sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A chucha digital

Esta feliz expressão, enunciada a respeito da crescente dependência das redes sociais por largos milhões de utilizadores em todo o mundo, é utilizada por Tristan Harris, ex-designer de ética do Google, num documentário intitulado “The social dilema”, estreado na Netflix no dia 9 de Setembro. Conta com a participação de especialistas no campo das tecnologias da informação e comunicação, que estiveram envolvidos na origem da realidade virtual, e que assumiram lugares de topo no Google, Facebook, Twiter, Instagram, Snapchat, Youtube, Linkedin, Pinterest, Mozilla, Firefox, etc. Um deles é precisamente Tristan Harris, outro é Justin Rosenstein, formador e programador da Google e Facebook. Juntam-se ainda Jaron Lanier, músico e cientista de computação, Shoshana Suboff, da Harvart Business School, e Edward Tufte, da Universidade de Yale.
Sem descurar alguns dos aspectos positivos das redes sociais, o documentário começa por elencar um conjunto de efeitos negativos resultantes do seu uso, começando, desde logo, pela viciação. Somam-se o isolamento, depressões, bullying, suicídios, síndrome da Dismorfia de Snapchat (transtorno psicológico que leva as pessoas, em particular os jovens, a procurarem cirurgias para se parecerem com as selfies filtradas), passagem da era da informação para a da desinformação (onde se incluem as fakenews), capitalismo de vigilância, crescimento do populismo, tribalismo, ataque à democracia, corrosão do tecido social, eleições pirateadas, roubo de dados, controlo e manipulação de cada um dos nossos passos (gostos, conversas, preferências, etc.). 
O fascínio da Internet e das redes sociais teve como corolário o controlo e manipulação dos seus utilizadores. Com alguma ironia, Edward Tufte observa que só há dois ramos que chamam os clientes de “utilizadores”: drogas ilegais e software. Para aqui chegar bastou a incansável e ininterrupta sedução dos gigantes tecnológicos para captar a atenção daqueles, sendo o seu modelo de negócios, manter as pessoas coladas ao ecrã. Quais cobaias de um exercício pensado e programado de manipulação comportamental. Trata-se do tal capitalismo de vigilância. Como diz Justin Rosenstein, “Somos o produto. A nossa atenção é o produto que é vendido a anunciantes”. No mesmo sentido vão as palavras de Harris, quando lembra um ditado, que diz: “Se não pagas pelo produto, então és o produto”. 
As observações dos vários intervenientes no documentário têm como propósito central denunciar o perigoso impacto das redes sociais na vida das pessoas e na própria civilização. A sedução daquelas, até agora conseguida com sucesso, faz-se, como diz Harris, num ambiente tecnológico baseado em vícios e manipulações. Referindo-se às experiências de contágio em grande escala do Facebook, feita através de mensagens subliminares, Shoshana Suboff faz notar que podemos afectar o comportamento e as emoções do mundo real, sem despertar a consciência do utilizador. 
Um pouco por todo o mundo são por demais conhecidos vários exemplos de populistas e ditadores que se servem, para benefício próprio, das redes sociais como um instrumento privilegiado de polarização política, de disseminação da mentira, de incitamento ao ódio, à violência, ao revanchismo, de descredibilização da ciência e das instituições democráticas, pondo em xeque a própria democracia, o Estado de Direito e bem assim a paz social. Para Douglas Murray, “a Internet, e as redes sociais em particular, erradicaram o espaço que existia entre linguagem pública e privada. As redes sociais revelaram-se uma forma superlativa de cristalizar novos dogmas e esmagar as opiniões contrárias exactamente quando mais precisávamos de as ouvir”[1]. É, de certa forma, o relegar da alteridade. 
Jaron Lanier perspectiva um futuro com pessimismo, se nada mudar. O autor do livro “Ten arguments for deleting your social media accounts right now” (“Dez argumentos para apagar a sua conta de rede social agora mesmo”) salienta que “se continuarmos com o actual estado por, digamos, mais 20 anos, provavelmente destruiremos a nossa civilização devido à ignorância. Não devemos conseguir enfrentar o desafio das alterações climáticas. Provavelmente degradaremos as democracias do mundo para que caiam numa espécie de disfunção autocrática bizarra. Provavelmente arruinaremos a economia global. Provavelmente não sobreviveremos. Eu vejo como sendo existencial”. Os sinais e os exemplos, por demais evidentes, pululam por toda a parte! 
Dos 8 aos 80, recomendo vivamente o visionamento do documentário.

[1] MURRAY, Douglas (2020). A insanidade das massas: como a opinião e a histeria envenenam a nossa sociedade. Edições Desassossego: p. 113.