terça-feira, 15 de setembro de 2020

Sobre o discurso bafiento, retrógrado e reaccionário

O início de Setembro fica marcado por uma polémica em torno do caso de dois irmãos, alunos de uma escola de Vila Nova de Famalicão, que não frequentaram as aulas da disciplina (obrigatória) de Cidadania e Desenvolvimento (CD) durante os últimos dois anos lectivos, por decisão do respectivo encarregado de educação, que alegou objecção de consciência. Artur Mesquita Guimarães, o pai dos jovens, defende que os tópicos da disciplina são uma responsabilidade da família e não da escola. O ministério da Educação acabaria por determinar, e bem, através de um despacho, que os alunos deveriam cumprir um plano de recuperação proposto pela escola, caso contrário recuariam dois anos, determinação que veio contrariar a decisão dos conselhos de turma, que tinham aprovado a transição desses alunos. Daqui seria um passo para o surgimento de um manifesto, designado “Em defesa das liberdades de educação”, que defende o direito dos pais à objecção de consciência em relação à disciplina de CD, subscrito por várias de personalidades ligadas à política, à Igreja, às academias (em especial à Universidade Católica, onde aliás o documento foi lançado), bem como a outros sectores da sociedade. Destas destaco, em particular, o antigo presidente da República, Cavaco Silva, o ex-Primeiro-Ministro Passos Coelho e o ex-ministro da Educação David Justino. Cavaco Silva, pródigo em equívocos, esquece que quando foi Primeiro-Ministro contou com um ministro da Educação (Roberto Carneiro) que contribuiu decisivamente para o lançamento das bases daquilo que hoje viria a ser a Educação para a Cidadania. Porventura andaria distraído! Se foi o caso, ainda bem. Já Passos Coelho, um liberal convicto, defensor da legalização do aborto, surpreendeu-me! David Justino, pelo contrário. Numa entrevista ao Jornal das 8 da TVi, no passado dia 7, a respeito do que preconiza o dito manifesto, o ex-ministro da Educação meteu os pés pelas mãos, quando tentou justificar o injustificável, enredando-se em sofismas. Foi confrangedor ouvi-lo. Na sua intervenção ficou claro que o que o preocupa na disciplina de CD, tal como a generalidade dos outros subscritores, é o tema da sexualidade. O seu interlocutor, Miguel Sousa Tavares, conseguiu por a nu o que vai na cabeça do ex-ministro. David Justino foi intelectualmente desonesto, cínico e preconceituoso. Quando afirma que as matérias abordadas, em qualquer disciplina, devem ter suporte científico, saberes consolidados, não só revela ignorância como desprezo por um assunto tão importante como a educação sexual. Então os saberes produzidos pela medicina (incluindo várias especialidades), a psicologia, a biologia, entre outras áreas científicas, e que no programa da disciplina de CD sustentam os vários objectos de estudo da sexualidade, num contexto global da saúde, não têm suporte científico? Para quem não sabe, no tema da sexualidade são tratadas questões como a identidade e género, o desenvolvimento da sexualidade, os direitos sexuais e reprodutivos (prevenção de relações abusivas e a maternidade e paternidade), parentalidade responsável, saúde sexual e reprodutiva, entre outros. Também para que se saiba, a disciplina de CD aborda temas de indiscutível pertinência, tais como: direitos humanos (civis e políticos, económicos, sociais e culturais, e de solidariedade), desenvolvimento sustentável, educação ambiental, saúde, interculturalidade, media, educação para o consumo, segurança rodoviária, instituições e participação democrática, e ainda mais. Estas são, aliás, temáticas que deveriam ser ensinadas à população em geral. Mas o busílis da questão está no malfadado tema da sexualidade, o tal que está a causar tanta celeuma, despoletada pelo pai dos irmãos de Famalicão! Já agora, presumo que o acesso à Internet por parte destes jovens só se faça sob sua vigilância! Oportunidade para dar a conhecer uma pequena nota biográfica do protagonista desta novela. Artur Mesquita Guimarães é católico e conservador, foi delegado da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas da zona norte e pertenceu à comissão executiva da Plataforma Resistência Nacional (agora designada de Plataforma Renovar). Em 2009 opôs-se publicamente à inclusão obrigatória da educação sexual nas escolas (defendendo que a estas apenas cabia o ensino da “parte biológica do sexo”!) e participou na recolha de assinaturas para exigir um referendo ao casamento entre homossexuais. Em Fevereiro deste ano participou na manifestação em frente da Assembleia da República contra a despenalização da morte assistida. No processo que moveu contra o Ministério da Educação, conta com o apoio do advogado João Pacheco de Amorim, que foi cabeça de lista do Chega, por Coimbra, nas legislativas. Por acaso o estimado leitor não sente aqui uma fragrância a Estado Novo? 
Também através de um manifesto, a que foi dado o nome de “Cidadania e desenvolvimento: a cidadania não é uma opção”, um conjunto de personalidades juntou-se para condenar este ataque à disciplina de educação para a cidadania, e aqueles que defendem um currículo “à la carte”. Os tais “objectores de consciência”! Gente que confunde educação com doutrinação. O que seria da Escola Pública se as disciplinas passassem a ser opcionais e em função dos mais variados caprichos ou vontades? Mais ainda quando se sabe que a maioria dos pais se demite da responsabilidade de educar os filhos, seja por ignorância em certas matérias, seja por desinteresse. É para que ninguém fique de fora que existe um currículo nacional. É precisamente para evitar o cerceamento de liberdades de aprendizagem dos educandos, como pretende o tal encarregado de educação. É, como defende o secretário de Estado da Educação, João costa, pelo princípio de que, na vida em sociedade, a cidadania deve ser um compromisso pelo respeito dos direitos de todos, e não uma opção de cada um.
Vivemos tempos perigosos. Estamos a assistir, um pouco por toda a parte, a meu ver com uma bonomia generalizada preocupante, a um discurso bafiento, retrógrado, reaccionário e demagógico, que começou na extrema-direita e que já capturou alguma direita, e que vem na sequência do surgimento de grupos radicais, “pastoreados” por figuras ou líderes políticos populistas, nacionalistas, xenófobos e nalguns casos, saudosistas…