segunda-feira, 14 de maio de 2012

A agenda do Ministro da Educação

“As desgraças das revoluções são dolorosas fatalidades, as desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias”.

Eça de Queirós    
                                              
Num momento em que tanto se reclama a falta de valores e de cidadania na nossa sociedade, torna-se difícil, para não dizer inexplicável, as “reformas” que o nosso ministro da Educação, Nuno Crato, quer e está a implementar no nosso sistema de ensino. Ora, a palavra reforma, tal como o conceito sugere, pressupõe uma melhoria num determinado estado de coisas. Contudo, o que se constata, mais aquilo que se prevê a nível de políticas educativas vai precisamente no sentido contrário.
Comecemos por recuar uns tempos atrás e ver quem era Nuno Crato, antes de ter assumido em 2011 a pasta do Ministério da Educação, do Ensino Superior e da Ciência. Sem desconsiderar o seu currículo académico e profissional, o então professor universitário, investigador e comentador, desde logo deixava bem clara a sua opinião e posição quanto ao sistema de ensino português, quer através de vários textos publicados, quer em várias intervenções públicas.
Dominado por uma série de preconceitos para com a produção científica desenvolvida pelas Ciências da Educação e pelo trabalho desenvolvido nas escolas, bem como pelo neoconservadorismo, o discurso do comentador Nuno Crato assentava (como ainda assenta), basicamente, num alegado reino do facilitismo e indisciplina que se vivia nas escolas portuguesas; na abordagem de conteúdos ou temas que segundo o próprio não servem a verdadeiro mandato da escola; na incompetência docente e no (inconveniente) peso do Estado na Educação, tendo como claro propósito, atacar a escola pública.[1] Surpreende que um investigador académico, quando confrontado com este panorama, que o próprio traçava nesse momento, não se tenha disponibilizado para apresentar dados científicos ou estatísticos para defender a (sua) tese de que o ensino em Portugal atingira níveis mínimos de aprendizagem, preferindo imputar responsabilidades por essa ausência aos anteriores responsáveis pela mesma pasta que agora ocupa.[2] Curiosamente, a omissão de dados relevantes para compreender muitas das medidas que o agora ministro da Educação está a implementar, bem como de outras que se adivinham, tornou-se uma prática corrente por parte do ministério que o próprio dirige!
Para combater os tais “males” do sistema educativo, o ministro da Educação decidiu implementar uma revisão curricular, guarnecida por um conjunto de medidas complementares (com destaque para o aumento do número de alunos por turma e a constituição de mega agrupamentos escolares[3]), e assim levar a cabo a sua grande cruzada contra os que defendem uma escola pública como espaço privilegiado para a aprendizagem e prática da cidadania, da solidariedade, da cultura, da criação e do conhecimento, mais concretamente, os tais conteúdos e temas a que o ministro aludia. Para tal, cedo se apressou a extinguir a área curricular de Área de Projecto para o ano lectivo em curso, e agora, e a partir do próximo, a de Formação Cívica. Não surpreende de todo esta tomada de decisão, pois numa entrevista que o mesmo deu há pouco mais de um ano, na altura no papel de ideólogo e comentador, Nuno Crato dizia que a escola, segundo o pretexto de “criar cidadãos críticos, jovens cientistas, escritores activos, eleitores activos, com esses slogans grandiosos, esquece-se aquilo que é fundamental, que é transmitir conhecimentos básicos”.[4] Portanto, para o nosso ministro, o pensamento crítico, a curiosidade científica, a cidadania participativa, o interesse pela literatura e/ou cultura são questões menores ou de pouco interesse para a educação e formação integral do educando! Em suma, o paradigma educativo do ministro da Educação vai precisamente contra a missão histórica da escola enquanto instituição, diga-se, a formação de cidadãos e a transmissão de um legado histórico e cultural.
Ainda a respeito da revisão curricular, e rumando em sentido oposto do que se tem verificado em particular nos países mais desenvolvidos da Europa, preconizadores inclusive de experiências educativas inovadoras e exemplares, o nosso ministro da Educação decide menosprezar o ensino artístico e tecnológico. Fá-lo através da redução da carga horária de algumas das respectivas disciplinas, coloca algumas delas em situação de oferta de escola (ou seja, de carácter opcional), ou então fragmentando-as, desagregando, assim, conteúdos que se complementavam, tal como irá acontecer com a disciplina de Educação Visual e Tecnológica (do 2º ciclo do Ensino Básico), passando a existir a de Educação Visual e a de Educação Tecnológica, contrariando inclusive aquilo que o próprio defende no preâmbulo do documento da Revisão da Estrutura Curricular, ou seja, a não dispersão curricular! Curioso esta lógica e este tipo de cálculos, sobretudo vindo de um matemático!
O ministro da Educação fala-nos de uma “avaliação rigorosa”, que assenta basicamente na cultura de exames nacionais, essa sim, a verdadeira panaceia para responder aos maus resultados escolares, complementada pelos doutos rankings, que a comunicação social tanto gosta de glosar. Portanto, aqui parte-se do princípio que toda a avaliação formativa e sumativa, e séria, desenvolvida pelos professores, ao longo de todo o ano lectivo, aqueles que realmente conhecem a realidade de cada escola, de cada aluno e de cada meio, não merece credibilidade. Por isso, há que apostar num modelo que consiste, basicamente, e tal como sublinha Domingos Fernandes (2012), “em pensar-se que, definidas umas metas ou standards, estabelecendo os resultados esperados, basta utilizar uma medida, obtida tipicamente através de um exame, para avaliar ou representar a qualidade da educação”[5]. Em síntese, trata-se daquilo que poderíamos designar de um modelo de tamanho único, do tipo “prêt-à-porter”, em que o que conta é a quantificação. Só que o ministro esquece-se que nem tudo é quantificável, que nem tudo se reduz a números, que os exames não descrevem o conjunto das aprendizagens e saberes adquiridos pelo aluno.
A racionalidade subjacente à revisão da estrutura curricular do ministro da Educação comprometerá certamente a “vida” da escola, na medida em que deixará de haver tempo e lugar para a imaginação e a criatividade, para as artes e a cultura, para uma educação para os valores, para a compreensão dos desafios e dilemas contemporâneos, para a solidariedade, para a educação inter e multicultural, enfim, para uma cidadania democrática e participativa, consubstanciada numa prática reflexiva. Ao contrário, perspectiva-se uma directoria voltada para a preparação dos alunos para responderem acertadamente às perguntas dos exames. Tal como sublinha Domingos Fernandes (2012), “todo o tempo será pouco para se conseguir que a escola ‘fique bem’ na fotografia dos rankings produzidos pelas empresas da comunicação social”.[6] Ainda por cima, e para um ministro obcecado pela matemática, as metas que aponta para esta disciplina dificilmente serão atingidas, pois o próprio ignora que “um jovem desenvolvido em termos de autonomia na sua vida quotidiana tem mais capacidades para resolver situações problemáticas do que um jovem atulhado de explicações e horas semanais da disciplina, mas incapaz de resolver uma questão prática do dia-a-dia”.[7]
Nem as recomendações de organizações e instituições nacionais e internacionais, nem os vários exemplos de reformas meritórias que estão a ser empreendidas em vários países da União Europeia[8] demovem o ministro da Educação de levar a cabo a sua agenda de políticas neoconservadoras e neoliberais, o que, aliás, serve na perfeição os interesses do actual governo. Esta agenda, que mais não é do que uma cartilha obsoleta e contraproducente, hoje condenada por alguns dos que no passado eram seus defensores e até preconizadores[9], assenta num programa estratégico, que Manuel Sarmento (2011) resume da seguinte forma: “reforço das políticas de avaliação a todos os níveis; reestruturação curricular; destruição de recursos educacionais (nomeadamente com o despedimento massivo de professores) e desmantelamento das políticas cujo sentido é o do combate às desigualdades (Programa Novas Oportunidades, Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, Programa e-escola, etc.); introdução progressiva de medidas de esvaziamento do papel do Estado na Educação”.[10]


[1] Cf. CRATO, Nuno (2006). O ‘Eduquês’ em Discurso Directo. Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista.
[2] Em entrevista dada à agência Ecclesia, a 22 de Fevereiro de 2011, Nuno Crato dizia o seguinte: “Nós estamos muito piores que à 10 ou 20 anos, mas também não tenho dados para mostrar isso, porque o Ministério não dá dados às pessoas (…)”.
[3] No dia 18 de Abril de 2010, no programa Plano Inclinado da SIC Notícias, Nuno Crato, então no papel de comentador e ‘especialista’ em temas sobre Educação, dizia a respeito dos mega agrupamentos que “além do absurdo que este sistema é do ponto de vista pedagógico e do ponto de vista da gestão de uma escola, isto é brincar com o sistema (…)”.
[4] Entrevista dada à agência Ecclesia, no 22 de Fevereiro de 2011.
[5] FERNANDES, Domingos (2012). A propósito da racionalidade da chamada revisão da estrutura curricular. In A Página da Educação, Série II, nº 196, p. 21.
[6] Cf. FERNANDES, Domingos (2012), p. 21.
[7] GONÇALVES, Paulo (2012). A propósito da racionalidade da chamada revisão da estrutura curricular. In A Página da Educação, Série II, nº 196, p. 128.
[8] Sobre as reformas nos currículos e nos sistemas de ensino europeus, em particular no que concerne à educação artística e cultural, bem como de um conjunto de relatórios, pareceres, resoluções e recomendações produzidos por instituições internacionais, consultar os seguintes documentos: Culture, Creativity and the Young: Developing Public Policy (Robinson/Conselho da Europa, 1999); Roteiro para a Educação Artística (UNESCO, 2006); Agenda Europeia para a Cultura (Conselho da União Europeia, 2007); Livro Branco sobre o Diálogo Intercultural (Conselho da Europa, 2008); Resolução sobre os estudos artísticos na União Europeia (Parlamento Europeu, 2009); Arts and Cultural Education at School in Europe (Eurydice, 2009). Por cá, sugiro simplesmente a consulta da Recomendação n.º 1/2012, de 7 de Dezembro de 2011, publicada em Diário da República no dia 24 de Janeiro de 2012, do Conselho Nacional de Educação.
[9] RAVITCH, Diana (2010). In Need of a Renaissance: Real Reform Will Renew, Not Abandon, Our Neighborhood Schools.
In American Educator, Summer: v34 n2, pp. 16-22.
[10] SARMENTO, Manuel (2011). O cratês em discurso directo: ideologia e proposta política. In Le Monde diplomatique, edição portuguesa, II Série, n.º 59.