terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O consumo de cultura

Com a atenção mediática virada para o conflito na Ucrânia terá passado despercebido a muita gente um estudo nacional pioneiro, acabado de publicar, de superior interesse. Intitulado “Inquérito às práticas culturais dos portugueses”, o estudo, de 2020, encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian ao Instituto de Ciências Sociais, traça um retracto dos consumos culturais em território nacional.
Não farei uma análise alargada, nem pouco mais ou menos, pois, para além de ele estar acessível na Internet a qualquer pessoa interessada em consultá-lo, importa-me especialmente destacar algumas das suas conclusões, que me parecem mais relevantes. De salientar que o inquérito teve como amostra representativa um público com 15 ou mais anos de idade, e que os domínios pesquisados abarcam consumos culturais através da Internet, da televisão e da rádio; práticas de leitura em formato impresso e digi­tal; frequência de bibliotecas, museus, monumentos históricos, galerias de arte, etc.; idas ao cinema, concertos e espectácu­los ao vivo e participação artística e capitais culturais. Numa última nota, e como é ressalvado no estudo, o surgimento da epidemia veio forçosamente afectar o funcionamento do sector cultural e alterar um conjunto de variáveis de análise, fazendo com que o trabalho de campo, realizado nos últimos meses de 2020, fosse adaptado, de forma a traduzir as mutações em curso. Em relação a práticas culturais desenvolvidas em espaços que esti­veram encerrados devido à Covid-19, o inquérito teve como período de referência os 12 meses anteriores ao início da pan­demia.
Logo no seu prefácio o estudo enuncia que o seu principal objectivo é “fornecer às instituições culturais uma grelha de leitura sobre os seus públicos, atuais e de futuro, e dar um contributo para a produção de políticas públicas inovadoras”. Veremos se e de que forma será aproveitada esta preciosa informação para despertar e mobilizar a população para o consumo e envolvimento em actividades culturais. Um pouco mais adiante pode ler-se que “os resultados traduzem a história recente do país, os seus pontos fortes e as suas fraquezas, as suas vantagens comparativas, mas também os seus desequilíbrios educativos, económico e geográficos”. De facto, uma das conclusões indica que, na hora de escolher entre o “pão para a boca” e um livro ou uma ida a um espectáculo, para muitas famílias a opção é óbvia! Mesmo assim, para muita gente que tem condições económicas, a cultura e as artes não são uma prioridade.
De todas as práticas culturais atrás descritas, apenas cingir-me-ei ao domínio da leitura, sobretudo pela sua relevância e implicações em contexto escolar e educativo. Para tal, transcrevo, quase na íntegra, a parte da síntese dos resultados apresentados numa brochura do estudo referente ao item “Leitura e Bibliotecas”:
- A percentagem de inquiridos portugueses que, no último ano, não leram qualquer livro impresso é de 61%;
- A larga maioria dos inquiridos portugueses (68%) lê livros por pra­zer, percentagem que se eleva entre os mais idosos e os de mais baixa instrução. Os que menos prazer retiram da leitura (43%) são os jovens dos 15 aos 24 anos, precisamente os que mais lêem para estudar ou realizar trabalhos escolares (45%);
- As escolhas de leitura são fortemente influenciadas pelas redes sociais, sejam elas offline ou online: 43% das recomendações surgem dos círculos da família, amigos e colegas de trabalho; 16% de comen­tários de amigos nas redes sociais online e 10% buscam-se em sites de redes sociais virtuais especializados na leitura e avaliação de livros;
- Na sua infância e adolescência, a maioria dos inquiridos não bene­ficiou de estímulos à leitura gerados em contexto familiar. Nunca os pais ou qualquer outro familiar os acompanharam a uma livraria (em 71% dos casos), a uma feira do livro (75%) ou a uma biblioteca (77%); nem tão-pouco lhes ofertaram um livro (47%) ou os deleitaram com a leitura de um livro de histórias (54%). Porém, os inquiridos mais jovens e aqueles cujos pais têm ou tinham qualificações académicas superiores reconhecem, com mais frequência, esse apoio familiar. São dados que denunciam a persistência de assimetrias sociais na criação de hábitos de leitura, mas também sinalizam uma mudança. O facto de os jovens de hoje terem pais mais escolarizados do que os das gera­ções mais velhas e, por isso mesmo, mais sensíveis ao valor cultural da leitura evidencia um importante elo de transmissão geracional: a democratização do acesso à educação potencia ganhos culturais nas gerações sucessoras.
Para terminar, facilmente podemos concluir que há muito a fazer para inverter estes resultados e que ninguém, nem nenhuma entidade, está isento de responsabilidades nesta matéria.

NOTA: No recente levantamento de algumas das restrições ligadas à pandemia, decididas pelo governo, e contra a opinião de vários especialistas, lamentavelmente as máscaras irão manter-se obrigatórias nas salas de aulas ainda durante mais algumas semanas, prolongando, deste modo, as penalizações que os alunos têm sofrido nas suas aprendizagens, no seu equilíbrio emocional e, bem assim, na sua saúde mental.