-a da seguinte forma: “a maior promiscuidade é o facto de muitas vezes quem avalia nem sequer conhecer o avaliado. Ao fim ao cabo, a avaliação é feita por “achismos”, opiniões externas ao relatório e simpatias pessoais”. Eu acrescentaria ainda a falta de idoneidade por parte de alguns dos avaliadores. Como se não bastasse, alguns dos professores, que legitimamente se sentem lesados na sua avaliação e se predisponham a recorrer, sujeitam-se a chantagens ou ameaças por parte dos seus directores. É este o estado de democraticidade e de liberdade que impera nalgumas escolas. Facilmente poderão deduzir, em muitos casos, o ambiente de desconfiança reinante no seio do corpo docente, comprometendo o imprescindível trabalho colaborativo, com evidentes prejuízos para as aprendizagens. Como alerta Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares, este modelo de avaliação tornou-se “um dos maiores limitadores ao bom funcionamento das escolas (Público, 23/02/2022).
E por falar em directores, importa referir outro dos problemas do sistema educativo: o actual modelo de gestão escolar. Um modelo que, como diz Paulo Guinote, “chama autonomia à subserviência hierárquica” (Público, 18/11/2021). Isso mesmo, o director acaba por ser uma espécie de comissário obsequioso do Ministério da Educação. Daqui resulta, por parte de um número deles, um certo despotismo, onde as visões unipessoais sobrepõem-se à vontade colectiva. Santana Castilho considera estarmos perante uma “supremacia crescente do caciquismo paroquial na gestão das escolas” (Público, 19/01/2022). Mais recentemente referiu-se a elas como “mundos de venenosos interesses miudinhos e subservientes” (Público, 9/04/2022). Elvira Tristão fala-nos em “lideranças tóxicas”, defendendo, e bem, um modelo de administração e gestão escolar “com enfoque na valorização das lideranças intermédias, na colegialidade colaborativa e num sistema de accountability inteligente, assente nos valores da democracia colaborativa, da transparência e da justiça” (Público, 9/04/2022).
Estas são algumas das pedras no sapato que urge retirar, de modo a que a caminhada se faça sem percalços e leve a Educação a bom porto.

terça-feira, 22 de março de 2022

Um preço a pagar

Numa realidade paralela à guerra insana e atroz que se vai desenrolando em território ucraniano, outra “guerra” se regista nalguns órgãos de informação nacionais, situação que de resto acontece noutras latitudes.
Nos últimos tempos assiste-se a uma polarização entre os que apontam toda a responsabilidade do conflito armado a Putin e os que acham que a origem do problema está do lado ocidental, em especial dos Estados Unidos/NATO. Com contornos tribais, os beligerantes de cada um dos lados vão brandindo argumentos, quantas vezes pródigos em desonestidade intelectual, sendo prolíferos os ataques ad hominem. Nalguns casos é confrangedor assistir à forma como alguns comentadores mascaram as palavras, para não ferirem as susceptibilidades do lado da barricada em que se posicionam.
Os noticiários, ornados de títulos sensacionalistas, assim como os programas de debate, dedicam-se quase em exclusivo à guerra na Ucrânia, comentada por uma plêiade de peritos em armamento e estratégia militar, relações internacionais, geopolítica, História das Nações e tudo o mais.
Outras guerras e desgraças, noutros continentes, praticamente deixaram de ser notícia. Quiçá por decorrerem em outras geografias. Ou então por se tratar de outras nacionalidades, etnias ou religiões. Alguém se lembra da Síria, Afeganistão, Iémen, Sudão ou Mianmar, só para citar alguns exemplos? E dos refugiados de guerra do continente africano e médio oriente, que entretanto passaram para o fundo da fila em países que fazem fronteira com a Ucrânia, ou os que se mantêm enjaulados em guetos? Já pouco ou nada se fala da Covid, do próximo governo, da seca, das alterações climáticas e de tantas outras questões que nos importam. Tudo parece estar apostado em manter as pessoas condoídas com o que se passa na Ucrânia, prolongando, deste modo, os níveis de preocupação, ansiedade, medo, depressão.
As notáveis manifestações e caravanas solidárias a que temos vindo a assistir, que exaltam o lado bom do coração humano, começam, pouco a pouco, a desviar-se para outro tipo de sentimentos e atitudes. A comoção, a compaixão e a solidariedade começam a dar lugar à indignação com o aumento dos preços dos combustíveis, energia e bens essenciais. Feitas as contas, algumas pessoas parecem agora relutantes a pagar a factura das sanções económicas impostas à Rússia e que, como já se previa, começaram a fazer ricochete. Aliás, disso nos dá conta a mais recente sondagem da Aximage para o DN, JN e TSF, em que uma maioria (62%) revela não estar disposta a pagar o “caderno de encargos” da guerra. Pois, mas este será o preço a pagar pela manutenção de uma Europa em paz (que alguns julgavam eterna), com Estados livres e democráticos, que nos últimos anos têm sido acossados por forças e partidos extremistas. Teremos certamente que fazer escolhas, rever a nossa forma de viver, discernir o útil do fútil, definir o que é prioritário, enfim, repensar o nosso estilo de vida. Assumir a solidariedade na sua plenitude é assumir os seus custos.
Hoje, no nosso país, como em muitos outros, felizmente gozamos de liberdade e de democracia, graças à luta e às privações e sacrifícios de outros que nos antecederam. Um legado obtido, graças ao combate e resistência de muitos que, num passado relativamente recente, sofreram na pele a prisão, a tortura e até a morte impostas por um regime totalitário. Hoje cabe-nos a nós a mesma entrega às mesmas causas, bem como a outras, se quisermos garantir um presente estável e seguro e um futuro próspero para os que por cá continuarem e aos que ainda hão-de vir.
Por outro lado, e como já se anuncia, caberá à União Europeia, aos Estados e aos governos tomar as medidas necessárias para reforçar os apoios sociais aos mais carenciados, às empresas que lutam pela sobrevivência, assim como aos refugiados de guerra, naturalmente fazendo opções, nem sempre fáceis, do que será prioritário em termos de investimento público e do relançamento da economia.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O consumo de cultura

Com a atenção mediática virada para o conflito na Ucrânia terá passado despercebido a muita gente um estudo nacional pioneiro, acabado de publicar, de superior interesse. Intitulado “Inquérito às práticas culturais dos portugueses”, o estudo, de 2020, encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian ao Instituto de Ciências Sociais, traça um retracto dos consumos culturais em território nacional.
Não farei uma análise alargada, nem pouco mais ou menos, pois, para além de ele estar acessível na Internet a qualquer pessoa interessada em consultá-lo, importa-me especialmente destacar algumas das suas conclusões, que me parecem mais relevantes. De salientar que o inquérito teve como amostra representativa um público com 15 ou mais anos de idade, e que os domínios pesquisados abarcam consumos culturais através da Internet, da televisão e da rádio; práticas de leitura em formato impresso e digi­tal; frequência de bibliotecas, museus, monumentos históricos, galerias de arte, etc.; idas ao cinema, concertos e espectácu­los ao vivo e participação artística e capitais culturais. Numa última nota, e como é ressalvado no estudo, o surgimento da epidemia veio forçosamente afectar o funcionamento do sector cultural e alterar um conjunto de variáveis de análise, fazendo com que o trabalho de campo, realizado nos últimos meses de 2020, fosse adaptado, de forma a traduzir as mutações em curso. Em relação a práticas culturais desenvolvidas em espaços que esti­veram encerrados devido à Covid-19, o inquérito teve como período de referência os 12 meses anteriores ao início da pan­demia.
Logo no seu prefácio o estudo enuncia que o seu principal objectivo é “fornecer às instituições culturais uma grelha de leitura sobre os seus públicos, atuais e de futuro, e dar um contributo para a produção de políticas públicas inovadoras”. Veremos se e de que forma será aproveitada esta preciosa informação para despertar e mobilizar a população para o consumo e envolvimento em actividades culturais. Um pouco mais adiante pode ler-se que “os resultados traduzem a história recente do país, os seus pontos fortes e as suas fraquezas, as suas vantagens comparativas, mas também os seus desequilíbrios educativos, económico e geográficos”. De facto, uma das conclusões indica que, na hora de escolher entre o “pão para a boca” e um livro ou uma ida a um espectáculo, para muitas famílias a opção é óbvia! Mesmo assim, para muita gente que tem condições económicas, a cultura e as artes não são uma prioridade.
De todas as práticas culturais atrás descritas, apenas cingir-me-ei ao domínio da leitura, sobretudo pela sua relevância e implicações em contexto escolar e educativo. Para tal, transcrevo, quase na íntegra, a parte da síntese dos resultados apresentados numa brochura do estudo referente ao item “Leitura e Bibliotecas”:
- A percentagem de inquiridos portugueses que, no último ano, não leram qualquer livro impresso é de 61%;
- A larga maioria dos inquiridos portugueses (68%) lê livros por pra­zer, percentagem que se eleva entre os mais idosos e os de mais baixa instrução. Os que menos prazer retiram da leitura (43%) são os jovens dos 15 aos 24 anos, precisamente os que mais lêem para estudar ou realizar trabalhos escolares (45%);
- As escolhas de leitura são fortemente influenciadas pelas redes sociais, sejam elas offline ou online: 43% das recomendações surgem dos círculos da família, amigos e colegas de trabalho; 16% de comen­tários de amigos nas redes sociais online e 10% buscam-se em sites de redes sociais virtuais especializados na leitura e avaliação de livros;
- Na sua infância e adolescência, a maioria dos inquiridos não bene­ficiou de estímulos à leitura gerados em contexto familiar. Nunca os pais ou qualquer outro familiar os acompanharam a uma livraria (em 71% dos casos), a uma feira do livro (75%) ou a uma biblioteca (77%); nem tão-pouco lhes ofertaram um livro (47%) ou os deleitaram com a leitura de um livro de histórias (54%). Porém, os inquiridos mais jovens e aqueles cujos pais têm ou tinham qualificações académicas superiores reconhecem, com mais frequência, esse apoio familiar. São dados que denunciam a persistência de assimetrias sociais na criação de hábitos de leitura, mas também sinalizam uma mudança. O facto de os jovens de hoje terem pais mais escolarizados do que os das gera­ções mais velhas e, por isso mesmo, mais sensíveis ao valor cultural da leitura evidencia um importante elo de transmissão geracional: a democratização do acesso à educação potencia ganhos culturais nas gerações sucessoras.
Para terminar, facilmente podemos concluir que há muito a fazer para inverter estes resultados e que ninguém, nem nenhuma entidade, está isento de responsabilidades nesta matéria.

NOTA: No recente levantamento de algumas das restrições ligadas à pandemia, decididas pelo governo, e contra a opinião de vários especialistas, lamentavelmente as máscaras irão manter-se obrigatórias nas salas de aulas ainda durante mais algumas semanas, prolongando, deste modo, as penalizações que os alunos têm sofrido nas suas aprendizagens, no seu equilíbrio emocional e, bem assim, na sua saúde mental.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Temperaturas elevadas

As previsões para 2022 vão manter-se. Continuaremos com temperaturas elevadas, dando assim continuidade a um já longo período cálido. 

Poderia recuar até ao primeiro governo de António Costa, ao de Passos Coelho e Paulo Portas, ou ainda mais atrás, ao de Sócrates. Mas não vou tão longe, fico-me por 2019, pelo segundo governo do ainda primeiro-ministro. Primeiro deu-se a retirada do Bloco de Esquerda em 2020, depois a do PCP nos finais de 2021. E assim, a meio da legislatura, perderam-se as bases de apoio que sustentavam o governo socialista. Não vou dissertar acerca dos responsáveis sobre a sua queda, com o chumbo do Orçamento de Estado para 2022, pois muito já se disse e se escreveu sobre o tema. Cada qual fará o seu juízo, havendo certamente algo ainda por apurar em matéria de culpas e responsabilidades.
Sendo certo que ao longo do Portugal democrático, que já leva quase cinco décadas, sempre existiram lutas e tensões entre esquerda e direita, os últimos anos marcam um acentuar da polarização entre ambos os campos partidários. Dirão alguns que é a sede de poder. Talvez! Dirão outros que são os extremos que se acentuam e que perturbam a “harmonia” do centro. Outros ainda advogam que se deverá à embriaguez nalguns sectores políticos e económicos, provocada pelos milhões dos fundos europeus que estão a caminho. Sejam lá quais forem as razões, perspectiva-se que o mercúrio continuará bem acima das temperaturas amenas.
Passando às eleições que estão à porta, os debates entre candidatos serviram essencialmente de palco para se dirigirem aos seus eleitorados. Vimos e ouvimos muita demagogia, populismo, arruaça, promessas irrealistas, etc. Não quero com isto dizer que os debates foram desinteressantes. De modo algum. Houve momentos esclarecedores, candidatos (poucos) que revelaram dominar vários dossiês, que desenvolveram um discurso coerente, sustentado, com elevação, sérios e intelectualmente honestos. Vimos ideias inovadoras e exequíveis. Para mim perdeu quem enveredou pela demagogia, mentira ou soberba.
No que concerne a programas eleitorais, há para todos os gostos. Vão desde calhamaços (quem os lerá!?) até um número de páginas inferiores a muitos prefácios de várias obras literárias. Com ideias diferentes para o país, uns são mais (neo)liberais, outros mais conservadores, outros mais ou menos progressistas, outros ecológicos, e ainda mais um com “mãozinha de reaça” (como lembra o “Fado de Alcoentre”, de Fernando Tordo), cheio de dislates, vacuidades e que está permanentemente em reformulação, conforme as conveniências ou circunstâncias. Entre o realista, o ideológico ou o distópico, o eleitor tem bem por onde escolher.
Quanto a sondagens, apenas dizer que se assemelham a um equalizador. Os partidos andam num sobe e desce. Esperemos pela sondagem certeira, a do dia 30 de Janeiro.
Mas a questão premente é saber como se irá compor o xadrez pós-eleitoral. Perspectiva-se uma fragmentação partidária na designada “casa do povo”, com partidos a ganhar deputados e outros a perdê-los. Seguramente assistiremos à migração de votos entre partidos, em parte devido ao apelo ao “voto útil” por parte de PS e PSD. Veremos se tudo acabará por redundar num berbicacho, tal como alertou Marcelo Rebelo de Sousa. Atentaremos aos arranjos parlamentares que se farão e com que condições de governabilidade. Veremos ainda qual o peso da pandemia na taxa de abstenção, que de eleição para eleição tem vindo preocupante e lamentavelmente a aumentar.
Como disse, e independentemente dos resultados eleitorais, as temperaturas vão manter-se elevadas!
Já agora, não se esqueçam de votar.