terça-feira, 27 de novembro de 2018

Sobre a cultura e a miopia


Desde há cerca de três décadas que ouvimos críticas (justíssimas, diga-se) dirigidas aos sucessivos governos, a respeito da mísera percentagem do PIB recorrentemente atribuída à cultura. É sobre esta questão que se deveria actualmente centrar a atenção, em vez da guerrilha fastidiosa instalada entre os aficionados e os críticos das touradas. A despesa com a cultura nunca passou de escassas décimas percentuais do PIB. Só para ter uma ideia, e segundo dados da Pordata, entre 1995 e 2017 variou entre os 0,1% e os 0,4%. E também ainda não é no orçamento de Estado para 2019 que vamos ver o tão ansiado 1% de despesa (melhor dizendo, investimento) do PIB neste sector. Aliás, desde de 2013 que ininterruptamente ficamos pelos 0,1%, o mais baixo de sempre. Portanto, a “tróica” mantém-se na cultura! Um governo, um país, uma nação que não coloca nas suas prioridades o investimento na cultura, não pode aspirar a níveis elevados de desempenho nos mais variados planos, seja político, económico, educativo ou social.
Ao nível autárquico outras formas de indignação se levantam sobre o tema em questão. Não tanto a respeito do montante atribuído à cultura pelos municípios, mas sim o que dentro da agenda cultural consideram prioritário. Deixando de parte o investimento na construção ou recuperação de equipamentos culturais ou na promoção do património, tradições ou certames do concelho, só para dar alguns exemplos, percebe-se que algumas autarquias têm uma lista de prioridades (porventura alinhada com aquilo que poderá trazer, no futuro, algum retorno eleitoral), no que respeita às artes do espectáculo e às artes visuais. Sobre estas últimas, a minha experiência tem-me dado a conhecer algumas situações pontuais de clara discriminação, nalguns casos revestida de sobranceria, com que algumas delas tratam os artistas, em especial os artistas plásticos, no momento da discussão das condições necessárias para acertar uma eventual exposição.
De um modo geral, e no que me toca, até nem me posso queixar. As várias exposições de pintura que já levei a cabo em vários municípios resultaram de uma compreensão e respeito mútuos. No entanto, pontualmente lido com casos que têm tanto de hilariante como de indigno, ao mesmo tempo que são reveladores da impreparação de certas pessoas para dirigirem um pelouro da cultura. Seja um vereador, seja alguém a quem sejam delegadas competências neste departamento. Alguns amigos, pintores e escultores, vão-me dando naturalmente conta de iguais experiências.
Ora é sabido que em muitas autarquias não faltam recursos nem dinheiro para apoiar certas actividades culturais, muitas delas de qualidade duvidosa, desde que tais satisfaçam as massas… Falamos em valores na ordem das centenas ou milhares de euros. Escuso-me a dar exemplos dessas actividades. Mas quando se trata de uma exposição de artes plásticas, aí surgem as mais variadas restrições, especialmente financeiras, para logo colocar um impasse ou mesmo abortar a realização de tal evento. Passo a dar um exemplo. Para concelhos que distem da minha residência mais de 60/70kms coloco como condição legítima, o pagamento das despesas de deslocação. Na generalidade dos casos, isso traduz-se em montantes que têm variado entre os 50€ e os 150€, dependendo obviamente da distância. Lembro que esses valores (uns trocos para um município!) incluem duas deslocações: uma para a montagem da exposição e outra para a desmontagem. Dá-se o caso que em contactos com algumas autarquias, habitualmente feito por correio electrónico, depois de estabelecer acordo acerca da logística que uma exposição normalmente implica, sempre feito sem qualquer entrave, eis que se segue um silêncio absoluto após a apresentação da condição do pagamento das despesas de deslocação! A inicial conversa simpática e cordial repentinamente dá lugar à retirada. Compreendo o silêncio, pois fosse qual fosse a resposta, seguramente que seria pouco abonatória para as edilidades, pois poria a nu a miopia que nalgumas delas abunda!
Portanto, os munícipes desses concelhos e visitantes ficam privados de fruir da arte, de um sector da cultura, pelo facto de determinado autarca entender que os artistas plásticos não têm, bem entendido, estatuto para colocar tamanha e ousada condição!
E que dizer daquelas autarquias que, para que um artista plástico possa expor num dos espaços sob alçada da autarquia, exigem a oferta de uma das suas obras?! A esses repondo sempre o mesmo: “não ofereço pinturas, vendo-as!”

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Formar para o incerto, preparar para exercício da cidadania

As duas últimas emissões do programa Fronteiras XXI, da RTP, trouxeram a debate duas questões da maior relevância, e sobre as quais se podem estabelecer algumas pontes. Uma das emissões, transmitida no dia 12 de Outubro, teve como tema, “Uma vida, várias carreiras”, tendo-se nela discutido os motivos que levam os jovens a escolher determinado curso superior. A outra, transmitida no passado dia 17 deste mês, apresentava um título na forma de interrogação, a saber, “Jovens de costas voltadas para a política?”. Em ambas, das várias intervenções feitas pelos especialistas convidados e por elementos do público presente, assim como pelas pessoas entrevistadas nas reportagens que habitualmente acompanham o programa, retive algumas das ilações que considerei úteis para a reflexão que aqui desenvolvo.
No primeiro caso, relembrou-se que hoje um curso superior não significa em absoluto uma profissão e que o futuro poderá passar por várias carreiras. Daí, questionava-se a forma como poderiam as instituições do ensino superior preparar os seus alunos para estes desafios, e como estará a ser feita a adaptação às novas exigências do mercado de trabalho. As estatísticas revelam que há cada vez mais portugueses formados em Engenharia, Informática, Gestão, Ciências, ou na área da saúde. Entretanto, o mercado tem dado sinais de que procura, cada vez mais, jovens licenciados ou mestres com pensamento crítico, boas capacidades de comunicação e negociação, capazes de se adaptarem rapidamente a diferentes desafios e com ideias “fora da caixa”. Atendendo a que hoje assistimos a um consenso generalizado de que o futuro deixou de ser perspectivado com um emprego para toda a vida, mas sim como sinónimo de várias experiências profissionais e umas quantas formações permanentes, impõe-se questionar quais as competências que as universidades e politécnicos deverão aprofundar para dotar os jovens de mais e variadas ferramentas para um futuro que se afigura incerto.
Para responder a esta e outras necessidades de âmbito formativo, a Universidade de Lisboa abriu em 2011 um curso que é único em Portugal, e que se trata da licenciatura em Estudos Gerais, que abrange áreas como as Artes, Letras e Ciências, permitindo aos alunos escolher as disciplinas que mais lhe interessam. Este é um exemplo da criação de cursos que misturam disciplinas de ciências e de humanidades, que exploram diferentes temáticas, que dão a devida importância a disciplinas basilares na formação de qualquer jovem, como é o caso da Filosofia, tão necessária para compreendermos o mundo, para questionarmos e reflectirmos sobre uma série de fenómenos políticos, económicos e sociais, alguns deles bastante inquietantes. 
A preocupação em dar resposta ao espaço que as novas tecnologias, as máquinas e a robótica têm conquistado, vindo a extinguir profissões e postos de trabalho, levou a que determinadas entidades, incluindo governos, apostassem em formações que agregassem distintas competências. É o caso do que se verifica na província canadiana de Ontário, que estão a formar os seus jovens em pensamento crítico, criatividade, comunicação, colaboração e empreendedorismo, ferramentas que seguramente farão deles pessoas mais úteis em áreas em que não terão a concorrência das máquinas.
E daqui passo à segunda emissão do programa do Fronteiras XXI, que se debruçou sobre o alheamento dos jovens portugueses para com a política, como o confirmam vários estudos. Estes mostram que a maioria dos adolescentes e jovens não têm interesse na política. Não se revêem nos partidos, são pouco participativos na vida associativa, não lêem notícias nos jornais nem vão à internet aprofundar estes temas. E, apontam alguns dados, até votam menos do que há uns anos. Contudo, e para além de algumas iniciativas no terreno, verifica-se que é na internet que os jovens mais revelam os seus comportamentos cívicos. E são várias as causas que os movem, desde o combate ao desemprego e à precariedade, a protecção do meio ambiente, passando pela defesa da igualdade de género, dos direitos das minorias, etc. Em síntese, são mais as grandes causas do que os partidos que hoje levam os jovens a envolverem-se na sociedade, a exercerem a sua cidadania e, por acréscimo, a lutarem por mais justiça e melhor democracia.
Agregando o que se extrai de mais substancial das temáticas abordadas nas referidas emissões do Fronteiras XXI, e em jeito de reflexão final, podemos concluir que estamos perante um desígnio que não tem mais espaço para adiamentos. Impõe-se dotar os jovens de ferramentas para estarem preparados para responder às transformações que se vão registando no mercado de trabalho, através de uma formação que, para além das competências atrás referidas, comporte imperativamente uma forte componente humanística e ética. Assim, estaremos decerto a contribuir para o desenvolvimento de um espírito crítico e uma pulsão para o envolvimento cívico, para uma acção política que passe pela luta por várias causas, mas sobretudo que combata os ataques à democracia, às liberdades, à soberania e ao Estado de direito, que perigosamente se vão registando um pouco por todo o lado, em parte fruto dos populismos que vão grassando. 

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O espectro dos “ismos”


Há muito tempo que vêm prosperando. Eles estão aí: populismo, nacionalismo, racismo, proteccionismo e outros “ismos”. São crescentes as manifestações xenófobas e racistas que se vão registando e alastrando no seio da Europa, tal como se verifica noutros continentes, especialmente no americano.
Nos últimos anos a extrema-direita tem vindo a crescer em vários países, ao ponto de ter aumentado o seu número de deputados nos respectivos parlamentos, e até mesmo integrado governos. O caso mais recente ocorreu nas eleições legislativas da Suécia, com o partido de extrema-direita, o SD (Partido dos Democratas), a tornar-se a terceira força no parlamento, graças a um discurso securitário, anti-imigração e limitador dos direitos soci­ais. Imagine-se, o país de Olof Palme, que ao longo de décadas representou um dos bastiões da social-democracia europeia e um paradigma do Estado social!
Embora o problema já venha muito detrás, agudizou-se em 2015, com a chegada massiva de emigrantes, sobretudo do norte de África, fugindo da fome e da miséria, bem como dos conflitos armados, especialmente da guerra da Síria. Embora esse êxodo viesse a decrescer significativamente até à data, tal não impediu que partidos xenófobos e nacionalistas fossem ganhando terreno. Na Alemanha, nas eleições gerais de 2017, o partido de extrema-direita Alternativa para Alemanha (AfD) tornou-se a terceira maior força política no Bundestag. Na Áustria, em Dezembro do mesmo ano outro partido de extrema-direita e anti-imigração, o Partido da Liberdade, chegaria ao governo, coligando-se com os conservadores. Na Itália, o partido nacionalista de Matteo Salvini faz parte do governo italiano, sendo bem conhecidas as suas recorrentes posições e iniciativas populistas e xenófobas. Que dizer então do seu “compincha” húngaro, Viktor Orbán?! Outros países têm nos seus governos partidos da mesma estirpe, como são os casos da Dinamarca e Finlândia. Alguns deles já têm inclusive assento parlamentar no Parlamento Europeu, conquistando assim poder nas decisões políticas para a União Europeia.
Em Portugal as manifestações xenófobas para com imigrantes ou minorias étnicas não são de somenos importância, tal como espelham os dados fornecidos pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), ou ainda a European Social Survey. O fenómeno tem vindo a crescer nos últimos anos, levando a própria secretária de Estado da Igualdade, Rosa Monteiro, a afirmar recentemente que "Portugal é um país com manifestações de racismo e de xenofobia".
Entretanto lembremos que as posições anti-imigração não se ficam apenas pela extrema-direita. No dia 4 deste mês a Alemanha ficou a conhecer um novo movimento de esquerda, o Aufstehen, também ele com um discurso anti-imigrantes. Fundado pela líder parlamentar do partido de esquerda Die Linke, Sahra Wagenknecht, e pelo seu marido Oscar Lafontaine, ex-militante do Partido Social-Democrata (SPD), este movimento surge, estrategicamente, como resposta à ascensão do partido de extrema-direita AfD, e faz uso de um discurso populista, defendendo igualmente políticas mais duras contra imigrantes.
A recente morte de um alemão em Chemnitz, decorrente de uma briga que supostamente terá envolvido um sírio e um iraquiano, veio acicatar ainda mais os ânimos, despoletando as manifestações xenófobas e anti-imigração que se seguiram nessa cidade alemã, com milhares de manifestantes de extrema-direita a virem para a rua protestar contra a presença de imigrantes no país. Igualmente preocupante é o crescente número de grupos organizados que se dedicam a perseguir e atacar estrangeiros. Para além da Alemanha, encontramos estas milícias anti-imigrantes na Bulgária, Hungria, Finlândia, Dinamarca, Holanda, entre outros.
Sobre este sério problema, o presidente da Comissão Europeia, Jean- Claude Juncker, no seu discurso sobre o estado da União, proferido no passado dia 12 no Parlamento Europeu, fez sucessivos apelos à unidade, lembrando que se há paz no continente, tal se deve ao projecto europeu, sendo imperativo, por maioria de razão, “mostrar respeito, parar de arrastar o nome da União Europeia pela lama”. Em tom grave, Junker apelou para que se abandonassem “os ímpetos nacionalistas que projectam o ódio e destroem tudo pelo caminho”, numa clara alusão ao discurso político populista e xenófobo que tem vindo a ganhar terreno em vários países.
Na cimeira da semana passada em Salzburgo, e tal como se esperava, nenhuma luz se vislumbrou ao fundo do túnel. Países como Itália, Hungria, Polónia, Áustria, República Checa, entre outros, mantêm as suas posições de obstaculizar a entrada de imigrantes e a rejeição da distribuição dos que já cá estão. Interpelado por um jornalista sobre a solução para a crise migratória, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, com o cinismo que lhe é característico, respondeu que era simples: “É não os deixar entrar e mandar de volta para casa os que estão cá dentro”. E assim vai a (des)União Europeia! 

sábado, 25 de agosto de 2018

Khan Tengri

Foi montanha que elegi para escalar este verão. Imponente, bela e desafiadora. Com os seus 7010m de altitude, o Khan Tengri é o ponto mais alto do Cazaquistão. Na língua uigure (povo de origem turcomena que habita principalmente a Ásia Central) o seu nome quer dizer "Senhor dos espíritos" ou "Senhor do Céu". Pertence a um grande sistema de cordilheiras da Ásia Central designado de Tian Shan, na região fronteiriça entre o Cazaquistão, Quirguistão e a Região Autónoma Uigur de Xinjiang, na China ocidental. 
A expedição decorreu ao longo da primeira quinzena de Agosto. Como é habitual nestas andanças, há todo um trabalho de adaptação à grande altitude, que passa essencialmente por um processo chamado de aclimatação, ou seja, por alterações que o organismo sofre a nível fisiológico, devido à redução dos níveis de oxigénio. Juntam-se ainda as baixas temperaturas e o nível reduzido de humidade. Em termos práticos, um alpinista tem de obedecer a um plano de treino/ascensão, que passa por sucessivas subidas e descidas da montanha, entre os diversos acampamentos instalados em diferentes altitudes, pernoitando neles, até ao momento em que, depois de se sentir física e mentalmente preparado, decide atacar o cume. Portanto, foram duas semanas de sobe e desce entre campos de altura.
Tudo decorreu bem até ao dia da decisão de investida ao cume. Sentia-me aclimatado, fisicamente forte e determinado em enfrentar o colosso. Contudo, no dia “D” o mau tempo decidiu impor-se, reservando-me um dia de neve e vento intensos, que fizeram com que abortasse o ataque ao cume. Ainda reservei mais dois dias para nova tentativa, os que me sobravam antes de embarcar no voo que me traria de regresso a Portugal, mas a sorte não me sorriu. Nem a mim, nem a um grupo de alpinistas de Singapura que se seguiu. 
Entretanto, durante a estadia na montanha atingi o topo do ombro de uma montanha adjacente, chamada Chapaev, ponto de passagem obrigatório para ascender ao Khan Tengri pela face norte, a uma altitude de 6150m. 
Apesar de não ter alcançado o cume, a experiência conseguida não deixou de ser gratificante, pelo desafio que constituiu, por aquilo que aprendi/desenvolvi e também pela fruição do entorno, que é de cortar a respiração. 
Fica o desejo de lá regressar. Já conheço a via, o material necessário e até a estratégia mais adequada, ou com probabilidade de maior sucesso. Veremos se dessa vez o voltarei a fazer só ou acompanhado.
Deixo aqui o link do vídeo da expedição: https://www.youtube.com/watch?v=2S1KD-_OmOY&feature=youtu.be


quinta-feira, 21 de junho de 2018

Da mentira de uns à falta de palavra e de pudor de outros

Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, terá dito que “de tanto se repetir uma mentira, ela acaba por se transformar numa verdade”. Pois parece exactamente este, o desígnio de uma plêiada de comentadores, incluindo políticos e governantes, que têm preenchido o espaço televisivo, radiofónico e da imprensa escrita, a propósito dos professores. Das várias mentiras disseminadas, a mais frequente é a de que estes profissionais têm uma progressão automática. Tal precipita a crença, na cabeça dos menos aos mais informados e dos menos aos mais mal-intencionados, de que um professor chega ao topo da carreira num piscar de olhos. Não, não é verdade! 
A carreira docente, sem perdas de tempo de serviço, sublinho, tem uma duração de 34 anos, ou seja, este é o tempo necessário para um professor atingir o topo. Com as perdas, a duração da carreira passa muito para além dos 40 anos de serviço, o que significa que muitos milhares de professores jamais atingirão o topo da carreira, por muito bons profissionais que sejam. Mas atenção: a progressão só poderá acontecer para os professores que entram nos quadros, porque os que são contratados (muitos deles já com 10, 20 e mais anos de serviço) ficam a marcar passo. Portanto, e para quem está realmente interessado em saber, a progressão na carreira não é automática, pois ela exige 3 requisitos gerais: tempo de serviço, avaliação do desempenho (com mínimo de Bom) e formação contínua (50 horas por escalão, com excepção do 5.º, que são 25 horas). Só a verificação simultânea destes requisitos permite a progressão. Juntam-se ainda requisitos específicos, a saber: observação de aulas para progredir aos 3.º e 5.º escalões, e existência de vaga para progredir aos 5.º e 7.º. 
Curioso saber que nos países da OCDE as carreiras dos professores têm, em média, uma duração (tempo para chegar ao topo) de 24 anos, contra os 34 em Portugal! Pois é, foi precisamente isto o que lembrou o seu director, Andreas Schleicher, na Cimeira Internacional sobre a profissão docente, que se realizou em Lisboa, nos dias 22 e 23 do passado mês de Março. Mais, e para aqueles que acham que os professores são bem remunerados e cheios de privilégios, Schleicher lembrou igualmente que o nível salarial dos professores portugueses é inferior à média dos países da OCDE. 
Como se não bastasse temos, quer no actual governo, quer nos partidos de Direita, quem venha agora falar em restruturação da carreira docente. Na prática, trata-se, liminarmente, de atrasar ainda mais a progressão legítima e justa de professores e educadores. 
Os que agora se insurgem contra a greve dos professores às avaliações, ou seja, sobre o momento escolhido, como é o caso da Confederação Nacional das Associações de Pais, esquecem-se que foi o governo que assim o quis, ao deixar arrastar no tempo este problema, pois já há vários meses que os sindicados de professores tentam negociar com o mesmo. Aliás, estes até já admitem ir mais além no prazo para a contagem integral do tempo de serviço congelado, que numa primeira proposta era até 2023. Afinal, quem são os intransigentes? 
Lembro que o governo assinou, juntamente com as organizações sindicais, uma Declaração de Compromisso em 18 de Novembro de 2017, tendo ficado inscrito na Lei do Orçamento de estado para 2018. Nela, podemos ler no número 5 o seguinte: alínea b) Negociar nos termos da alínea anterior o modelo concreto da recomposição da carreira que permita recuperar o tempo de serviço; alínea e) do modelo resultará a distribuição no tempo dos impactos orçamentais associados, num quadro de sustentabilidade e de compatibilização com os recursos disponíveis face à situação financeira do país, com início da produção de efeitos nesta legislatura e prevendo-se o seu final no termo da próxima. Junta-se-lhe a Recomendação ao governo que consta na Resolução n.º 1/2018, publicada em Diário da República em 2 de Janeiro e aprovada em sessão plenária, com os votos favoráveis de PS, BE, PCP e PEV, dando, dessa forma, resposta a uma das variáveis definidas na alínea a) do número 5 da Declaração de Compromisso: o tempo. E o que diz essa recomendação é claro: “A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, recomendar ao Governo que, em diálogo com os sindicatos, garanta que, nas carreiras cuja progressão depende também do tempo de serviço prestado, seja contado todo esse tempo, para efeitos de progressão na carreira e da correspondente valorização remuneratória”. Ora quem está a fugir à palavra dada? Quem é que não honra os seus compromissos? 
Entretanto, e para escusar-se a cumprir o acordado, o governo prefere apostar na contra-informação. Tenta virar os contribuintes contra os professores, como se estes também não o fossem. São-no e de que maneira! Para tal lançou para a praça pública um suposto encargo de 600 M€ por ano, que no entanto, e apesar das sucessivas interpelações de partidos da oposição, teima em não apresentar como chegou a esse valor. Por outro lado, tem-se servido de todo o tipo de expedientes, em clara violação da Lei, para tentar boicotar a greve dos professores, usando de uma vileza a todos os níveis condenável. 
Muito do que hoje nos poderemos orgulhar acerca das conquistas dos professores e educadores, a começar desde logo pela criação do Estatuto da Carreira Docente, em 1990, que veio colocar justiça ao equiparar a sua carreira à de outros licenciados na Administração Pública, devemo-lo graças à luta e obstinação de muitos professores. Ao longo de 4 décadas, no conjunto das reivindicações dos professores sempre esteve presente, grosso modo, a luta por melhores condições laborais, melhores condições de ensino-aprendizagem para crianças e jovens, enfim, uma melhor educação e para todos. 
Termino com uma saudação especial aos professores QUE LUTAM e que PENSAM NO COLECTIVO!

terça-feira, 29 de maio de 2018

O legado do Maio de 68


Comemoram-se os 50 anos do Maio de 68. O que se passou, o que ficou e qual o legado são questões que merecem toda a atenção e reflexão, hoje mais do que nunca.
As semanas conturbadas que a França viveu foram precedidas, e de certa maneira acalentadas, por outros acontecimentos que se vinham registando e mesmo acentuando noutros países, especialmente nos EUA. A guerra do Vietnam, com os seus milhares de mortes de norte-americanos, fez crescer a oposição interna àquele conflito. Para além de desmascarar as mentiras de Washington, mostrou que não só não estava ganha, como revelava a sua barbaridade e os seus custos económicos astronómicos. Os filhos da nação americana iam caindo no campo de batalha, sem um fim à vista. A contestação alastrou-se às universidades, com destaque para a de Columbia, tomando o espaço público. A mobilização contra a escalada imperialista no Vietnam cedo se estendeu a outros países. A este caldo junta-se ainda a luta pelos direitos humanos encetada pelo pacifista e activista Martin Luther King. A sua luta contra a discriminação racial e as desigualdades social e económica acabaria por lhe ditar a morte a 4 de Abril de 1968. Estes e outros acontecimentos fizeram germinar no seio da sociedade, sobretudo nas camadas mais jovens, um sentimento de injustiça e revolta.
Em França, o regime gaullista tornara-se insuportável. O peso de uma sociedade conservadora e autoritária, com uma liderança moral marcadamente católica, o pesadelo das guerras imperialistas e coloniais, o belicismo fomentado pela Guerra Fria, assim como o desencanto com uma civilização industrial/capitalista moderna, criadora de uma sociedade de consumo e individualista, fez estalar o verniz.
Foi a 22 de Março que o movimento estudantil francês arrancara com a ocupação da Universidade de Nanterre, chegando ao Quartier Latin a 2 de Maio, tomando aí maiores proporções. No dia seguinte a Universidade de Sorbonne era tomada pelos estudantes. Depois de várias reuniões e confrontos entre grupos de estudantes rivais, por ordem do reitor a Universidade é evacuada pela polícia, seguindo-se horas de batalha campal. Daqui resultaram dezenas de feridos e centenas de prisões, tendo os distúrbios prosseguido nos dias seguintes. Daí até o movimento extravasar para o mundo laboral, foi um passo. Eis que se dá a gigantesca manifestação de 13 de Maio, seguindo-se uma longa e incontrolada greve geral, que teria um efeito dominó, dadas as sucessivas greves que se seguiram ao longo de semanas, um pouco por toda a França. O movimento reflectiu-se nas artes, na literatura, na música, na filosofia, etc.
Maio de 68 não foi, pois, um movimento de mera euforia iniciada por um grupo de jovens, de forma aleatória ou marginal, de proscritos ou libertinos. Foi algo bem diferente. Algo maior. Alain Krivine e Alain Cyroulnik, num texto publicado no jornal Le Monde (24/01/2018), resumem-no da seguinte forma:
“Para nós, 68 não se reduz a uma revolução cultural nem à libertação sexual, mesmo que, sem dúvida alguma, se tenha dado tudo isso […] foi, sobretudo, 10 milhões de grevistas a ocupar fábricas com as bandeiras vermelhas ao alto, os estudantes a ocupar as suas faculdades e institutos durante semanas, e as pessoas a discutirem em conjunto, por todo o lado. […] Para nós, o Maio de 68 continua a ser o que falta fazer, mas sendo capazes de coordenar as lutas, de suscitar nas empresas e nos bairros, nas cidades e nos campos, um verdadeiro poder das e dos trabalhadores, juntando todas e todos, pessoas não organizadas, associações ou sindicatos, partidos, pessoas com ou sem emprego, franceses ou estrangeiros, que acreditam que outro mundo é possível e que o querem construir, sem fronteiras, sem muros e sem ódio, como afirmava esta consigna de Maio 68: Que se lixem as fronteiras!”
A mobilização internacional contra a globalização neoliberal, a luta por comunidades humanas livres e igualitárias, esse “outro mundo” possível tem sido discutido nos vários encontros promovidos pelo Fórum Social Mundial. Não importa se as roupagens são hoje diferentes. Sabemos que a História não se repete, pois as sociedades reinventam-se com as novas gerações, mas o legado do Maio de 68 está aí. Os últimos anos têm sido denunciadores de um movimento social à escala planetária, que se vai alargando, diversificando e, tal como na década de 60, manifesta-se contra um sistema capitalista, agora mais selvagem e desenfreado, comandado pela finança e pelos mais variados interesses obscuros, que acentua as desigualdades sociais, amentando o fosso ente ricos e pobres; contra o autoritarismo, nacionalismos e xenofobia; contra os novos teatros (e cenários) de guerra (agora com novos protagonistas, que dispensam apresentações!), mas também com novas causas, tais como a defesa do meio ambiente ou a luta pela igualdade de género. A Internet e as redes sociais vieram dar um novo impulso e uma nova forma de intervir no espaço público e na arena política, mobilizando diferentes grupos de activistas que reinventam uma cidadania que se deseja activa, participativa e transformadora de uma sociedade que tem sede de justiça.

domingo, 29 de abril de 2018

A “linha de montagem” do Secundário ao Superior

Uma notícia editada no Diário de Notícias, no passado dia 19 de Abril, dava conta do crescente aumento da procura de consultas de apoio psicológico no ensino superior, por estudantes que revelam problemas de ansiedade, ataques de pânico, falta de apetite, dificuldades em dormir, entre outros. Na Universidade de Lisboa, por exemplo, os serviços de acção social revelam que as consultas de apoio psicológico são as que têm maior procura junto da comunidade académica, estando relacionadas com perturbações de ansiedade generalizada, perturbações de humor, nomeadamente depressões, problemas relacionais, familiares e dificuldades académicas que comprometem o sucesso
Nessa mesma notícia, Teresa Espassandim, membro da direcção da Ordem dos Psicólogos, considera que certos problemas, como o abandono e o insucesso académico no ensino superior, podem ser minimizados com a intervenção de psicólogos. No entanto, a oferta do apoio psicológico é claramente insuficiente para responder à procura. Aludindo a um estudo da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, feito em 2012, Teresa Espassandim recorda que 17,4% dos universitários têm sintomatologia depressiva clinicamente significativa e lembra que é entre os 18 e os 24 anos que se desenvolvem as psicopatologias graves. Chegados ao ensino superior, os jovens deparam-se com novos desafios, o que faz que este seja um momento que merece especial atenção do ponto de vista do apoio psicológico. "Vão viver sozinhos, por vezes não estão no curso desejado e não têm o êxito escolar que pretendiam. Isto pode desencadear uma ansiedade maior. Além disso, há casos em que existe consumo de álcool e drogas associado", alerta a referida psicóloga.
Entretanto, convém andar para trás e verificar o que se passa no ensino secundário e reflectir sobre as conexões que se poderão estabelecer com esse problema que ocorre no ensino superior.
Um estudo da Universidade do Minho (UM), publicado no livro “A excelência académica na escola pública portuguesa”, revela, como principal conclusão, que as escolas portuguesas premeiam e trabalham para a excelência dos alunos, formando estudantes que “sabem reproduzir fórmulas mas com pouca criatividade e raciocínio”. A coordenadora do estudo, Leonor Torres, refere que “há um fomento, também através da criação de leis, que premeia o mérito e desempenho académico dos estudantes, não valorizando a pluralidade de excelências como a arte, o desporto ou a solidariedade e as competências sociais e cívicas” (JN, 18/03/2018). Uma lacuna grave na educação e formação dos jovens. A corrida às melhores médias, e daí às melhores universidades, tem o “patrocínio” de pais e escolas. Os primeiros, para verem as suas ambições satisfeitas, entenda-se, de verem os seus filhos seguirem este ou aquele curso superior (nem sempre de acordo com as pretensões dos candidatos), as segundas, convertidas numa espécie de “agências” de certificação de méritos académicos, para se verem bem posicionadas nos malfadados rankings. 
Subscrevendo o que diz Leonor Torres, os alunos vivem para as notas. A investigadora sublinha que “os pais e os estudantes depositam grandes expectativas na escola, fomentam o negócio das explicações e, praticamente, anulam qualquer tipo de vida social e fomentam exclusivamente o mérito cognitivo”. 
Assim que os estudantes iniciam o secundário a pressão sobre os resultados académicos segue em crescendo. E porquê? Por causa, claro está, dos exames nacionais! Essa pressão sobre os jovens é relevada pelo coordenador do Plano Nacional de Promoção do Sucesso Escolar, José Verdasca, que considera de completamente absurdo. Numa recente entrevista ao JN, a 1 de Abril, o professor universitário defende, tal como, aliás, a referida investigação da UM, que sejam as universidades a seleccionar os seus estudantes segundo pré-requisitos que não passem exclusivamente pelos exames e pelas notas, como aqueles que foram dados como exemplo no parágrafo anterior. No seu entender isto libertaria as escolas secundárias “da pressão e da lógica asfixiante orientada para os exames”. 

sábado, 24 de março de 2018

O que realmente interessa

Nos últimos quatro anos foram mais de trinta as exposições de pintura que levei a cabo um pouco por todo o norte de Portugal. Dessas andanças retiro várias aprendizagens, que me têm sido preciosas, na medida em que muito têm contribuído enriquecer os meus conhecimentos no plano geográfico, cultural, social e organizacional. Por isso, palmear vários concelhos, de vários distritos, levou-me a conhecer um pouco mais do nosso país e das nossas gentes.
Tenho por hábito, bem antes da abertura das exposições, de fazer algumas pesquisas na Internet sobre a terra que irá receber as minhas obras. Interessa-me particularmente conhecer o património concelhio, sob as suas mais variadas formas de manifestação. A gastronomia, claro, também entra no “cardápio”!
Chegado o dia da montagem da exposição, que por vezes coincide com o da inauguração, tento, na medida do possível, tomar contacto com um ou outro ponto de interesse que previamente estudei. Com ou sem guia, lá trato de visitar determinados monumentos e/ou espaços de interesse cultural. Mas é no convívio com as pessoas que me têm recebido, mais aquelas que travo conhecimento durante as inaugurações, que tenho obtido os maiores proventos.
Do contacto com os responsáveis pela cultura concelhia, que pode ir desde o presidente de câmara municipal, passando por vereadores, chefes de gabinete, directores de equipamentos culturais, até chegar a todos aqueles que, directa ou indirectamente, tratam da logística que envolve a preparação das exposições, tenho aprendido imenso com a entrega e o profissionalismo evidenciados. Neste âmbito, destaco a forma diligente e respeitosa como várias autarquias tratam os agentes culturais.
Poderia dar inúmeros exemplos de autarquias, vilas ou cidades, do interior ou litoral, que sabem acolher os artistas e que fazem questão de os envolver em todo o processo de preparação de uma exposição, desde os primeiros contactos até ao dia da inauguração, consultando-os e pondo-os ao corrente de cada passo. Falo de pessoas que canalizam as suas energias para proporcionar uma agenda cultural diversificada, que sirva os diferentes públicos, e que se concentram naquilo que realmente interessa, entenda-se, nas mais-valias que determinado artista e o seu trabalho poderá trazer à terra, e não em questões marginais, como por exemplo, saber se a pessoa que lhe dá corpo desperta a simpatia de fulano, sicrano ou beltrano.
Ficando-me apenas pelo interior, Macedo de Cavaleiros, Murça, Boticas ou Montalegre são bons exemplos de como a cultura é vista, não apenas como uma forma de potenciar a economia local, mas também de promover o seu património, e ainda, e não menos importante, zelar pelo enriquecimento cultural das populações.
Outra questão de enorme relevância prende-se com os espaços onde desenvolvem as actividades culturais, especialmente aqueles que se destinam a acolher exposições de artes plásticas. Sejam eles feitos de raiz ou então resultado de felizes reconstruções/adaptações, tenho conhecido galerias de uma qualidade notável. Falo de espaços amplos, bem localizados, bem equipados, acolhedores e com uma iluminação natural e/ou artificial que cumprem os requisitos necessários à exposição das obras de arte. Enfim, de fazer inveja!
Posto isto, não poderia estar mais de acordo com um texto publicado neste jornal, em Setembro de 2017 (nº 154), da autoria do bibliotecário da Biblioteca Municipal de Vila Pouca de Aguiar, o Dr. Paulo Gonçalves, a respeito do dinamismo, profissionalismo e dos investimentos nos domínios cultural e económico que vêm sendo feitos, desde há muito, pela autarquia de Montalegre. Como o autor enfatizava, um exemplo a seguir por outros concelhos do alto Tâmega. Vale a pena lê-lo.

domingo, 11 de março de 2018

Das minhas Sonoridades Cromáticas aos Deuses de Barro de Agustina Bessa-Luís


O dia 10 Março teve a particularidade de juntar, no mesmo espaço, a minha pintura e a literatura de Agustina Bessa-Luís. O acontecimento deu-se na Biblioteca Municipal Albano Sardoeira, em Amarante, durante a inauguração de mais uma exposição minha, numa terra que me é muito querida, dado eu ter vivido aí parte da minha infância e juventude.
“Sonoridades Cromáticas”, assim se chama a colecção de telas, acabou por servir, simultaneamente, como espécie de cenário e mote de partida para a apresentação de uma obra inédita da escritora, também ela com raízes nesta cidade do Tâmega, dado ter nascido na freguesia de Vila Meã. Por motivos de saúde a autora não pôde estar presente, ficando a apresentação a cargo da sua filha, Mónica Baldaque, que prefaciou o livro. Escrito por Agustina aos 19 anos, o romance, que dá pelo nome de “Deuses de Barro”, manteve-se desconhecido até à sua publicação no ano passado, mais concretamente, durante 76 anos. Foi graças ao trabalho de pesquisa e recolha da filha que o mesmo viu a luz do dia.
Na abertura da exposição, com casa cheia, fiz questão de sublinhar que foi para mim um enorme prazer e privilégio associar-me ao lançamento de uma obra literária de tão ilustre escritora, e por isso felicitei a Câmara Municipal de Amarante, representada pela sua Vice-Presidente, Lucinda Fonseca, e a Vereadora Rita Batista, pela feliz iniciativa de associar a pintura à literatura. Os elogios estenderam-se ao notável espaço onde estão instaladas as pinturas, bem como à organização primorosa da exposição. Seguiu-se a visita guiada por mim, na companhia dos elementos da vereação e de Mónica Baldaque, com quem o mantive uma longa conversa, e da qual obtive ainda um exemplar do romance de Agustina, com dedicatória. Por último, foi então feita a apresentação dos “Deuses de barro”, seguido do visionamento de um documentário televisivo sobre a vida da escritora.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Equívocos sobre a (educação para a) cidadania

O Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro, criara três áreas curriculares não disciplinares no ensino básico, nomeadamente, Área de Projecto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica. Além disto, consagrava a integração da educação para a cidadania, com carácter transversal, em todas as áreas curriculares (alínea d) do artigo 3.º). Na alínea c) do artigo 5.º, a Formação Cívica é entendida como um “espaço privilegiado para o desenvolvimento da educação para a cida­da­nia, visando o desenvolvimento da consciência cívica dos alunos como elemento funda­mental no processo de formação de cidadãos responsáveis, críti­cos, activos e inter­venien­tes, com recurso, nomeadamente, ao intercâmbio de experiências vividas pelos alunos e à sua participação, individual e colectiva, na vida da turma, da escola e da comunidade”. Este enunciado deixava claro a importância e o imperativo da educação cívica na formação integral das crianças e jovens. E hoje, face às disfunções sociais e políticas que se vão registando um pouco por toda a parte, ao assalto às instituições democráticas, às ofensivas contra o próprio Estado de direito, mais imperioso se torna tal desiderato.
Cerca de uma década mais tarde, com o Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de Julho, é feita uma revisão curricular, desta vez pela mão do ministro da Educação Nuno Crato. Com esta iniciativa legal, defendia o prodigioso ministro, seria reduzida a “dispersão curricular” e reforçada a carga horária nas “disciplinas fundamentais” (alínea d) do artigo 3.º). Continuo às voltas com isto de “disciplinas fundamentais”! Talvez um dia alguém me consiga esclarecer. Adiante! Certo é que, relativamente as supra-referidas áreas curriculares não disciplinares, desaparece a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado muda de nome (passa a chamar-se Apoio ao Estudo) e a Formação Cívica deixa de ser uma ‘disciplina’ autónoma, ou seja, de oferta obrigatória (alínea m) do artigo 3º). Passaria àquilo que se designou de Oferta Complementar, ou seja, fica ao critério de cada escola! Entendeu o iluminado governante que bastaria que a educação para a cidadania fosse abordada, de forma transversal, pelas diversas áreas curriculares. Desta forma, Nuno Crato dava a entender que ainda acreditava (e talvez ainda acredite) no Pai Natal!
Já com o actual governo foi publicado o Decreto-Lei n.º 17/2016, de 4 de Abril, que mantém a Formação Cívica como oferta complementar e a educação para a cidadania como um tema a abordar de forma transversal pelas diferentes disciplinas. Ou seja, nesta questão em particular tudo ficou na mesma!
Passemos agora ao terreno e ao que realmente me trás por cá.
Ainda que todo o cuidado seja pouco no momento da produção legislativa que se vai fazendo em matéria de ensino e educação, parece-me prioritário esclarecer alguns conceitos, propósitos e práticas. A verdade seja dita, uma efectiva educação para a cidadania não depende tanto de matéria legislativa, mas sim da forma como ela é (ou deveria ser) operacionalizada. Primeiro haverá que desfazer alguns equívocos. Comecemos pelo de conceito de ‘cidadania’.
No espaço onde labuto, a escola, há muito percebi que reina uma confusão entre os conceitos de ‘cidadania’ e ‘comportamento’. E isso é perceptível nas reuniões de avaliação dos conselhos de turma. No momento de avaliar os alunos na área curricular de Educação para a Cidadania[1] (assim se designa na minha escola), eis que por vezes se levanta um coro de vozes a sentenciar este ou aquele aluno com uma menção de Satisfaz Pouco ou Não Satisfaz porque, como dizem, “porta-se mal”. Ou seja, entendem que cidadania = comportamento, tout court! Atendendo à definição (e propósitos) de educação para a cidadania bem explanada no início deste texto (D.L. nº 6/2001), um aluno até pode ser crítico (no sentido construtivo), participativo, interventivo, solidário, envolver-se em acções cívicas, etc., quer nas actividades curriculares ou extracurriculares, seja nas aulas de Formação Cívica/EPC ou noutras disciplinas, mas se em determinados momentos, nesta ou naquela disciplina, com maior ou menor frequência (dependendo da autoridade do professor…), ele manifestar atitudes perturbadoras (desatenção, obstinação, etc.), logo passa a ser considerado “um mau cidadão”!
Segundo a legislação ainda vigente, educar para a cidadania é responsabilidade de todos os professores, de todas as áreas curriculares. É imenso o número de documentos e de material de apoio/didáctico sobre o assunto. Os temas passíveis de ser explorados, e com grande pertinência social actual, são inúmeros e diversificados. Poderíamos falar, por exemplo, de Educação para os Direitos Humanos; Educação Ambiental/Desenvolvimento Sustentável; Educação para o Desenvolvimento; Educação para a Igualdade de Género; Educação para a Saúde e a Sexualidade; Educação para os Media; Educação do Consumidor; Educação Intercultural; Educação para a Paz; Educação para o Mundo do Trabalho, entre tantos outros. Poderão ser desenvolvidos nas diferentes áreas curriculares, em actividades que promovam o enriquecimento do currículo ou em outros projectos. Com a devida articulação (e acima de tudo, vontade) entre ou diversos intervenientes, seguramente serão proporcionadas condições para a aprendizagem de competências sociais por parte dos alunos, despertando-lhes uma consciência cívica, maturada numa prática reflexiva e interventiva no espaço público, fim último da educação para a cidadania. É este o ‘comportamento’ que importa desenvolver e avaliar.
Um país ou um Estado são demasiado preciosos para se deixarem entregues apenas nas mãos dos decisores políticos. O exercício cívico de cada cidadão não se restringe apenas ao voto, como muitos entendem. É muito mais do que isso. É desde logo assumir, cada um por si, que somos parte interessada num país mais desenvolvido e mais justo.



[1] Nalgumas escolas mantém-se a designação de Formação Cívica.