sexta-feira, 24 de julho de 2020

Do Estado-providência ao Estado-vigilância


“Uma epidemia é um fenómeno social
que tem alguns aspectos médicos”.
Rudolf Virchow

A COVID-19 trouxe mudanças significativas no comportamento dos cidadãos, algumas delas bem preocupantes. Durante o confinamento, o medo gerado pela pandemia começou por levar as pessoas a açambarcar bens de primeira necessidade, como se não houvesse amanhã. O papel higiénico esgotou nas prateleiras de muitos supermercados! Os livros, não. Exceptuando os que não tinham outra alternativa senão deslocarem-se para o seu local de trabalho, o isolamento em casa foi ocupado, nalguns casos, com o teletrabalho, nas lides de casa, a ajudar os filhos nas tarefas escolares, e para muitos dos que não os tinham, foi passado nas redes sociais. Os mais velhos viram o seu isolamento reforçado, com todas as consequências nefastas por demais conhecidas. As medidas de combate à pandemia, recomendadas pelas autoridades de saúde, cedo, e de um modo geral, foram adoptadas sem grande questionamento por parte das populações. As pessoas passaram a olhar-se, e ainda se olham, com desconfiança, resultando em incómodos indisfarçáveis. Evitar aglomerações, uso de máscara, etiqueta respiratória e distanciamento social faziam e ainda fazem parte da lista de recomendações. A “cotovelada” passou a ser, porventura, a forma mais usual de cumprimentar, especialmente entre os homens. O aperto de mão foi banido! Sobre esta resolução tenho sido tentado a escrever um artigo, desfiando sobre o burlesco daí resultante. Por enquanto, aludo apenas à seguinte situação: atendendo-se aos cuidados ditados pela ética respiratória, e na ausência de máscara, sublinho, sugiro ao leitor que reflicta sobre a distância que dista entre duas pessoas que se cumprimentam com os cotovelos e aquela que se verifica num aperto de mão! Juntemos-lhe, claro está, a questão da desinfecção/lavagem das mãos, situação que, grosso modo, já entrou na rotina das pessoas.
O aperto de mão tem uma vasta simbologia, tem uma ética inerente, é um gesto de urbanidade, aproxima ou reaproxima pessoas, sela contractos, projectos, visões, fideliza amizades, vidas, etc. Pode representar um gesto de humanismo. E todavia, o momento actual bani-o. Sobre esta realidade, Bernard-Henri Lévy diz-nos, com lamento, o seguinte: “este hábito que se impôs, ao que parece sem grande pesar, de nunca mais dar apertos de mão: não foi um belo gesto de cortesia que se viu proscrito? um sinal de solidariedade republicana, promovido pela Revolução Francesa e pelo espírito de 1789, que passou a ser banido? e se a coisa durar, se decidirmos tomar-lhe o gosto, se a excepção vier a tornar esse hábito caduco, numa época em que pouco falta para que a desconfiança de todos por todos prospere, não será isso um triste retrocesso?”[1]
Mas a COVID trouxe algo bem mais inquietante. Temos ouvido recorrentemente que o vírus não escolhe classe social. Mas a realidade tem demonstrado que este quadro não é de todo fiel. Ivan Krastev lembra que as sociedades dilaceradas por diferentes tipos de desigualdade têm sido as mais atingidas. Toma como exemplo os EUA, em que os dados evidenciam que o rendimento e a raça (aquilo que o autor designa de «condições preexistentes») desempenham um importante papel em determinar quem morre[2]. Numa alusão a uma conversa recente, tida com o cientista político Stephen Holmes, Krastev comenta que o seu interlocutor considera que “a pandemia enfatiza a desigual «distribuição do perigo» na sociedade – mobilidade descendente para o túmulo –, em vez de apenas a distribuição desigual de recursos e oportunidade para a mobilização ascendente”[3].
Outra forma de discriminação que o vírus da COVID trouxe prende-se com os mais velhos. Estes sentem-se ameaçados pelo comportamento negligente dos mais jovens, que ameaça prolongar o seu isolamento. Ora tal resulta num conflito e num forte impacto na dinâmica intergeracional. Junte-se a vigilância, seja da vizinhança ou das autoridades, e a denúncia, anónima ou não, e temos os ingredientes certos para alimentar o medo, algo do qual os populistas e nacionalistas tentam sempre tirar partido para a sua promoção. Como ironiza Bernard-Henri Lévy, trata-se de “uma vida em que aceitávamos, com entusiasmo ou resignação, a passagem do Estado-providência ao Estado-vigilância”[4]. Krastev sublinha ainda que a pandemia não só reforçou e amplificou as divisões sociais e políticas existentes, como também foi causa de novas. Exemplifica-o com o resultado das medidas de confinamento aplicadas em muitos países, em que o chamado “distanciamento social” constituiu, para muita gente, um luxo da classe média. Para outros, e voltando aos EUA, significa “comunismo”, posição defendida pelos opositores ao confinamento, com a chancela de Donald Trump.
Esta distopia em que vivemos acabou por colocar a democracia em suspenso, pondo em causa o próprio Estado de direito, como é exemplo claro o que se passa na Hungria, assim como em muitos outros países de regimes políticos variados, especialmente nos de cunho autocrático ou ditatorial. Preocupa a forma dormente e acrítica como algumas sociedades encaram esta forma de governo. Não me parece de todo desadequada aos dias de hoje a reflexão, com mais de século e meio, do político Proudhon, quando diz que “ser governado significa ser observado, inspeccionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, cercado, doutrinado, admoestado, controlado, avaliado, censurado, comandado (…)”[5].


[1] LÉVY, Bernard-Henri (2020). Este vírus que nos enlouquece. Guerra & Paz: p. 60
[2] KRASTEV, Ivan (2020). O futuro por contar. Objectiva: p.49 e 51.
[3] Idem, p. 49.
[4] Idem, p.80.
[5] PROUDHON, Pierre-Joseph (1851). L'idée générale de la révolution au XIXe siècle. Garnier Frères, Libraires.