terça-feira, 14 de março de 2023

A autocracia nas escolas

Um dos temas que nunca esteve na mesa das negociações entre sindicatos de professores e Ministério da Educação é o actual modelo de gestão das escolas. Não porque o assunto esteja esquecido, mas porque o Ministério simplesmente mantém a porta trancada, por razões que adiante se perceberá.
Com o Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de Abril, da autoria da então Ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues, do governo Sócrates, era aprovado o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, e assim se enterrava um modelo de eleição e gestão democrática das escolas, que até aí vigorara. Os então designados presidentes de conselhos directivos passariam a directores, fazendo lembrar os reitores dos liceus do “tempo da outra senhora”. Esta é a principal razão da degradação progressiva do ambiente que se vive no seio dos estabelecimentos escolares, e que resultou naquilo que Santana Castilho classifica de “supremacia crescente do caciquismo paroquial na gestão das escolas” (Público, 19/01/2022). Sem poupar nas palavras, por certo certeiras, o autor, numa outra crónica, alerta que as escolas “são cada vez mais organizações pouco democráticas (quando não totalitárias), laboratórios sim, de experiências pedagógicas sem sentido, viveiros de integração hipócrita, fábricas de falsos sucessos e altares da mais estúpida e castradora burocracia”. Logo acrescenta que as mesmas “são hoje, com raras ilhas de excepção, mundos de venenosos interesses miudinhos e subservientes, onde a vontade colectiva é secundarizada por visões unipessoais” (Público, 13/04/2022). E a propósito dessas “ilhas de excepção”, farei justiça ao referir que conheço alguns poucos directores que, apesar do modelo de gestão unipessoal vigente, têm desenvolvido um trabalho meritório, pautado pelo respeito por toda a comunidade escolar, num clima de democraticidade, como é exemplo o director do Agrupamento de Escolas Gomes Monteiro, de Boticas, o meu caro amigo Américo Barroso.
Umas vezes por subserviência hierárquica, outras por iniciativa ou capricho próprio, o director tornou-se numa espécie de tiranete, que interpreta algumas leis segundo as suas conveniências (quando não se considera ele próprio a Lei!), que recorre a todo o tipo de expedientes para controlar ou mesmo intimidar os professores. Tudo serve para chantagear ou tentar silenciar os mais intrépidos, tais como as ameaças de penalização na avaliação e progressão docente, na elaboração de horários de trabalho retalhados, na aplicação de processos disciplinares, etc. Casos que muitas vezes terminam em litígio. E que dizer das indecorosas pressões sobre as avaliações que os professores fazem dos seus alunos, quando são chamados a justificarem, em especial, os níveis negativos atribuídos? A este respeito, importa dizer que este desvelo inscreve-se na chamada “escola de sucesso” que os governos querem ver espelhada nos rankings, e a que diligentemente muitos directores se entregam. Não importa se os alunos sabem ler e escrever correctamente, a pensar e a desenvolver uma consciência crítica, a apreciar o património, as artes e a cultura ou a desenvolverem um espírito humanista. Importam sim, os números! E isto é mais notório em concelhos em que há mais do que um agrupamento de escolas, que acabam por se digladiar entre si para assegurar a “clientela” discente. Mas é bom lembrar urbi et orbi que o que decide uma boa nota é a dedicação, aliado a um comportamento exemplar, e não a casta a que o aluno pertence ou as pressões dos seus progenitores junto do director ou professores.
Face a este retrato negro, marcado pela autocracia e por um ambiente policial reinantes em muitas escolas, alguém esperava outra reacção que não fosse a revolta e a oposição dos professores ao modelo de recrutamento e colocação docente pretendido pelo ME, a urdir por conselhos locais de directores, entretanto travestido de “Conselho de Quadro de Zona Pedagógica”?
Como dizia Elvira Tristão, o problema das actuais direcções de escolas, que designa de “lideranças tóxicas”, “obriga a uma reflexão séria sobre a recente involução do regime jurídico da administração e gestão escolar, e a sua revisão, com a valorização das lideranças intermédias, na colegialidade colaborativa, e num sistema de accountability inteligente, assente nos valores da democracia colaborativa, da transparência da equidade e da justiça” (Público, 9/04/2022).