sábado, 27 de janeiro de 2018

Equívocos sobre a (educação para a) cidadania

O Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro, criara três áreas curriculares não disciplinares no ensino básico, nomeadamente, Área de Projecto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica. Além disto, consagrava a integração da educação para a cidadania, com carácter transversal, em todas as áreas curriculares (alínea d) do artigo 3.º). Na alínea c) do artigo 5.º, a Formação Cívica é entendida como um “espaço privilegiado para o desenvolvimento da educação para a cida­da­nia, visando o desenvolvimento da consciência cívica dos alunos como elemento funda­mental no processo de formação de cidadãos responsáveis, críti­cos, activos e inter­venien­tes, com recurso, nomeadamente, ao intercâmbio de experiências vividas pelos alunos e à sua participação, individual e colectiva, na vida da turma, da escola e da comunidade”. Este enunciado deixava claro a importância e o imperativo da educação cívica na formação integral das crianças e jovens. E hoje, face às disfunções sociais e políticas que se vão registando um pouco por toda a parte, ao assalto às instituições democráticas, às ofensivas contra o próprio Estado de direito, mais imperioso se torna tal desiderato.
Cerca de uma década mais tarde, com o Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de Julho, é feita uma revisão curricular, desta vez pela mão do ministro da Educação Nuno Crato. Com esta iniciativa legal, defendia o prodigioso ministro, seria reduzida a “dispersão curricular” e reforçada a carga horária nas “disciplinas fundamentais” (alínea d) do artigo 3.º). Continuo às voltas com isto de “disciplinas fundamentais”! Talvez um dia alguém me consiga esclarecer. Adiante! Certo é que, relativamente as supra-referidas áreas curriculares não disciplinares, desaparece a Área de Projecto, o Estudo Acompanhado muda de nome (passa a chamar-se Apoio ao Estudo) e a Formação Cívica deixa de ser uma ‘disciplina’ autónoma, ou seja, de oferta obrigatória (alínea m) do artigo 3º). Passaria àquilo que se designou de Oferta Complementar, ou seja, fica ao critério de cada escola! Entendeu o iluminado governante que bastaria que a educação para a cidadania fosse abordada, de forma transversal, pelas diversas áreas curriculares. Desta forma, Nuno Crato dava a entender que ainda acreditava (e talvez ainda acredite) no Pai Natal!
Já com o actual governo foi publicado o Decreto-Lei n.º 17/2016, de 4 de Abril, que mantém a Formação Cívica como oferta complementar e a educação para a cidadania como um tema a abordar de forma transversal pelas diferentes disciplinas. Ou seja, nesta questão em particular tudo ficou na mesma!
Passemos agora ao terreno e ao que realmente me trás por cá.
Ainda que todo o cuidado seja pouco no momento da produção legislativa que se vai fazendo em matéria de ensino e educação, parece-me prioritário esclarecer alguns conceitos, propósitos e práticas. A verdade seja dita, uma efectiva educação para a cidadania não depende tanto de matéria legislativa, mas sim da forma como ela é (ou deveria ser) operacionalizada. Primeiro haverá que desfazer alguns equívocos. Comecemos pelo de conceito de ‘cidadania’.
No espaço onde labuto, a escola, há muito percebi que reina uma confusão entre os conceitos de ‘cidadania’ e ‘comportamento’. E isso é perceptível nas reuniões de avaliação dos conselhos de turma. No momento de avaliar os alunos na área curricular de Educação para a Cidadania[1] (assim se designa na minha escola), eis que por vezes se levanta um coro de vozes a sentenciar este ou aquele aluno com uma menção de Satisfaz Pouco ou Não Satisfaz porque, como dizem, “porta-se mal”. Ou seja, entendem que cidadania = comportamento, tout court! Atendendo à definição (e propósitos) de educação para a cidadania bem explanada no início deste texto (D.L. nº 6/2001), um aluno até pode ser crítico (no sentido construtivo), participativo, interventivo, solidário, envolver-se em acções cívicas, etc., quer nas actividades curriculares ou extracurriculares, seja nas aulas de Formação Cívica/EPC ou noutras disciplinas, mas se em determinados momentos, nesta ou naquela disciplina, com maior ou menor frequência (dependendo da autoridade do professor…), ele manifestar atitudes perturbadoras (desatenção, obstinação, etc.), logo passa a ser considerado “um mau cidadão”!
Segundo a legislação ainda vigente, educar para a cidadania é responsabilidade de todos os professores, de todas as áreas curriculares. É imenso o número de documentos e de material de apoio/didáctico sobre o assunto. Os temas passíveis de ser explorados, e com grande pertinência social actual, são inúmeros e diversificados. Poderíamos falar, por exemplo, de Educação para os Direitos Humanos; Educação Ambiental/Desenvolvimento Sustentável; Educação para o Desenvolvimento; Educação para a Igualdade de Género; Educação para a Saúde e a Sexualidade; Educação para os Media; Educação do Consumidor; Educação Intercultural; Educação para a Paz; Educação para o Mundo do Trabalho, entre tantos outros. Poderão ser desenvolvidos nas diferentes áreas curriculares, em actividades que promovam o enriquecimento do currículo ou em outros projectos. Com a devida articulação (e acima de tudo, vontade) entre ou diversos intervenientes, seguramente serão proporcionadas condições para a aprendizagem de competências sociais por parte dos alunos, despertando-lhes uma consciência cívica, maturada numa prática reflexiva e interventiva no espaço público, fim último da educação para a cidadania. É este o ‘comportamento’ que importa desenvolver e avaliar.
Um país ou um Estado são demasiado preciosos para se deixarem entregues apenas nas mãos dos decisores políticos. O exercício cívico de cada cidadão não se restringe apenas ao voto, como muitos entendem. É muito mais do que isso. É desde logo assumir, cada um por si, que somos parte interessada num país mais desenvolvido e mais justo.



[1] Nalgumas escolas mantém-se a designação de Formação Cívica.