terça-feira, 23 de abril de 2024

O Abril que está por regressar à Escola

Comemorar os 50 anos do 25 de Abril é, para quem ama a liberdade e a democracia, um momento de regozijo. Ao longo destas cinco décadas muito se conseguiu, muito se conquistou, o país melhorou em vários domínios, em particular na Saúde, na Educação e na Segurança Social. Dirão alguns, é certo, que ainda há muito por fazer. Sem dúvida. A democracia, a sua sustentabilidade e o seu reforço é um processo em permanente construção. O fortalecimento do Estado Social, da economia e a melhoria das condições de vida das pessoas reclamam o envolvimento de todos, desde os poderes públicos até ao mais comum dos cidadãos.
A democracia e a liberdade não são uma garantia absoluta. Assistimos ao retrocesso que se tem registado nalguns países, com a eleição de governantes autocratas, populistas, nacionalistas, que não hesitam em capturar o poder judicial, a imprensa livre e tudo o mais que possa por em causa o seu livre arbítrio. Alguns designam essas formas de governação de “democracias iliberais”, um conceito que, a meu ver, é um contra-senso. Certo é que nestes casos o resultado é notório, com destaque para o cerceamento de direitos e liberdades individuais. É a democracia que, em toda a sua amplitude, fica condicionada, tendo como consequência directa um recuo na qualidade de vida das pessoas.
Em Portugal, malgrado o crescimento da direita radical, tal como assistimos nas recentes eleições legislativas, a democracia ainda vai dando sinais de solidez. Mas nem por isso devemos baixar a guarda. Num sector em particular, a Educação, registamos alguns retrocessos. Porque seria demasiado extenso estar aqui a elencá-los e a desenvolvê-los, fico-me apenas por um deles, desde logo porque é determinante na vida das escolas e nas próprias aprendizagens. Em concreto, refiro-me ao actual modelo de gestão escolar.
O Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de Abril, da autoria de uma ministra da Educação de má memória, Maria de Lurdes Rodrigues, sepultou um modelo de eleição e gestão democrática das escolas que até aí vigorara, dando lugar a um modelo unipessoal e autocrático. Na senda da apologia de um conjunto de conceitos que estão muito em voga, associados ao mundo empresarial e dos negócios, tais como, competitividade, flexibilidade, empreendedorismo, produtividade ou liderança, decisores políticos e seus prosélitos não tardariam em tirar conclusões de que algo do que se aplica a esse universo, poderia perfeitamente ser transposto para o campo da Educação. Não é por um acaso que no preâmbulo do referido diploma podemos encontrar, de forma repetida e incisiva, um dos referidos conceitos: ‘liderança’. “Reforçar as lideranças”, “boas lideranças”, “lideranças fortes”, “lideranças eficazes” são expressões que por lá abundam. Juntemos-lhes, como é lá dito, e em referência ao director escolar, “um rosto (…) dotado de autoridade”. Ditos visionários acreditam que só com um “líder forte”, ladeado por serviçais, se conseguirão resolver todos os males com que a Educação se debate. De forma sarcástica, mas certeira, Virgínio Sá (2023) sintetiza o perfil deste líder da seguinte forma: “Já não precisamos de mudar coisa nenhuma, basta-nos seleccionar os líderes certos, fortes, eficazes, determinados, sábios, espirituais, iluminados, autênticos, e tudo o resto mudará no sentido certo: é fácil, é barato e proporciona uma educação de qualidade para todos. Pelo menos assim o crêem os prosélitos desta nova panaceia.” Logo de seguida acrescenta: “Cabe, contudo, perguntar qual é a concepção de professor que está subjacente a esta perspectiva funcionalista dominante da liderança. Não disporão os professores da motivação, dos conhecimentos e das competências que lhes permitam realizar o seu trabalho sem a influência/acção maternal de um demiurgo? Não serão os professores capazes de avaliar as situações quotidianas com que se confrontam e decidir de forma informada, empenhada e eticamente responsável?”[1]
O actual modelo de gestão trouxe instabilidade às escolas. É todo um ambiente escolar que se tornou instável e conflituante, com consequências nocivas, inclusive para as aprendizagens dos alunos. Veja-se, com este modelo de gestão escolar autocrático, segregador, nalguns casos persecutório, pode a escola constituir-se um espaço privilegiado para aprendizagem da cidadania, da democracia e da liberdade?
E que dizer do modelo de avaliação de desempenho docente vigente, que, como sublinha Paulo Guinote (2023), representa “uma mistificação completa, um processo de tipo kafkiano, cuja condução é deixada, quantas vezes, ao arbítrio de quem não revelou qualquer especial competência para essa função.”?[2] Num outro texto, o autor é igualmente peremptório, quando afirma que “o que tem vindo a acontecer ao nível da administração e gestão dos estabelecimentos de ensino tem sido a progressiva negação dos princípios basilares da Liberdade, da Democracia e da Participação nos processos de tomada de decisão nas escolas (…).”[3]
A comemorarmos o cinquentenário da Revolução dos Cravos, e agora com um novo governo em funções, impõe-se que uma das primeiras medidas a tomar para a Educação passe, sem demoras, por devolver a gestão democrática às escolas, e com ela a própria democracia, sem a qual, e garantidamente, muitos problemas com que elas se debatem irão permanecer, e nalguns casos agravar.


[1] Sá, Vergínio (2023). Líderes, lideranças e outros quejandos. In A Página da Educação, nº222 p.17.
[2] Guinote, Paulo (2023). Uma questão de infelicidade. JL, Ano XLIII, nº1387, p.46.
[3] Guinote, Paulo (2023). A amargura dos 50. JL, Ano XLIII, nº1381, p.40.