sábado, 16 de agosto de 2008

Balanço de uma estadia nos Hautes-Alpes

A primeira surpresa surge com a chegada a Briançon. Trata-se da mais alta vila da Europa, situada nos chamados Hautes-Alpes, a 1.326m de altitude. De uma arquitectura medieval, recheada de monumentos, muralhas e de ruas e casas típicas, esta vila, património mundial, está repleta de atractivos que convidam os seus visitantes a uma estadia agradável e convidativa para inúmeras aventuras ou descobertas. Estas poder-se-ão desenrolar ao nível do património, da cultura ou da natureza. A história de Briançon está marcada por invasões, batalhas, incêndios, reconstruções e outros acontecimentos que despertam a curiosidade a todos aqueles que se interessam pelo desenvolvimento das civilizações e pela cultura em geral.
Mas o que na verdade me traz cá são os momentos vividos nesta zona e que marcam um momento precioso nas minhas andanças pelas montanhas. O curso de alpinismo ministrado pela Escola Espanhola de Alta Montanha que viria a frequentar nesta zona situada a sudoeste dos Alpes franceses, para além dos conhecimentos preciosos que me proporcionou ao nível de práticas de técnicas alpinas, fez-me granjear alguns amigos que não esquecerei, alguns dos quais eu espero voltar a encontrar e partilhar projectos de montanha. Num grupo de catorze elementos (onze formandos e três formadores) contavam-se, para além de dois portugueses (eu e um companheiro de montanha), catalãs, valencianos, tenerifenhos, um basco, um navarro e dois galegos. Imaginem a mescla de culturas! Apesar de características particulares, contava-se algo de comum a toda esta equipa: a boa disposição e a paixão pela montanha. O período de formação, decorrido ao longo de uma semana, para além das práticas de aprendizagem, fica particularmente registado por episódios marcados pelo humor, por alguns momentos insólitos e pelo espírito de camaradagem sentido. Este último aspecto merece toda a consideração, pois quem vive na ou para a montanha sabe que ele é imprescindível para atingir as metas que são previamente traçadas quando pretendemos levar a cabo um projecto de ascensão de uma determinada montanha.
A alta montanha impressiona, faz-nos sentir pequenos e, por isso, mais cautelosos. O deslumbramento pela natureza envolvente não nos pode ofuscar a lucidez. Temos de aprender a ler os sinais que ela nos dá, muito embora nem sempre sejam evidentes. Aqui residem os riscos que, dentro do possível, devem ser calculados. A nossa determinação e prudência devem jogar-se de forma a encontrar o equilíbrio. Foi com esta máxima que, no final do curso, decidi atacar a mais alta montanha do sudoeste dos Alpes franceses, a Barre des Écrins (4.101 m), situada no denominado Parque National des Écrins.
De uma configuração e beleza ímpar, a Barre des Écrins é uma montanha que exige uma preparação e alguns conhecimentos técnicos que não se podem descurar. Quando ascendida pela face norte, tal como o fiz, esta termina com um recorrido de cerca de 1.000m de aresta rochosa, com alguns lanços de gelo e neve, que exige técnicas de escalada apuradas e cuidados redobrados pelos diversos perigos que se colocam ao alpinista. Refiro-me ao desprendimento de gelo (dos chamados Séracs), a caída de pedras e um precipício vertical de centenas de metros do lado sul da referida aresta.
A ascensão até à parede onde se inicia a parte de escalada e, de seguida, a aresta, fez-se com tranquilidade e na companhia do meu companheiro de cordada, Carlos Filipe. A partir daqui, e por dificuldades técnicas deste, segui em solitário, apesar do aumento da pressão psicológica. O primeiro sinal estava dado. A partir daqui os cuidados deveriam ser redobrados. Porque são únicos e íntimos não vou relatar os momentos que vivi, enfim, tudo aquilo que me passou pela cabeça, logo que me apercebi que a empresa iria exigir de mim muita prudência, frieza e calculismo. Uma escalada em solitário como a que empreendi, aos olhos de alguns poderá significar coragem, aos olhos de outros, loucura. Para mim nem uma coisa nem outra, apenas determinação e… “seja o que Deus quiser”. O cume chamava por mim, e, quando lá cheguei, agradeci com a humildade que se impõe, traduzida num momento de emoção que se apoderou de mim de uma forma desabrida. Emoções indescritíveis e uma grande lição de alpinismo e de vida …
A descida foi muita cansativa. Ao esforço e cansaço acumulado com a subida, juntava-se alguma desidratação e uma semana de muito desgaste físico, resultante do curso e das poucas horas de sono. Tínhamos pela frente uma marcha com um desnível de 2.227m até chegarmos ao parque onde tínhamos estacionado o automóvel. Apenas fizemos umas breves paragens, primeiro para recolhermos as nossas mochilas de expedição que tínhamos deixado logo no início da ascensão, para nos alimentarmos e tirar umas últimas fotografias.
Fica um sentimento de missão cumprida e, passado poucos dias… saudades.