segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O maior dos
desideratos

Mais uma época natalícia que termina, e com ela mais um período de consumismo desenfreado, que se junta a mais um débito alargado de votos de um bom ano novo. Passada esta temporada tudo volta ao normal. Os gestos de solidariedade esvaem-se e cada um segue o seu ritmo de vida, com maiores ou menores constrangimentos. O que fica? Todos os valores, ou pelo menos uma boa parte deles, passam para segundo plano. Cada um regressa à sua rotina, tentando viver conforme sabe ou pode.
Que lugar toma o amor no meio disto tudo? Que proveito retiramos das nossas relações com os demais, sobretudo das pessoas que nos são mais próximas? O que queremos de nós e dos outros? Mais fácil de perguntar do que responder, certamente! Creio ser imperioso começar por procurar respostas para sossegar os nossos ímpetos, de modo a pacificar a nossa alma e assim encontrar um equilíbrio emocional. Nem sempre conseguimos o que desejamos, mas neste efémero caminho que representa a nossa vida necessitamos de usufruir de momentos que nos realizem, que nos encham de alegria e que nos permitam pequenas, mas sólidas conquistas. É assim que concebo a vida, passo a passo, tentando realizar-me com o proveito que recolho de cada experiência e com ela recriar o meu mundo. E assim vamos construindo a nossa sabedoria, um património de conhecimentos e valores.
E sobre sabedoria, Nietzsche dizia que ela “quer-nos corajosos, despreocupados, trocistas, imperiosos; ela é mulher e apenas sabe amar um guerreiro” (Nietzsche, s/d: 39). A meu ver, corajosos, porque a vida é feita de riscos, conflitos e barreiras, que desafiam e põem à prova as nossas capacidades. Despreocupados, no sentido de não nos deixarmos prender demasiado com questões ou situações laterais, menores, mantendo, entretanto, um distanciamento atento e consciente daquilo ou daqueles que apenas não se identificam com o nosso conceito de felicidade. Trocistas, porque a vida também nos exige, por vezes, ousadia, atrevimento e algum sarcasmo, para nos libertarmos, por exemplo, da forma desdenhosa como alguns nos olham. Imperiosos, porque necessitamos de determinação, persistência e domínio, para tentar conquistar os nossos desideratos. E qual o maior de todos senão o do amor? De que vale, ou qual o significado de uma vida sem afectos, carinho, paixão… lá está, de amor? Nenhum.
O amor necessita de asas para voar e planar sobre o mar dos desejos, em busca do deleite. Para tal, precisamos de uma consciência despida de preconceitos, da liberdade que nos permita tirar partido dos momentos que nos dão prazer e nos realizam. Necessitamos de nos libertar das amarras interiores e exteriores que nos enclausuram. A nossa liberdade dependerá igualmente da liberdade dos outros. Só assim o amor poderá resultar em comunhão.


BIBLIOGRIA:

NIETZCHE, Friedrich (s/). Assim falava Zaratustra. Colecção Grandes Génios da Literatura Universal. Amadora: Educlube.

domingo, 22 de novembro de 2009

Comemoração

Pois é, este mês de Novembro não podia passar sem a referência a uma efeméride, digna de constar nos anais da História! Que mais poderia ser senão a comemoração dos dois anos de existência deste singelo blog?
Aos dezanove dias do mês de Novembro de dois mil e sete, e depois de umas longas horas de gestação, via a luz do dia, pela primeira vez, este espaço de reflexão, que viria a mudar o rumo da História.
Inicialmente pensado apenas para relatar as minhas aventuras na montanha, logo acabaria por se estender à narração de outras não menos dignas. Tendo, desde logo, assumido o compromisso de escrever pelo menos um texto por mês, cedo percebi que seria difícil fazê-lo se apenas me cingisse às minhas actividades de montanha, uma vez que estas acontecem de forma mais espaçada. Portanto, senti a necessidade de variar nos temas de reflexão para que pudesse respeitar o referido compromisso. É que eu sou muito dado a teimosias!
Embora o meu tema de eleição continue a ser a montanha – fonte inesgotável de experiências, sensações e aprendizagens únicas –, a educação, a cidadania, o ambiente, a sociedade, a arte ou a filosofia, são alguns dos temas que têm merecido a minha atenção. Se nalguns sou mais erudito – fruto da minha actividade académica e científica –, noutros procuro ser mais soft, reflectindo sobre alguns factos que me rodeiam e sobre a própria existência humana. Quem sou eu, quem são os outros, o que procuro, o que desejo, o que necessito, que chão piso, que riscos corro, até onde posso chegar, são algumas das várias questões que me coloco, com maior ou menor frequência. Deste exercício de meditação, acabam por brotar algumas linhas que pretendo que sejam as mais genuínas possíveis. Daí eu elejer “Em busca da essência da beleza” e “As razões do coração” como os ensaios melhor conseguidos neste ciclo que agora termina. Veremos como será aquele que agora se inicia!
Também no âmbito da celebração dos dois anos do meu blog, edito um novo Slideshow, com algumas fotos minhas, que registam alguns dos momentos mais marcantes deste ano de 2009. Outros momentos igualmente (ou mais) importantes gostaria eu de os incluir nesse mesmo espaço, mas (in)felizmente não tenho fotos! É que não é fácil consegui-las de princesas, anjos, deusas, ninfas, fadas, dragões, duendes, feiticeiras e de outras figuras encantadas!

sábado, 31 de outubro de 2009

Educar para os Direitos Humanos

No contexto europeu, a promoção da educação para os direitos humanos, na escola, teve início no ano de 1978, depois do Comité de Ministros do Conselho da Europa ter adoptado a Resolução (78)41 sobre «O ensino sobre os direitos humanos», na sequência de um colóquio internacional acerca desse ensino, realizado em Estrasburgo, em 1976, na sede do Conselho (Cf. Monteiro, 2001: 231). Nesta Resolução, o Comité de Ministros deixava recomendações aos Estados-membros para que privilegiassem o ensino de direitos do homem nos programas de ensino e formação, inicial e contínua, a todos os níveis (Cf. Monteiro, 2001: 231-232). Desde este momento, muito se tem dito e escrito sobre educação para os direitos humanos, entretanto com algumas críticas à mistura.
Nogueira & Silva (2001: 83) sublinham que não é suficiente “a mera defesa dos direitos humanos, como tem vindo a ser entendida, para se construir uma ideia de sociedade que continue a garantir a protecção social assumida, desde há algumas décadas, pelo Estado social”. Para José Soares (2003: 8), os direitos humanos e fundamentais “têm surgido de fora para dentro, de cima para baixo, dificilmente interiorizados ao nível individual, procurando desempenhar um papel inclusivo, aglutinador, fundamental à dimensão democrática”. O próprio direito à educação, consagrado no Artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda não é uma realidade efectiva nalguns países. Privados deste direito, muitas crianças, jovens e adultos estão impossibilitados de exercer os seus direitos e deveres para com a comunidade e, desde logo, do pleno exercício da cidadania. Acontece ainda que “o direito à educação depende da vigência de outros direitos e que a educação é um requisito para o advento de um mundo mais livre e igualitário, como refere a Declaração Universal” (Martins, 2003: 78).
Com base nestas considerações, torna-se imperioso a implementação de um conjunto de práticas conducentes à interiorização, por parte do sujeito, do valor da dignidade humana e da importância do exercício dos direitos humanos, a par das responsabilidades que cada um deverá assumir para assegurá-los.
A abordagem dos direitos humanos constitui não apenas um ponto de referência, mas também um ponto de partida para um processo que vise a construção de uma cidadania mundial. António Fonseca (2001: 42) admite precisamente que “o valor fundamental da educação para a cidadania democrática reside no respeito pelos direitos humanos”. À escola cabe-lhe a tarefa de criar um ambiente de liberdade, uma cultura democrática, para que se desenvolva uma interdisciplinaridade entre direitos e valores humanos. Tal como defende Santiago Torrado (1998), todos os direitos humanos constituem o núcleo da educação democrática.
Os direitos humanos devem, sobretudo, ser vividos pelos próprios alunos. A escola deve, no seu dia-a-dia, fazer com que esses direitos sejam respeitados, um compromisso que, obviamente, deverá ser partilhado com a família e a comunidade. Da actividade pedagógica que decorre de uma educação para os direitos humanos resultarão, naturalmente, alguns efeitos desejados na formação dos alunos. Fernando Gil admite que o ensino dos direitos humanos poderá suscitar, em particular, dois efeitos: por um lado, a aprendizagem e a compreensão do “valor de cada ser humano”; por outro, “a necessidade de adoptar um compromisso humanizador nos nossos actos” (Gil, 1999: 74). Estamos de acordo com este autor quando sublinha a importância da convivência escolar e dos acontecimentos nela subjacentes, e o quão poderão contribuir para ajudar os alunos a compreender o valor do ser humano numa variedade de circunstâncias. O mesmo refere ainda que:

“A necessidade de servir-se de situações imprevistas surgiria ao reparar que a correcta compreensão dos direitos humanos não radica numa fundamentação ou explicação racional dos mesmos, mas sim em descobrir através da convivência que todos temos umas aspirações comuns de humanização” (Gil, 1999: 75).

A juntar aos efeitos educativos resultantes do ensino dos direitos humanos, e aos aspectos em que deverão incidir[1], Fernando Gil apresenta um conjunto de propostas de acções educativas, com o objectivo de desenvolver uma formação em direitos humanos nos diferentes níveis de ensino, desde a educação infantil ao ensino superior.[2]
Em Dezembro de 2004, a ONU comemorou o Dia Internacional dos Direitos Humanos, assinalando o fim da Década das Nações Unidas para a Educação no Domínio dos Direitos Humanos (1995-2004). Para que se desse uma sequência ao trabalho que se tem vindo a desenvolver neste capítulo, aproveitou-se o momento para lançar o Programa Mundial sobre a Educação no Domínio dos Direitos Humanos. A primeira fase, a decorrida entre 2005 e 2007, foi dedicada à educação no domínio dos Direitos Humanos na educação básica e secundária. A comunicação do então secretário-geral das nações Unidas, Kofi Annan, apontou claramente para a necessidade de o mundo imprimir mais esforços para informar as novas gerações sobre os seus direitos, de modo a que todas as pessoas, sem excepções, aprendam a respeitar a dignidade dos outros e a garantir esse respeito em todas as sociedades:

“O Dia Internacional dos Direitos Humanos recorda-nos, todos os anos, os problemas de direitos humanos que subsistem nas nossas comunidades e no mundo e os enormes esforços que há ainda a fazer para que os direitos humanos sejam uma realidade.
A educação em matéria de direitos humanos constitui uma parte essencial desses esforços graças aos quais se pretende que as novas gerações conheçam os seus direitos e disponham de meios para os exercer e defender. (…)
A educação no domínio dos direitos humanos é muito mais do que uma simples lição na escola ou do que um tema de um dia; é um processo que visa dar às pessoas os instrumentos de que precisam para viver em segurança e com dignidade (…)”.
[3]


[1] Fernando Gil defende que para que o aluno aprenda a perceber o valor do ser humano e se comprometa a humanizar os efeitos pessoais e sociais dos seus actos, a actividade pedagógica deverá permitir que desenvolva os seguintes aspectos:
· Conhecer a Declaração dos direitos do homem e a Convenção Internacional dos direitos da criança.
· Conhecer os conceitos da condição humana e da dignidade humana.
· Desenvolver o raciocínio deliberativo.
· Desenvolver a capacidade de valorizar mais o direito à autodeterminação dos sujeitos que o direito à autodeterminação de qualquer comunidade ou grupo social.
· Desenvolver a capacidade de colocar-se no lugar dos demais.
· Desenvolver o conhecimento do princípio de interdependência humana.
· Desenvolver a capacidade de respeitar outras culturas e costumes diferentes dos seus.
· Desenvolver aptidões de comunicação interpessoal e de solução não violenta de problemas.
· Desenvolver a capacidade de atender à dimensão especificamente pessoal dos sujeitos.
· Desenvolver a capacidade de perceber consequências sociais e pessoais nos nossos comportamentos.
Cf. Gil (1999: 76).
[2] Sobre as referidas propostas de acções educativas, Cf. GIL (1999: 77-89).
[3] Mensagem de Kofi Annan, por ocasião do Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de Dezembro).

BIBLIOGRAFIA

MONTEIRO, Agostinho (2001). Educação da Europa e a aprendizagem da democracia. Porto: Edições Asa.
NOGUEIRA, Conceição & SILVA, Isabel (2001). Cidadania: construção de novas práticas em contexto educativo. Porto: Edições Asa.
SOARES, José (2003). Como abordar a cidadania na escola. Porto: Areal Editores.
MARTINS, Ernesto (2003). “As implicações curriculares da educação para a cidadania”. In Educare Educere, Ano IX, nº 14. Escola Superior de Educação de Castelo Branco, pp. 69-91.
FONSECA, António (2001). Educar para a cidadania. Motivações, princípios e metodologias. Porto: Porto Editora.
TORRADO, Santiago (1998). Ciudadanía sin fronteras – Como pensar y aplicar una educación en valores. Bilbao: Editorial Descleé de Brouwer.
GIL, Fernando (1999). “La enseñanza de los derechos humanos”. In Bárcena, Fernando; Gil Fernando & Jover, Gonzalo. La escuela de la ciudadanía: Educación, ética y política. Bilbao: Editorial Descleé de Brouwer, pp. 71-103.
ANNAN, Kofi (2004). Mensagem por ocasião do Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de Dezembro).
In www.runic-europe.org/portuguese/humanrightsday122004.html.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Razões do coração

Um olhar, um gesto ou uma simples palavra podem mudar o sentido ou o rumo das nossas crenças ou vidas. Sem pôr em causa o valor das nossas vivências ou experiências, podemos ser acometidos por uma reflexão que nos leva a questionar o que somos, o que pretendemos, as opções que tomamos ou onde queremos chegar. Tratar-se-á, eventualmente, de tentar ver com mais clareza a realidade dos factos. Ou será que simplesmente procuramos seleccionar factos para desenhar a realidade que melhor nos convém?
Embora nem sempre de forma oportuna, alguns dos nossos momentos de indagação são marcados por uma vontade irrefreável de desabafo, de libertação. É como se o nosso coração, em mar revolto, desprezasse a razão e quisesse resgatar o direito e a liberdade de sentir e partilhar as emoções que o agitam. Isto faz-me lembrar a clássica dialéctica entre o coração e a razão. Dizia Pascal que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Raymond Radiguet remata, dizendo que, “Se o coração tem razões que a razão desconhece, isso deve-se ao facto da razão ser menos sensata que o coração”. Será mesmo assim!? Na esteira de Goethe, onde está a “verdade que se pode tocar com as mãos"? Aquela que nos possa assegurar a certeza das opções tomadas? Será que o amor, tal como diz Montaigne, “não é senão o desejo furioso de algo que foge de nós”? Não estaremos, aqui, a entrar no domínio da obsessão? Até onde vão os limites do amor? Estaremos certamente confrontados com perguntas de difícil ou impossível resposta... se, ou quando realmente as desejamos obter!
Paixão, desejo, sedução, aventura, erotismo, masoquismo, sexo, luxúria, deleite, loucura, criação, arte, verdade, mentira, tolerância, compromisso, medo, risco, são algumas das muitas palavras ou actos que podem estar ou ser associados ao amor. O que não se faz ou se arrisca por amor a alguém! Certo parece ser que amar pressupõe a partilha de afectos, carinho, compreensão, respeito, entre outros. O olhar, a carícia, o beijo ou o afecto são essenciais para alimentar e fazer perdurar o amor. Como dizia Nataniel Hawthorne, “As carícias são tão necessárias para a vida dos sentimentos como as folhas para as árvores. Sem elas, o amor morre pela raiz”. Mas também já ouvi dizer que o verdadeiro amor nunca se apaga, não tem fronteiras geográficas ou afectivas... é eterno. Daí a importância e o valor da memória, capaz de registar momentos únicos e intemporais, capaz de doar testemunhos a novas gerações ou, quem sabe, a novas reencarnações. Porque não acreditar?
Para que a entrega ao mais nobre acto do ser humano resulte em felicidade, será necessário, no meu entender, começar por aprender a contemplar, apreciar e valorizar o belo. É a educação estética! Só os sentidos vigilantes e receptivos são capazes de fruir a essência da beleza, pois, como lembra Nietzche, “a beleza fala em voz baixa; apenas penetra nas almas mais despertas”.
Gosto de olhar com a máxima profundidade e sem preconceitos o belo. Tentar penetrar no seu âmago para sorver a sua seiva, alimentar e enriquecer os meus sentidos, alegrar a minha alma. Gosto de me deleitar com a poesia da doce Érato, enquanto ela me afaga e me envolve nos seus braços. Sentir a sua pele macia e perfumada, enquanto me sinto entorpecido pelas fragrâncias do Olimpo. Lugar onde o corpo e a alma, prisioneiros do amor, se entregam à volúpia e se deixam levar pelo indomável desejo de posse. Onde umas mãos que seguram firmemente um rosto se fazem acompanhar de um olhar lancinante, que não mente sobre o que sente, culminando num beijo ávido e prolongado, só ele capaz de verter a verdadeira dimensão do desejo e da paixão.
Mas... mas para tal, há que ter a capacidade de nos demarcarmos do supérfluo ou acessório, por um lado, e de sermos abnegados, por outro. Como destaca Nietzche, “É preciso aprender a abstrair-se de si, para ver muito mais”, acrescentando logo de seguida que “esta droga é necessária a todos os alpinistas”, numa clara alusão àqueles que anseiam conquistar a sabedoria, metaforizando, o cume das montanhas. Não é por acaso que os presumidos não chegam a ser verdadeiros “alpinistas”. Já alcancei o cume de algumas belas e altas montanhas, e para tal tive que o fazer, é certo, com ambição, paixão, coragem, determinação, sacrifício, risco, mas também com humildade e respeito. Julgo eu que só assim se pode amar! E assim tenho amado, numa alternância permanente entre momentos de voracidade e momentos de brandura...

sábado, 29 de agosto de 2009

No vértice do Cervino

No passado dia 20 de Agosto alcancei o cume de uma montanha considerada por muitos a mais bela do mundo. Obviamente que a opinião é discutível. No entanto, é de facto uma montanha impressionante, quer pela sua beleza e forma única, quer pela exigência que coloca a quem a quiser escalar. Com os seus 4478 metros de altitude, o mítico Matterhorn (em suíço) ou Cervino (em italiano) constitui uma imponente e majestosa montanha, que se destaca na paisagem dos Alpes pela sua forma original. Assemelha-se a uma pirâmide. O seu historial é negro, pois são muitos aqueles que já lá perderam a vida… e continuam a perder. Na primeira vez em que foi escalada, a 14 de Julho de 1865, dos sete alpinistas que alcançariam o cume (Edward Whymper, Charles Hudson, Lord Francis Douglas, Douglas Hadow, Michel Croz e os Peter Taugwalder, pai e filho), apenas 3 regressariam com vida. Na descida, os restantes quatro acabariam por morrer numa queda.
Apesar de me sentir bem fisicamente, a nível anímico revelava algumas fragilidades. Valeram-me as palavras do meu Anjo da Guarda, que me deram o estímulo necessário para abraçar com coragem o desafio que se me colocava. Que bom ter um anjo da guarda!
Inicialmente estava programado escalá-la com um amigo espanhol, de Valencia, que viria a ser impedido de me acompanhar por motivos profissionais. Perante este contratempo, e dada a minha determinação em subi-la, acabei por fazê-lo em solitário até certo nível. Optando pela via mais acessível, mas mais concorrida, a via Hörnli (situada na aresta nordeste), com um desnível de cerca 1200 metros, decidi subir a montanha em duas etapas. A primeira, dos 3200 metros de altitude até aos 4000, foi na verdade conseguida em solitário. Aí decidi pernoitar num pequeno refúgio, no qual só é permitido instalar-se em caso de emergência. Uma pequena infracção necessária! Entretanto, e nesse mesmo refúgio, conheci um alpinista de nacionalidade alemã (o meu amigo Otto), que tinha os mesmos objectivos que eu (escalar toda a montanha em solitário), com o qual acabaria por acordar a subida em conjunto dos restantes 478 metros, no dia seguinte.
Diga-se, em abono da verdade e neste caso particular, que uma escalada em solitário faz-se mais rápido. No entanto, uma cordada de 2 ou 3 alpinistas proporciona maior segurança, embora nalguns casos isso possa representar um empecilho, e até algum risco.
Apesar da pressão psicológica e do desgaste físico, tudo correu bem. As vistas do cume, essas, impressionantes! Com o céu limpo pude contemplar paisagens de cortar a respiração. Um infortúnio impediu-me que as registasse. Durante a escalada, uma bolsa com uma máquina fotográfica e telemóvel que levava presa à alça da minha mochila soltou-se, tendo eu apenas tempo de a ter visto saltitar pela montanha abaixo, para acabar no abismo. Enquanto apenas forem objectos, bem vamos andando!

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Aguja de la Canalona


No passado dia 24 de Julho fiz aquela que poderei considerar uma escalada em solitário com uma dimensão algo respeitável. Tratou-se da via normal da Aguja de la Canalona (AD Sup – 80m/IV). Constituída por três lanços, esta via é de uma beleza impressionante, dada o seu percurso sinuoso, bem como as vistas maravilhosas que proporciona. Tem ainda a particularidade de terminar numa espécie de terraço.
Ainda com uma prática por apurar neste tipo de escalada, tratou-se de um teste às minhas capacidades. O nervosismo que antecedeu a ascensão logo se foi perdendo à medida que fui escalando e ganhando confiança. Apesar de um nível baixo, estas via de escalada clássica requer alguns cuidados, dado exigir técnicas de escalada variadas (aderência, entalamentos, bloco, etc.), e ainda pelo facto de ter algumas travessias que, para quem sabe, em caso de queda leva a que se façam movimentos pendulares, com riscos consideráveis.
Situada no maciço central dos Picos de Europa, esta via, e este pico, foi escalado pela primeira vez a 8 de Agosto de 1948, por um grupo constituído pelos irmãos Alfonso e Juan Tomás Martínez, juntamente com mais dois companheiros de escalada, José Odriozola e Alfonso Alonso. Desde aí, outras vias se abriram nesta agulha, que se assemelha mais a uma torre.
Sem dúvida um “monumento” rochoso que me deixou o desejo de voltar a escalar numa próxima oportunidade, mas agora por uma outra via mais longa e de maior exigência. Veremos!

terça-feira, 21 de julho de 2009

Educação Intercultural


O fenómeno migratório, verificado na Europa nos anos 60, fez com que despertasse uma preocupação relativamente aos filhos dos trabalhadores migrantes, que se começavam a concentrar em guetos multiculturais. Esta preocupação acabaria por entrar na agenda da Conferência Permanente de Ministros da Educação Europeus. A propósito desta problemática, Agostinho Monteiro desenvolve um estudo exaustivo sobre a promoção de uma educação intercultural e, inclusive, de uma educação para os direitos humanos, partindo da análise de diversos documentos produzidos, em especial pelo Conselho de Europa (Cf. Monteiro, 2001: 228-244). Na Recomendação 1089(1988) relativa ao melhoramento das relações intercomunitárias, a Assembleia Parlamentar, em 1988, reconhece o contributo que a educação intercultural poderá dar, quer na integração das populações migrantes nos seus espaços de acolhimento, quer na luta contra as diferentes formas de discriminação, quer ainda na eliminação do racismo e da xenofobia. As diferentes acções desenvolvidas neste período a favor da educação intercultural levariam à criação de um grupo de trabalho (liderado por Micheline Rey von Allmen), sobre a formação de docentes responsáveis pelos filhos de migrantes, e cujos trabalhos, decorridos entre 1977 e 1983, permitiriam chegar às seguintes conclusões:

- a noção de multiculturalidade é da ordem do descritivo, a de interculturalidade visa interacção, que exclui tanto a separação como a assimilação;
- a interculturalidade deve tornar-se um princípio geral de educação que implica o reconhecimento e valorização recíprocos entre culturas;
- a educação intercultural exige, nomeadamente: a revisão dos critérios de avaliação; uma abordagem artística como via privilegiada para a valorização das diferenças culturais; formação de professores para o conhecimento das culturas e as dificuldades da relação e comunicação interculturais (Cf. Monteiro, 2001: 229).

Relativamente à primeira conclusão, constatamos que o conceito de multiculturalidade ou de multiculturalismo surge, pela voz de alguns autores, associado à mera partilha de um determinado espaço por duas ou mais culturas ou etnias. Michel Wieviorka (1999), interrogando-se sobre a validade e actualidade do conceito de multiculturalismo, considera que este “remete demasiado para a imagem de simples coexistência democrática de culturas já estabelecidas (…)” (cit. por Casa-Nova, 2002: 26). Na mesma esteira, Ricardo Vieira (2000: 57) remete o termo multicultural para a simples “pluralidade de culturas em jogo”, ou seja, para a “coexistência de culturas e subculturas que se traduzem em diferentes efeitos”.
A noção de multiculturalismo suscita outras leituras. Luísa Cortesão (1997) considera mesmo que o multiculturalismo “é um conceito complexo e ambíguo de que os autores se socorrem, embora não partilhem obrigatoriamente da mesma visão do mundo” (cit. por Casa-Nova, 2002: 27). A mesma polissemia ou a falta de consenso parece verificar-se, tal como sublinha Rigoberta Menchú, relativamente ao conceito de interculturalidade, pelo facto da discussão sobre as possibilidades e metas desta estar “marcada por certa desconfiança e pelo desconhecimento dos seus limites e alcances” (Menchú, 2002: 63).
No entanto, o conceito de interculturalidade ou interculturalismo implica, segundo vários autores, um contacto, um diálogo, um convívio entre culturas, de modo a que se desenvolva um fortalecimento e enriquecimento dos laços sociais (Vieira, 2000; Peres, 2000; Lopes, 2001; Imbernón, 2000 e Menchú, 2002).
Contudo, apesar das possíveis e variadas interpretações, podemos encontrar vários pontos em comum entre os conceitos de multiculturalismo e de interculturalismo que se têm produzido. Em ambos os casos, o estudo dos fenómenos e problemáticas relativos a minorias, a migrações, a lutas sociais, à conquista de direitos de cidadania, justiça social, etc., têm-se feito recorrendo frequentemente à abordagem de outros conceitos, tais como, inclusividade, alteridade, diferença, diversidade, tolerância, entre outros. Acontece que, no entanto, nem sempre a análise a estas questões se faz tendo em conta as diferentes perspectivas e identidades culturais. Tal posicionamento poderá degenerar num clima de desconfiança, de crispação, de sentimentos de descriminação, levando a que se criem “caldos de cultura” propícios a germinação de fundamentalismos, sejam eles religiosos, étnicos ou de outra natureza.
Os imperativos e interesses económicos têm igualmente levado a que as grandes potências económicas – por vezes com o apoio das grandes instituições financeiras, como o FMI ou a OMC – adoptem políticas que têm como principais objectivos (quando não os únicos), a acumulação de fortunas, sem entretanto olharem às consequências negativas que resultam das suas investidas, com fortes prejuízos para as populações. São disto exemplos: a diminuição de recursos naturais, a poluição, a expropriação indiscriminada de terras, a exploração de mão-de-obra barata, a aculturação, etc. Este cenário de modo algum contribui para promover a interculturalidade. Nesta acepção se inscrevem oportunamente as palavras de Menchú:

“As políticas colonialistas, hegemónicas, monoculturais, excluentes, centralistas, discriminatórias e racistas são contrárias ao pleno reconhecimento e respeito pelas identidades nacionais e pela diversidade cultural dos povos; portanto, são contrárias à construção da convivência intercultural da humanidade” (Menchú, 2002: 64).

Roberto Carneiro (1997) admite que um projecto educativo verdadeiramente emancipador terá necessariamente que ser intercultural, elegendo o diálogo como condição necessária e indispensável para o entendimento entre culturas. E é desta forma que entramos na segunda e terceira conclusões do grupo de trabalho mencionado por Agostinho Monteiro.
Uma Educação Intercultural[1] terá de ter em consideração a afirmação da igualdade de direitos, a valorização da diversidade, o espírito de tolerância (não no sentido de condescendência) e o respeito pela identidade cultural. No entanto, “não deve ser vista como um projecto para as minorias, os povos indígenas ou os emigrantes. Ao contrário, deve conceber-se como um programa geral, dirigido a toda a sociedade, pois a interculturalidade num mundo pluricultural é uma questão que compete a todos” (Menchú, 2002: 68). É aqui que, como não podia deixar de ser, as instituições educativas e culturais jogam um papel importante, senão mesmo decisivo, na definição e adopção de um posicionamento interaccionista e contextual. Mas não sem antes romperem, como afirma Blandina Lopes (2001: 56), com os seus “caracteres unidimensionais”, de modo a integrarem a diversidade cultural.
Apesar do discurso ideológico, a previdência aconselha que tenhamos em linha de conta duas questões, quando abordamos a interculturalidade ou a educação intercultural. A primeira questão prende-se com a necessidade de estarmos conscientes que a educação intercultural não é panaceia para todos os males ou dificuldades educacionais que são frequentemente manifestadas pelas nossas crianças ou jovens, sobretudo da parte daqueles que constituem as minorias. Embora conscientes dos antagonismos de que são feitas as relações humanas e sociais, acreditamos que o conhecimento mais profundo de outras culturas contribuirá para combater quer o assimilacionismo, quer a aceitação passiva das diferentes culturas, quer a “guetização”, quer ainda a exclusão social. Importa promover a participação, “sustentada em situações de igualdade e em que cada grupo se reconhece e conhece também os outros” (Leite, 2003b: 43).
Uma formação em contexto intercultural implicará necessariamente professores e educadores preparados para trabalhar com a diversidade cultural. Estes profissionais da educação deverão manifestar um espírito de abertura face a essa mesma diversidade e à complexidade do real. Deverão recusar a perspectiva culturocentrista e concentrarem-se num modelo pedagógico aberto e dinâmico, capaz de proporcionar aos diferentes jovens experiências que lhes permitam criar laços, confrontar as suas perspectivas e modos de ver e de estar no mundo que os rodeia, sem que isso conduza naturalmente a qualquer tipo de assimilação cultural.
A segunda questão que se coloca diz respeito a determinados aspectos negativos de certas culturas, que persistem em determinadas práticas que violam os Direitos Humanos. A excisão feminina, uma tradição ancestral[2], é um exemplo, entre vários, de uma prática que, para além de constituir um risco para a saúde da pessoa em causa, atenta contra a dignidade humana. Rigoberta Menchú (2002), Ricardo Ibañez (2002) e Jurjo Santomé (2003) assumem posições críticas quanto a este tipo de situações. Defendem uma análise crítica dos próprios valores culturais. Assim, a compreensão do relativismo cultural e a aceitação das diferenças existentes nas diversas sociedades, deverá ser feita, tendo em conta determinados limites, respeitando questões de género, sexo, raça, etnia, entre outras. A preservação de tradições, de costumes, enfim, de identidades, não pode ser feita sacrificando valores universais dos direitos humanos. Jurjo Santomé adverte para os perigos de nos fixarmos em essencialismos que acabem por abrir portas para a manutenção de situações discriminatórias no seio de algumas culturas. O mesmo sublinha que

“não podemos esquecer que existem estilos de vida e comunidades que mantêm tradições e ritos que atentam profundamente contra direitos tão básicos como os direitos humanos e que se perpetuam porque não se acostumam a submeter a análise nem a debate, em situações de igualdade e liberdade” (Santomé, 2003: 125).

O autor refere-se, em concreto, à necessidade de se fazer uma revisão crítica desses essencialismos, adstritos a certas posições multiculturalistas – que advogam que as identidades são algo de fixo e imutável e que, por isso, algumas diferenças se devem manter –, consubstanciados num imobilismo que impede que os sujeitos mais vulneráveis, em função do sexo, etnia ou raça, se possam emancipar e conquistar direitos consagrados, impedindo que as sociedades se tornem mais justas e igualitárias.
Na defesa de uma escola cultural, uma educação intercultural terá necessariamente de passar por um processo do qual resulte a formação de sujeitos capazes de se abrirem à complexidade do real e à diversidade de culturas, desprendendo-se de perspectivas e visões do mundo unipessoais e absolutizantes, que adoptem formas de interacção supra-culturais que resultem na valorização da singularidade característica de cada cultura.


[1] Elegemos este conceito por considerarmos, antes de mais, a origem etimológica do termo “intercultural” (que aponta para um interacção entre culturas); depois, porque nos identificamos com as reflexões feitas por alguns autores sobre esta matéria, tais como, Menchú (2002), Imbernón (2002) ou Leite (2003).
[2] Calcula-se que, na actualidade, esta prática – com origem, segundo alguns historiadores, ainda antes do século V a.C. – ainda se verifica em 28 países africanos e alguns asiáticos. Cf. Melro (2005: 40).


BIBLIOGRAFIA

CARNEIRO, Roberto (1997). “Educação para a cidadania e cidades educadoras”. In Brotéria, 144, pp. 397-398.
CASA-NOVA, Mª José (2002). Etnicidade, Género e Escolaridade. Estudo em torno das socializações familiares de género numa comunidade cigana da cidade do Porto. Lisboa: Instituto de Inovação.
IBAÑEZ, Ricardo (2002). “La Educación Intercultural en la Nueva Escuela”. In Patrício, Manuel (org.). Globalização e Diversidade : a Escola Cultural, uma resposta. Porto: Porto Editora, pp. 89-102.
IMBERNÓN, Francisco (2002). “Introducción: El nuevo desafio de la educación. Cinco ciudadanías para un futuro mejor”. In Imbernón, Francisco (coord.). Cinco ciudadanías para una nueva educación. Barcelona: Editorial Graó, pp. 5-14.
LEITE, Carlinda (2003b). Para uma escola curricularmente inteligente. Porto: Edições Asa.
LOPES, Blandina (2001). “A reconstrução do sujeito”. In Carvalho, Adalberto (org.). Filosofia da Educação: temas e problemas. Porto: Edições Afrontamento, pp. 37-59.
MENCHÚ, Rigoberta (2002). “El sueño de una sociedad intercultural”. In Imbernón, Francisco (org.). Cinco ciudadanías para una nueva educación. Barcelona: Editorial Graó, pp. 63-81.
MONTEIRO, Agostinho (2001). Educação da Europa e a aprendizagem da democracia. Porto: Edições Asa.
PERES, Américo (2000). Educação Intercultural: Utopia ou Realidade? 2ª Edição. Porto: Profedições.
SANTOMÉ, Jurjo (2003). “A educación escolar en las sociedades multiculturales”. In Bonafé, Jaume (coord.). Ciudadanía, poder y educación. Barcelona: Editorial Graó, pp. 113-132.
VIEIRA, Ricardo (2000). Ser igual, ser diferente. Encruzilhadas da identidade. 2ª Edição. Porto: Profedições.

sábado, 27 de junho de 2009

Educação Ambiental

Raro é o dia em que não sejamos confrontados com notícias, sobretudo pela televisão, que dão conta de problemas ecológicos ou ambientais. A destruição de florestas (e com elas habitats e respectivas espécies), a poluição do ar, da água e dos solos, a degradação da camada do ozono, o aquecimento global do planeta, o degelo de glaciares, a exploração desenfreada dos recursos naturais, são alguns exemplos de uma lista infindável de problemas ambientais que assolam o nosso planeta. Os atentados de que o meio ambiente tem vindo a padecer colocam em causa a existência do próprio ser humano. O modelo económico dominante tem, de certa forma, contribuído para o agravamento desta situação.
A degradação do meio ambiente, que não reconhece fronteiras, tem levantado inúmeras preocupações às populações de diferentes culturas e países. Sendo legítimas, estas preocupações suscitam-nos apreensão e incertezas quanto ao futuro do planeta. Uma consensualidade parece emergir em torno da necessidade de procurar novos valores e uma nova ética que orientem as relações sociais, a favor de um melhor ambiente e de uma natureza mais protegida. Caberá naturalmente à educação um papel basilar em todo este processo.
Actualmente, as preocupações e o discurso em torno das questões ambientais continuam naturalmente presentes. O desenvolvimento das sociedades actuais tem levado a uma degradação crescente e generalizada do meio ambiente, bem como à escassez dos recursos naturais. O crescente consumo energético e o desequilíbrio ambiental do planeta, associados ao desenvolvimento da economia global, têm suscitado muita apreensão na sociedade em geral e um sentimento generalizado da premência em tomar medidas que ponham um travão a estes problemas. Este sentimento reforça-se através da informação constante que recebemos pela mão dos media, que nos dão conta da gravidade do estado do ambiente e da inexistência de medidas mais urgentes. Os cidadãos começam a tomar consciência da complexidade das soluções necessárias.
Na verdade, a actualidade política e económica suscita algumas visões pessimistas acerca do problema, que não deixam, entretanto, de ser realistas. Para Eurico Figueiredo (2000: 10), “quando os desafios ambientais exigiam ponderação, controlo, regras, punição das infracções, a humanidade vive, sem lei nem roque, o maior descontrolo dos processos de intercâmbio económico que, potencializados pelas novas tecnologias da comunicação, atingiram níveis sem precedentes”. O autor apresenta algumas razões que justificam, no seu entender, esta conjuntura.[1]
Apesar da emergência de uma consciência ecológica global, tem-se assistido a uma “crescente degradação da qualidade ambiental e dos valores humanos culturais e patrimoniais, à escala mundial […]” (Morgado; Pinho & Leão, 2000: 9). No entanto, tal como temos vindo a acentuar, assiste-se a um interesse generalizado pelas questões ligadas ao ambiente, verificando-se um número crescente de pessoas que aderem a esta causa. O aparecimento de grupos ecologistas e de protecção do meio ambiente surge, precisamente, na sequência de uma opinião pública mais sensibilizada e mais vigilante perante os problemas de ordem ecológica e ambiental. Espera-se e deseja-se que este facto e estas manifestações se traduzam num compromisso do cidadão para com o património natural. Tal como sublinha Roberto Carneiro (1997: 405): “O cidadão do futuro é necessariamente um militante da causa da preservação do seu meio ambiente e um guardião dos bens da natureza em nome das gerações vindouras”.
Contudo, apesar das inquietações anteriormente referidas, as sociedades democráticas contemporâneas continuam a revelar uma apatia por parte dos seus cidadãos, que vão dando indícios de uma falta de predisposição para intervirem na res publica. A dita consciência ecológica não tem sido, pelo que atesta a realidade, suficiente para convocar governos, empresas e opinião pública para a causa ambiental. O alcance de um consenso alargado sobre este tema só será possível “à custa de uma ampla mudança de mentalidades e de um inequívoco incremento da capacidade de cada cidadão de se comprometer com a coisa pública (ambiente incluído)” (Nogueira, 2000: 12). O combate a esta apatia do cidadão encontrará certamente na educação ambiental o instrumento mais que necessário para pôr em prática um processo conducente à mudança de mentalidades, valores e atitudes.
De uma educação ambiental espera-se o desenvolvimento de uma consciencialização profunda das camadas mais jovens às mais adultas, e de uma sensibilização dos diferentes sectores da organização social. Trata-se de promover uma responsabilidade conjunta, partilhada e assumida, no sentido de levar cada cidadão, numa acção cívica, a defender os valores de um património natural, através da participação activa e interessada.
Entretanto, consideramos oportuno fazer uma breve abordagem à evolução do conceito de Educação Ambiental, na dialéctica que envolve a humanidade e a natureza.
Inicialmente, as teorizações em torno do conceito davam relevo a uma perspectiva conservacionista e ecológica, que apostava particularmente na resolução e prevenção dos problemas causados pelo impacto da acção humana nos sistemas biofísicos. Esta concepção de educação ambiental encontra as suas origens nos países desenvolvidos, num período em que se procura dar resposta aos impactos provocados pelo progresso moderno, nomeadamente: a poluição (do ar, da água e dos solos), o perigo de extinção de espécies (animais e vegetais) e o risco de esgotamento dos recursos naturais.
Nos últimos anos, temos assistido a uma nova abordagem do conceito, apoiada mais numa visão holística. A educação ambiental passou a ser vista como via privilegiada para a promoção de novos valores, de novas condutas sociais, tendo como princípio orientador a ética nas relações sociais. Com origem na América Latina, esta perspectiva assume uma posição socio-crítica, sustentada num conhecimento complexo e integrado da realidade, que congrega o ser humano e as suas problemáticas de vida. Debruça-se sobre os modelos de desenvolvimento, as suas bases culturais, o comportamento dos mercados e os diversos sectores envolvidos.
Numa primeira ilação, podemos concluir que, independentemente dos conceitos ou perspectivas geradas em torno da educação ambiental, o importante é que juntemos os esforços necessários para encontrar as bases de uma educação que promova um desenvolvimento humano integral; uma educação que caminhe na procura de um sentido e de um significado para a existência humana, que se joga no triângulo dialéctico homem – natureza – sociedade.
O adiamento de medidas com vista à resolução ou redução dos problemas ambientais, com os quais nos confrontamos, poderá ter consequências nefastas ou irreversíveis, podendo toda a humanidade vir a ser responsabilizada pelas gerações vindouras e pagar um alto preço por uma atitude passiva e conivente. Todas as instituições sociais têm, por isso

“o dever de contribuir, à medida das suas atribuições, para a formação dessa mesma sociedade, mas acredita-se que a escola é, ainda, o espaço educativo por excelência para uma boa parte da população, as suas camadas infantis e juvenis e, por efeito de cadeia, embora parcelarmente, a própria comunidade adulta que medeia a escola e os alunos” (Máximo-Esteves, 1998: 25).

A escola terá um papel importante no desenvolvimento de uma consciência ecológica, pela via de uma educação ambiental. Deverá, por isso, proporcionar os meios necessários à implementação de projectos pedagógicos de intervenção a nível escolar ou comunitário, que envolva os alunos em múltiplas actividades práticas, a partir das quais eles possam sentir, no terreno, o valor de um trabalho de sensibilização e de acção cívica subordinado à temática do ambiente, dando início a um processo de reflexão crítica das relações do homem com a natureza e com os seus iguais. Logo, a educação ambiental deve contribuir para que o cidadão se envolva na problemática da sua qualidade de vida, seja a do presente ou do futuro, para que ela lhe seja garantida, bem como às das gerações que hão-de vir. Deve, assim, ser orientada para a busca de soluções para problemas concretos do ambiente e, consequentemente, da própria humanidade. Mas isto, claro está, se incorporarmos este saber fundamental: sem definição de objectivos claros e de um plano de equipa, “a educação ambiental converte-se em anedota e tem uma escassa capacidade para modificar a realidade” (Díaz, 1995: 97-98).

[1] Eurico Figueiredo sublinha a perda de legitimidade democrática, por parte do Estado, na tomada de decisões, para instituições internacionais, tais como o FMI, Banco Mundial, GATT ou Banco Europeu. No seu entender: “O mundo é governado, disfarçadamente, por uma tecno-burocracia financeira, o que se traduz numa grave crise de legitimidade democrática do estado”. Mais adiante acrescenta que uma das consequências da globalização neoliberal se traduz no seguinte: “as repercussões ambientais, no actual contexto de crescimento sem controlo, são sobretudo externadas, o que se traduz numa nova e mais grave fonte de quebra de legitimidade dos governos nacionais”. Cf. Figueiredo (2000: 10).


BIBLIOGRAFIA

CARNEIRO, Roberto (1997). “Educação para a cidadania e cidades educadoras”. In Brotéria, 144, pp. 397-398.
DÍAZ, Alberto (1995). La Educación Ambiental como proyecto. Barcelona: Universitat de Barcelona / Editorial Horsoi.
FIGUEIREDO, Eurico (2000). Prefácio. In Nogueira, Vítor. Introdução ao Pensamento Ecológico. Lisboa: Plátano, pp. 9-10.
MÁXIMO-ESTEVES, Lídia (1998). Da Teoria à Prática: Educação Ambiental com as Crianças Pequenas ou o Fio da História. Porto: Porto Editora.
MORGADO, Fernando; PINHO, Rosa & LEÃO, Fernando (2000). Para um ensino interdisciplinar e experimental da educação ambiental. Lisboa: Plátano.
NOGUEIRA, Vítor (2000). Introdução ao Pensamento Ecológico. Lisboa: Plátano.

segunda-feira, 25 de maio de 2009
















Educação Patrimonial

O património, tal como o nome indica, representa um legado herdado dos nossos pais e antepassados. Trata-se de uma herança que, pela sua riqueza e diversidade, representa a memória, a identidade e a cultura de um povo.
O património cultural não se restringe a um conjunto de artefactos históricos ou artísticos, ou a monumentos e espaços de importância histórica. Nele incluem-se, efectivamente, todo um conjunto de manifestações artísticas, culturais e populares, que representam uma cultura viva, e que se pode apresentar através de diversas formas de expressão cultural, tais como: a música, as danças, a literatura, as histórias e lendas, as festas populares, o folclore, a gastronomia, as relações sociais e familiares, etc. No entanto, todo este repertório só fará sentido, ou melhor, só poderá ser legado às próximas gerações, se formos capazes de lhe reconhecer a riqueza e o valor que representa para a humanidade.
A preservação, o estudo e a divulgação do nosso património são vitais para garantir a nossa identidade e os seus valores intrínsecos. Como já o afirmámos noutra obra, “o património é um capital cultural que desafia a assunção de actividades no âmbito do seu conhecimento, da sua compreensão e da sua preservação” (Barbosa; Teixeira & Duarte, 2001: 17). O conhecimento do nosso património e da nossa cultura é condição sine qua non para a edificação de uma consciência crítica e activa, bem como para o desenvolvimento da própria cidadania. Esta é, aliás, uma posição que se inscreve no pensamento de Mª de Lourdes Horta (2003: 6): “O conhecimento crítico e a apropriação consciente por parte dos consumidores e indivíduos do seu «património» são factores indispensáveis no processo de preservação sustentável desses bens, assim como no fortalecimento dos sentidos de identidade e cidadania”.
A preservação do património cultural constitui o garante do direito à memória individual e colectiva, sendo, por isso, um princípio básico do exercício da cidadania. Como já o atestámos: “Configurando-se como direito a usufruir por indivíduos e colectividades, o património implica um conjunto de deveres de cidadania. O conhecer, o cuidar e o preservar são alguns desses deveres – eventualmente indutores de outras obrigações e de outros comportamentos cívicos” (Barbosa; Teixeira & Duarte, 2001: 16).
Philippe Guglielmi (1999) entende haver uma complementaridade entre o conceito de património e o de cidadania. Este autor parte de uma definição alargada de património, que traz em si subjacente a de cidadania. Deste modo, define património como sendo “uma soma de referências artísticas, históricas e antropológicas, testemunhos da actividade humana e de cunho humanizado sobre a nossa terra”, dizendo ainda tratar-se da “leitura de uma sedimentação de sinais da paisagem e nas formas habitadas, nas línguas e na cultura, nos objectos […]”, à qual se junta, ainda, de acordo com os tempos hodiernos, “a necessária perpetuação da memória, que é também uma reconstrução de sentidos sobre novos suportes de imagens” (Guglielmi, 1999: 63-64).
Encontramos na Educação Patrimonial o processo desejável para a abordagem do património cultural, enquanto instrumento que sirva para despertar uma consciência crítica, o comprometimento para com a sua preservação e, em consequência, a afirmação da cidadania. Caminhamos, deste modo, para um processo que se inicia através daquilo a que Paulo Freire designava de «alfabetização cultural», que desenvolva no educando a capacidade de compreensão da sua identidade cultural e a reconhecer-se, de forma consciente, nos seus valores, na sua memória pessoal e colectiva (Cf. Freire, 2003: 81). Em síntese, trata-se de desenvolver no indivíduo a capacidade de leitura e compreensão do universo sociocultural em que se insere.
Assim, a escola deverá garantir as condições indispensáveis para que os alunos se envolvam directamente em acções de preservação cultural, que por sua vez os levem, através de um processo contínuo de descoberta, a aproximarem-se, a conhecerem, a valorizarem e a apropriarem-se de uma herança cultural que lhes pertence. Desta forma, estariam lançadas as bases para que pudessem desenvolver e adoptar uma posição crítica e activa na construção da sua identidade e cidadania. Contudo, tenhamos presente que uma iniciativa com esta responsabilidade necessita da colaboração e participação da comunidade para obter os melhores resultados. Uma educação patrimonial deve, por isso, ultrapassar os muros da escola e envolver outras entidades e instituições, locais e regionais, tais como: museus, bibliotecas, arquivos, empresas, institutos, autarquias, associações recreativas e culturais, centros culturais, entre outras.


BARBOSA, Manuel; TEIXEIRA, Luís & DUARTE, Rui (2001). Educar para a cidadania através da arte e do património: um projecto de investigação-acção com alunos da Escola E.B. 2 e 3 de Vila Pouca de Aguiar. Braga: CEEP/Instituto de Educação e Psicologia - Universidade do Minho.

FREIRE, Paulo (2003). Acção Cultural para a Liberdade e outros escritos. 10ª Edição. São Paulo: Paz e Terra.

GUGLIELMI, Philippe (1999). “Liens entre patrimoine et citoyenneté”. In Guichard, Gwenaëlle (coord.). Patrimoine et citoyenneté. Paris: Édition du Club France Loisirs, pp. 63-64.

HORTA, Mª de Lourdes (2003). Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional / Museu Imperial.

sexta-feira, 24 de abril de 2009
















Pela Cordilheira do Atlas

Entre os dias 4 e 12 de Abril integrei uma equipa galega de alpinistas numa expedição a Marrocos, mais concretamente à cordilheira do Atlas, uma cadeia de montanhas situada a noroeste da África, que se estende por 2400 km através de Marrocos, Argélia e Tunísia, incluindo ainda Gibraltar. O programa traçado incluía a ascensão a quatro montanhas com uma altitude superior a quatro mil metros. Tal desiderato foi conseguido nos dias 8 e 9. No primeiro desses dois dias alcançamos o cume das montanhas Ras (4083m) e Timesguida (4089m). No segundo dia subimos ao Jbel Toubkal (4167m), o mais alto da cordilheira do Atlas e do norte de África, e o seu “parente”, o Toubkal-Oeste (4030m). As ascensões fizeram-se sem problemas e com um contributo valioso do tempo. No cimo do monte Jbel Toubkal fomos premiados com uma vista maravilhosa, em direcção a sul, sobre o deserto do Saara.
Muitas montanhas são consideradas locais sagrados. Por esta e outras razões, nos seus cumes são prestados tributos ou fazem-se votos sob as mais diversas formas às pessoas que nos são mais queridas, aquelas que mais amamos ou desejamos. No Jbel Toubkal fiz questão de prestar os meus.
Para além da beleza majestosa e envolvente daquele maciço, de texturas e contrastes ímpares, surpreendeu-me o encanto de alguns centros urbanos e das próprias gentes de Marrocos. Aqui destaco Marrakesh, conhecida por “cidade vermelha”, "pérola do sul" ou "porta do sul". Capital da região de Marrakesh-Tensift-El Haouz, possui o maior suq (mercado tradicional) do país, assim como uma das praças mais movimentadas da África, a Djemaa el Fna, que abriga acrobatas, dançarinos, músicos, encantadores de serpentes, barracas de comida, entre outros. A azáfama e o reboliço que aí encontrámos deram-nos a perceber quão variadas são as culturas que povoam o nosso planeta. Entrando pelo labiríntico mercado de Marrakesh pudemos observar e saborear toda a actividade cultural, laboral e mercantil que caracteriza este espaço cosmopolita. A diversidade de objectos, na sua grande maioria artesanais, de artesãos, de produtos agrícolas, a música tradicional que se ouvia a cada esquina, a circulação pedonal e motorizada caótica, e muito mais, encantou-me de tal maneira que fiquei boquiaberto.
Tanger, Rabat e Casablanca apresentam já alguns traços de clara influência ocidental, quer nas construções, quer nos comércios ou mesmo nas pessoas, na maneira como se vestem e se relacionam com os seus pares.
Mas voltando à montanha, aqui impõe-se fazer uma breve referência e algumas considerações acerca do povo que aí habita, cujas construções trepam pelas suas encostas, e onde toda a actividade laboral se desenvolve. Falo naturalmente dos Berberes. Vivem de uma agricultura rudimentar, mas de produção variada, de algum comércio de produtos essencialmente artesanais, tais como, a cerâmica, a bijuteria, a escultura em madeira e a tapeçaria, e ainda, claro está, do turismo. Os inúmeros visitantes que aí chegam, seja para fazer alpinismo, Ski, passeios pedestres ou simplesmente para visitar as aldeias típicas, contribuem grandemente para sustentar toda a actividade comercial e de serviços que aí se desenvolvem. Aqui destaco o transporte de bagagem (ou mesmo pessoas) feito por mulas desde de Imlil, pequena localidade situada a 1740 metros de altitude, até ao sopé da montanha, relativamente próximo dos refúgios de montanha que se encontram a cerca de 3200 metros de altitude. Trepando literalmente por um trilho sinuoso e acidentado do vale que nos leva à montanha, é velas transportar cargas que até metem dó, mas com uma passada segura e compassada. Impressionante! O percurso, de uma longitude de 11 quilómetros, demora cerca de cinco horas e meia a fazer-se. Tem a particularidade de passar pelas aldeias de Aroumd (1904m) e pelo santuário de Sidi Chamharouch (2310m).
As experiências e sensações aí vividas levam-me, inequivocamente, a considerar Marrocos um país recomendável a visitar.

sábado, 28 de março de 2009

Educação democrática participativa


À semelhança do que acontece com outro tipo de aprendizagens, parece-nos evidente que a aprendizagem da democracia reivindica uma prática efectiva, um saber de experiência feito.
São inúmeros os autores que têm desenvolvido abordagens sobre a participação democrática nas instituições, em particular na escola. Apesar de alguns condicionalismos que, por vezes, a escola nos coloca (a nível organizativo, burocrático, curricular, etc.), a participação democrática permite-nos compreender como as instituições, as organizações ou as comunidades funcionam, bem como os mecanismos necessários para promover e defender valores democráticos. Contudo, esta é uma tarefa que não tem sido fácil, particularmente para aqueles que lutam por uma escola democrática.
No livro Escolas Democráticas, Michael Apple & James Beane (2000) defendem que, apesar da ideia generalizada de democracia verificada na sociedade, as escolas norte-americanas têm-se revelado como instituições amplamente antidemocráticas. Esta reflexão resulta da recolha e análise de um conjunto de depoimentos de professores de quatro escolas públicas norte-americanas, que se dedicaram a preparar estudantes para um modo de vida democrático, mas que entretanto se viram confrontados perante alguns problemas.
[1] Apple & Beane concebem a democracia como a base que nos permite o auto-governo e bem assim a avaliação da pertinência das políticas.
O conceito de democracia tornou-se abrangente. Hoje, é impensável falarmos em democracia sem nos pronunciarmos sobre a participação ou sobre a defesa dos direitos humanos, só para citar dois exemplos. Para Mª Josefa Martínez (2003: 63), a democracia deverá ser considerada “como elemento de aprendizagem prática através do ensaio de formas de vida democrática”. Enquanto processo contínuo e construtivo, a democracia reivindica a participação de todos[2], devendo esta crescer e fortificar-se logo nos primeiros anos da escolaridade básica.
Numa visão optimista dos poderes da educação, Conceição Nogueira & Isabel Silva (2001: 102-103) concebem a “possibilidade de actualizar na escola uma democracia participativa”, capaz de “promover a aprendizagem de práticas de cidadania mais activas e emancipatórias”. Uma escola que se deseje democrática, cidadã e promotora de práticas de cidadania, exige, como sublinha Manuel Barbosa (1999: 106), uma educação que se desenvolva num “clima democrático que potencie a participação dos jovens no seu governo”. Naturalmente que ninguém, à partida, estará predisposto para participar se não sentir uma determinada pulsão, uma necessidade real. A este respeito, Paulo Castro (2003: 59) declara: “Participar nasce da necessidade de resolver problemas e, no sentido restrito da palavra, efectiva-se quando actua”.
Parece-nos claro que a democracia não pode circunscrever-se à aprendizagem de um conjunto de normas constitucionais. Deverá, sim, emergir e suportar-se num conjunto de vivências, de partilhas, de responsabilidades individuais e colectivas. Como afiança Frederico Zaragoza (2002: 17): “Não pode haver democracia se não há democratas; tampouco sem uma cidadania consciente e activa”. O autor fala-nos da necessidade da criação de uma verdadeira cultura democrática para que efectivamente a democracia seja viável, constituindo aquela, no seu modo de ver, “o ponto de síntese de quatro conceitos fundamentais: o civismo, a tolerância, a livre comunicação de ideias e de pessoas e a educação”. Por último, conclui: “Aprender a cultura democrática, ensiná-la, praticá-la, experimentá-la e difundi-la têm de ser metas que todos devemos assumir para assegurar a vigência e o enraizamento definitivo da democracia no futuro” (Zaragoza, 2002: 21).
Num contributo para um programa de trabalho pedagógico, que inclua conteúdos de aprendizagens e práticas para a construção de uma cidadania, José Sacristán (2003) apresenta uma lista de propostas sistematizadas, à qual lhe chama carta da educação democrática do cidadão, que atende à sua liberdade e autonomia, à igualdade e à solidariedade, assente em cinco planos: (i) o acesso à educação; (ii) os conteúdos do ensino e da educação; (iii) as práticas de organização e metodologias; (iv) as relações interpessoais; (v) as relações escola e comunidade.[3]
Em jeito de conclusão, e retomando o primeiro parágrafo desta alínea, evocamos uma reflexão de Philippe Perrenoud. Para este estudioso, a aprendizagem da democracia por parte das crianças ou jovens deve ser feita à semelhança da aprendizagem da leitura; passo a passo, com o acompanhamento do adulto, “que, a fim de que a acção seja possível, guia e compensa as lacunas provisórias de quem aprende e retira-se à medida que a sua assistência se torna supérflua” (Perrenoud, 2002: 46).

[1] Apesar de se encontrarem em áreas problemáticas, os professores destas escolas básicas, onde se concentram crianças e jovens de nível económico baixo, foram capazes de criar um ambiente transformador, academicamente rigoroso e socialmente crítico; articularam a escolaridade com mundo do trabalho; relacionaram o currículo com as múltiplas culturas e etnias do seu público; envolveram as comunidades na educação dos seus filhos; transformaram a escola num local aprazível aos professores com conquistas burocráticas e transformações ideológicas. Todavia, enfrentaram inúmeros problemas com a prestação de contas, crescimento da pobreza, falta de emprego e insegurança social. Cf. Apple & Bean (2000).
[2] Na defesa da construção de uma escola democrática, Licínio Lima reclama precisamente a participação activa e co-responsável de vários agentes; não só aqueles que (con)vivem na escola (professores ou alunos), mas também de outros sectores da sociedade e ainda de outros actores – dos quais se espera um pleno exercício da cidadania crítica. Cf. LIMA (2000: 42).
[3] Esta carta apresenta-se sob a forma de um quadro, permitindo, deste modo, uma leitura organizada e objectiva. Cf. Sacristán (2003: 32-33).

BIBLIOGRAFIA
- APPLE Michael & BEANE James (orgs.) (2000). Escolas Democráticas. Porto: Porto Editora.
- BARBOSA, Manuel (1999). “Para construir uma nova utilidade da escola: educar para a autonomia e preparar para a cidadania”. In Barbosa, Manuel (coord.) Olhares sobre a Educação, Autonomia e Cidadania. Braga: Instituto de Educação e Psicologia – Universidade do Minho, p. 79-112.
- CASTRO, Paulo (2003). “Escola e Cidadania”. In Ferreira, José & Estevão, Carlos (orgs.). A construção de uma escola cidadã: público e privado em educação. Braga: Externato Infante D. Henrique, pp. 57-77.
- LIMA, Licínio (2000). Organização escolar e a democracia radical. Paulo Freire e a governação democrática na escola pública. São Paulo: Cortez / Instituto Paulo Freire.
- MARTÍNEZ, Mª Josefa (2003). “Imaginar e instituir la educación globalizada”. In Bonafé, Jaume (coord.). Ciudadanía, poder y educación. Barcelona: Editorial Graó, pp. 35-55.
- NOGUEIRA, Conceição & SILVA, Isabel (2001). Cidadania: construção de novas práticas em contexto educativo. Porto: Edições Asa.
- PERRENOUD, Philippe (2002). A escola e a aprendizagem da democracia. Porto: Edições Asa.
- SACRISTÁN, José Gimeno (2003). “Volver a leer la educación desde la ciudadanía”. In Bonafé, Jaume (coord.). Ciudadanía, poder y educación. Barcelona: Editorial Graó, pp. 11-34.
- ZARAGOZA, Frederico (2002). “Ciudadanía democrática: reiventar la democracia, la cultura de paz, la formación cívica y el pluralismo”. In Imbernón, Francisco (org.). Cinco ciudadanías para una nueva educación. Barcelona: Editorial Graó, pp 15-27.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Propriedade privada


Apesar de ainda curta, a minha experiência a nível do montanhismo tem-me dado a conhecer pessoas interessantes e outras pouco ou nada interessantes. Felizmente que as primeiras estão em clara maioria.
Sobre as pessoas interessantes, apraz-me dizer que se trata de amigos da escalada e do alpinismo, que tenho feito através dos cursos de montanhismo que tenho frequentado ou simplesmente no entrecruzar de caminhos durante as minhas aventuras na montanha. Comigo têm tido a amabilidade de partilhar uma serie de conhecimentos e experiências, que em muito têm contribuído não só para reforçar a paixão que nutro pela montanha, mas também para melhorar o meu desempenho naquelas disciplinas. Estimulam-nos a acreditar que pudemos fazer sempre mais e melhor e, assim, a abraçar novos desafios.
No fundo, são pessoas que, numa atitude de companheirismo, pretendem simplesmente desfrutar de tudo aquilo que a montanha nos oferece. Algo que só os verdadeiros amantes da natureza compreendem. Falo de gente que entende, e muito bem, que a montanha é para todos e não apenas para um grupo de privilegiados. E é a partir daqui que passo a debruçar-me sobre o outro naipe, ou seja, sobre as tais pessoas pouco ou nada interessantes.
Estas figuras, aparentemente mais preocupadas ou entretidas com o culto da personalidade ou com questões marginais, entendem que a montanha diz respeito tão-somente a uma meia dúzia de figuras distintas e que, por isso, deve ser constituída como uma espécie de propriedade privada. Esta pretensa elite acaba, muitas vezes, por revelar uma ignorância profunda da filosofia que preside ao acto de quem ama verdadeiramente a montanha e que a ela se quer dedicar.
A inveja, o orgulho exacerbado, a esperteza saloia, o egoísmo são alguns dos atributos que caracterizam esta gente, que eu designaria de bando de frustrados ou deserdados da montanha. Quando confrontados com as suas vivências de montanha, nada de admirável têm para contar, muito menos para ensinar.
Como em tudo na vida, temos que ir fazendo a devida triagem…

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Em busca da essência da beleza…


O belo e o feio existe. Não se trata apenas de uma questão de gosto ou de preferência. Não comungo, de forma alguma, com a expressão de que “gostos não se discutem”. Compreendo que para alguns seja difícil justificar os seus gostos, mas se gostamos de algo ou de alguém haverá necessariamente uma ou mais razões que fundamentem as nossas escolhas.
Numa singela mas objectiva análise, pretendo nas próximas linhas fundamentar o que me leva a alimentar duas paixões: a montanha e a mulher. Falo naturalmente de montanhas e mulheres belas!
Se é verdade que por vezes as aparências iludem, também não é menos verdade que a aparência revela a sua essência. Disso sou testemunha.
Quando olhamos para uma bela montanha ou para uma bela mulher, e se, claro está, tivermos os sentidos apurados, se tivermos sensibilidade estética, se nos sentirmos atraídos, logo somos impelidos a conhecer o seu íntimo, ou como dizia, a sua essência. É a sedução que, implícita ou explícita, acaba por nos arrebatar, podendo levar-nos a embarcar numa aventura. Naturalmente que não bastará sermos sensíveis à beleza das formas ou das pessoas. Para tal façanha, a do desejo de conhecer na intimidade qualquer um daqueles dois mundos misteriosos, necessitamos por um lado de audácia, sabedoria, compreensão e respeito, e por outro de muita paixão e alguma loucura.
Os padrões sociais ditam o que é normal ou anormal. O que é uma conduta correcta ou incorrecta. O que é aceitável ou inaceitável de acordo com os valores vigentes. Pois, confesso que muito do que aprendi, e tenho aprendido, consegui-o transgredindo alguns desses padrões, que, lembremos, e à semelhança dos gostos, são naturalmente discutíveis à luz de uma ou outra perspectiva. Algumas das aprendizagens que tenho logrado, têm na sua sequência um acto de transgressão ou de irreverência. Quem nunca sentiu desejo ou prazer em transgredir?
Não nego que já corri riscos nalgumas escaladas que empreendi. Já caminhei no fio da navalha. Já olhei nos olhos do precipício. Houve montanhas que tentei escalar e não consegui. Quem ama a montanha sabe que, por muito bom senso que nos guie, é difícil recuar perante um intento tão desejado, quando não há condições para prosseguir. O desejo de chegar ao cume, ao íntimo, à essência é de tal modo dominador que nos entristece quando não o conseguimos. E no entanto daqui retiramos lições. Tal como a mulher bela, a montanha só nos deixa chegar até onde ela quer.
Todavia, nunca me arrependi de tentar subir as montanhas, cujo topo não consegui alcançar. Porquê? Porque o percurso feito até ao nível a que cheguei proporcionou-me aprendizagens que me poderão ser úteis para voltar a tentar a mesma montanha, talvez recorrendo a outras estratégias ou então seguindo por outras vias. É uma loucura? Depende da perspectiva.
Podemos não conquistar a montanha ou a mulher que tanto desejamos, mas o facto de termos estado tão próximo do topo, do âmago, da volúpia, de ter sorvido parte da sua essência, de com ela termos aprendido e amadurecido pela fruição da sua beleza, são já razões suficientes para fazer-nos acreditar que valeu a pena o esforço. Valeu porque tivemos momentos felizes e que seguramente a memória registará para sempre. Logo, creio que não nos devemos arrepender de ter tentado alcançar o firmamento, de ter tentado tocar o rosto de um angelus. Resta-nos, humildemente, descer com a mesma nobreza com que subimos.

Há um provérbio (creio que chinês!) que diz que quanto mais alto subimos uma montanha, mais cansados ficamos, mas mais bela é a vista. É essa a vista que procuro fruir.