terça-feira, 25 de maio de 2021

Alma lusa

Acostumámo-nos a ouvir os mais variados louvores atribuídos ao povo lusitano. Que somos gente de brandos costumes, solidária, que sabe e gosta de receber quem nos visita, enfim, um povo que derrama virtudes. Um recente caso (há muito e por muitos conhecido) vindo a público, a respeito da exploração de mão-de-obra escrava na agricultura intensiva, obriga-nos a reflectir sobre a alma lusa. Refiro-me obviamente ao caso de Odemira, altamente mediatizado, devido à cerca sanitária montada em duas das suas freguesias, como resposta aos casos de infecção por COVID-19 aí registados. Mas outras situações são igualmente conhecidas por outras paragens, como no Algarve, Ribatejo ou Beiras.
A mirada ou atitude preconceituosa, receosa, discriminatória, por vezes soez de muitos portugueses ficou a descoberto através de algumas reportagens televisivas levadas a cabo em Odemira. Quantas das pessoas que se lamentavam, perante as câmaras, do infortúnio dos muitos emigrantes explorados nas estufas eram e serão coniventes com o que se estava e está a passar? Quantas delas, de forma omissa, estarão a contribuir para o acentuar da vida desgraçada desses miseráveis, através, por exemplo, da cobrança de uma renda exorbitante, por um alojamento em condições degradantes? Face a esta realidade indesmentível, dirá o nosso Presidente da República, pela enésima vez, que somos os melhores do mundo?
A exploração de mão-de-obra escrava por alguns empresários agrícolas, com o auxílio de empresas fantasma de recrutamento (os ditos intermediários) começa logo, imaginem só, pela cobrança por cabeça de uma soma avultada, milhares de euros, para que os trabalhadores possam vir trabalhar para Portugal. Acresce o pagamento (quando ele não falha!) de um ordenado aquém do prometido, jornadas de 10 ou mais horas de labor, que se estendem ao fim-de-semana, ausência de protecção social, para além da clara violação de Direitos Humanos.
Já nem sequer me vou debruçar sobre questões/atentados ambientais, resultantes da agricultura intensiva, predatória de recurso naturais, violadora de zonas/reservas naturais protegidas, sobre as quais muito haveria a dizer, a começar pela omissão e negligência de actuais e anteriores governantes.
Uma nação que se esquece que fomos e continuamos, infelizmente, a ser um país de emigrantes, como pode fazer vista grossa a esta situação? Porventura já se esqueceram ou desconhecem o que foram os “bidonvilles”, em França, desde meados da década de 50 até início da de 70 do século passado? Bairros de lata que proliferavam um pouco por todo o país, em que dezenas de milhares de portugueses viviam em condições miseráveis e cujo trabalho era mal pago?
Como bem dizia Miguel Sousa Tavares, num artigo publicado no Expresso do dia 14 deste mês, aludindo ao que se passa em Odemira ou na região do Alqueva, a exploração de uma massa de trabalhadores imigrantes não se fica apenas pelos empresários e as máfias dos intermediários. São igualmente, como acrescenta, “os locais, o povo, sim, o bom povo português, que não tem escrúpulos em cobrar 130 euros mensais por uma enxerga miserável num pardieiro onde vivem 18 imigrantes (2340 euros mensais pelo pardieiro) e onde nem animais deveriam viver. E não é só o facto de toda esta próspera economia viver à margem da lei, do Fisco, da Segurança Social, do Estado de Direito: é a miséria moral que tudo isto revela sobre nós mesmos. A indecência colectiva de quem se tem aproveitado, mas também de quem sabia e nada fez, de quem não quis ver e de quem — depois de saber e de ver — continua a fingir que vai resolver o problema, sabendo bem que nada de essencial vai mudar”.
Valha-nos, ao menos, alguns casos exemplares como nos deu conta, recentemente, uma reportagem feita no Fundão, numa propriedade produtora de cereja, em que os imigrantes, de várias nacionalidades (europeia e asiática) usufruíam de condições condignas de trabalho, alojamento, vencimentos e respeito por parte dos seus empregadores.