segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O tempo dos necrófagos e profetas

O conhecimento público de uma investigação do Ministério Público na passada terça-feira, dia 7, a envolver o Primeiro-Ministro, do qual resultaria a apresentação da sua demissão, apanhou muita gente com as calças na mão, incluindo os líderes partidários. Imagino o pasmo de alguns deles, tomados pelo inesperado acontecimento e ainda a digerir as sondagens sobre os índices de popularidade que lhes têm sido pouco abonatórios. A extrema-direita, cheia de rabos-de-palha, regozija-se ao ver uma oportunidade para levantar ainda mais alto uma das suas bandeiras, o combate à corrupção, e surfar a sua onda de demagogia. Imagino a atmosfera radioactiva que estará a contaminar as redes sociais, onde reinará o discurso justiceiro. Certo é que os tiros nos pés já começaram na luta pela pole position, com líderes a precipitarem-se em comunicados e conferências de imprensa. Uns com pose de estadista, já em jeito de campanha, outros de rosto angelical e ufano, mal disfarçando o sorriso rufia, mas ambos a salivar e ensaiando o canto de sereia. Sobram os adultos, os mais avisados e sensatos. Entretanto, o PS terá no curto prazo de escolher o seu próximo líder, que irá disputar as próximas eleições.
As casas de apostas multiplicaram-se de uma forma exponencial, que nem cogumelos. Os julgamentos e as condenações nos média já estão em curso. Os comentadores de serviço, munidos das cartas de Tarot, acotovelam-se para preparar o epílogo deste filme de acção. O enredo já está criado, os personagens já são conhecidos e a banda sonora (ruidosa) já se faz ouvir. Os efeitos especiais estarão a caminho.
Ora reza a história que António Costa demitiu-se, depois de “surpreendido” com uma nota da Procuradoria-Geral da República (PGR), dando-o como alvo de um inquérito-crime no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). O caso envolve figuras próximas do Primeiro-Ministro (PM), entre os quais João Galamba, num processo que envolverá corrupção, tráfico de influências e prevaricação.
No momento em que António Costa decidiu segurar Galamba em Maio deste ano, abrindo assim uma crise institucional entre governo e Presidência da República, de pronto a espada de Dâmocles ficou pendida sobre a sua cabeça. Por ironia do destino, a “bomba atómica”, à qual Marcelo aludira em discurso oficial e em entrevistas, acabaria por ser largada pelo Ministério Público. Bastou, para tal, que este convencesse a PGR a elaborar um comunicado, dando conta que o STJ abriu um inquérito ao PM. Ouvidos os partidos e o Conselho de Estado, o Presidente da República (PR) comunicou ao país, no dia 9, a decisão de convocar eleições antecipadas para o dia 10 de Março de 2024. Anunciou ainda que a votação final global do Orçamento do Estado ocorrerá no final deste mês, dia 29, de modo a garantir a aprovação de várias medidas, para assegurar o máximo de “estabilidade económica e social” e não comprometer a execução de metas do PRR. No mesmo comunicado, e numa alusão ao processo judicial que envolve o nome do PM, o PR pediu respeito pela presunção de inocência enquanto durar o processo e recomendou celeridade à Justiça.
Num país onde a vox populi não entende, nem se preocupa em entender o que significa a presunção de inocência, a palavra “suspeito” logo é equiparada à de “culpado”, seguindo-se a incontinência das populares expressões, “são todos iguais!” ou “o querem é mamar!”, dando assim conta da sua elevada cultura cívica, ética e política. Há quem perspective fugas de informação a conta-gotas sobre o processo judicial até ao dia das eleições, o que não tem nada de surpreendente! Este seria o melhor tónico para alimentar a retórica populista. Corre-se o risco de a agenda e o debate político serem infectados com o tema da corrupção, tirando espaço e destaque à discussão dos programas eleitorais de cada partido. Antevê-se uma luta partidária decorrida sobre um ambiente de suspeição, ao qual não escapará o poder judicial. Não é por acaso que vários ilustres democratas, e em consonância com o PR, têm vindo a público alertar para a necessidade do processo que alegadamente visa o PM ser célere e transparente, para que todos os cidadãos sejam esclarecidos, de forma contundente, sobre o que motivou este inquérito, que lançou o país numa crise política. E que tal se faça não tanto pela situação do PM, mas pela defesa da democracia e do Estado de direito. Seria comprometedor os portugueses chegarem ao dia das eleições sem poder aferir devidamente das suspeitas levantadas sobre a governação de um dos maiores partidos da democracia portuguesa. Esperemos que a uma crise política não se soma uma crise na justiça, pois aí estaríamos perante uma crise de regime.