domingo, 15 de janeiro de 2012

Ensaio sobre uma Cegueira outorgada


“Diz-se que o país está empobrecido e endividado; eu afirmo que o país nunca saiu da pobreza que a ignorância e o medo geram”.

Luís Vendeirinho


Muito honestamente, já nem sei se o termo correcto para definir o meu estado de espírito para com o rumo que segue o nosso país, tal como muito outros, será o de ‘indignação’ ou o de ‘resignação’! Pouparei o meu leitor a uma análise sociológica ao nível macro, para me centrar sobretudo no que se vai passando neste “quintal” onde vamos vegetando!
Uma simples medida anunciada pelo actual governo no sector da Educação foi o suficiente para despoletar em mim a reflexão que através destes parágrafos materializo. Refiro-me à proposta de revisão da estrutura curricular do ensino básico e secundário, apresentada em Dezembro de 2011 pelo Ministério da Educação e Ciência, sem fundamentos credíveis, e que, apesar de ter sido aberta à discussão pública, certo e sabido é que ela vai avançar sem dó nem piedade, tal como a generalidade das medidas que têm sido tomadas até ao momento. Já está mais do que claro que o ‘diálogo’ há muito passou a ser uma simples figura de retórica nos discursos dos nossos governantes. Mais do que à falta de diálogo, assistimos a uma falta de bom senso e de visão de futuro e das previsíveis consequências (nefastas) de certas políticas, já para não falar na cascata de contradições que vai jorrando. Senão vejamos.
Muito a respeito do estado da economia e da necessidade de retirar o país do situação comprometedora em que se encontra, cujos responsáveis estão perfeitamente identificados (entretanto gozando de total impunidade!), é frequente ouvir-se falar na necessidade de inovação, de produtividade, de empreendedorismo, de competitividade, de formação, etc. Ora, sabe quem sabe que isto não passa de uma quimera, por duas razões. A primeira é a de que à generalidade das nossas empresas, vulgo patrões, o que interessa mesmo é mão-de-obra barata e horário de trabalho alargado, e se possível uma redução de impostos ao patamar da insignificância, já para não falar daqueles que deslocam a sua sede fiscal para outros países, ou ainda os que pura e simplesmente fogem ao fisco. A segunda, e então aqui regresso ao tema da revisão curricular, é que os nossos governantes, em particular os que têm sido responsáveis pela pasta da Educação, não estão efectivamente interessados em apostar numa verdadeira educação integral do sujeito; não lhes interessa um cidadão capaz de exercer uma plena cidadania com conhecimento de causa. Assim, torna-se muito difícil assumirmos os nossos deveres, quando nos vemos cada vez mais limitados, diria mesmo “amputados”, nos nossos direitos! Por isso, todos aqueles substantivos acima referidos não passam de enfeites, de palavras vãs.
É de uma profunda ignorância e de uma demagogia descarada falar-se em ‘inovação’, quando a dita revisão curricular propõe reduzir o tempo lectivo de algumas das disciplinas que mais contribuem para incutir no aluno uma praxis assente no trabalho de projecto, na observação, na pesquisa, na reflexão e no design, e bem assim para o desenvolvimento da imaginação e da criatividade dos alunos, competências basilares para que se consiga efectivamente INOVAR, seja em que área do conhecimento for, e assim almejar todos os ganhos desejados, incluindo os de ordem produtiva e competitiva. Falamos da Educação Visual e Tecnológica do 2º ciclo do Ensino Básico, e das disciplinas de Educação Visual e de Educação Tecnológica do 3º ciclo, disciplinas estruturantes e nucleares nas aprendizagens dos alunos. Ainda por cima, e no caso da Educação Visual e Tecnológica, esta redução da carga horária faz-se partindo a meio a disciplina, separando conteúdos que estão interligados, e comprometendo a aquisição, por parte do aluno, de saberes nucleares. Tudo isto em nome de uma redução da despesa pública, ainda que, como é óbvio, essa não seja a razão oficial. Tal como vem acontecendo desde há mais de vinte anos, uma vez mais as disciplinas de ensino artístico e tecnológico voltam a levar uma machadada, sendo uma vez mais desconsideradas!
E que dizer da intenção de extinguir a área curricular de Formação Cívica? Falamos de um espaço de trabalho em que os alunos são confrontados, de forma pedagógica, com um número variado de temas e situações de caris social, político, económico ou cultural. Como podemos querer que o jovem participe na polis quando lhe são retiradas oportunidades para aprender a exercer o ofício de cidadão? Como se pode leccionar sobre democracia quando a própria escola é, muitas vezes, uma espaço não democrático, pelas mais variadas razões? E assim parece claro que assistimos em Portugal àquilo que se verifica noutras latitudes.
A respeito dos movimento cívicos que têm vindo a acontecer um pouco por todo o mundo, Bruce Levine (2011) debruça-se no que se tem verificado no sistema de ensino dos EUA para dizer que “a lógica do que se passa nas salas de aula […], socializa os estudantes no sentido de serem passivos e dirigidos por outros, cumprirem ordens, levarem a sério as recompensas e castigos da autoridade, para fingirem que se importam com as coisas a que, na verdade, não ligam, e para se sentirem impotentes para alterar a situação” (pp. 41-42). E é aqui que entram os exames e os rankings, tão caros aos que convenientemente defendem uma plebe dócil e obediente. Falo naturalmente de uma estirpe de políticos (e seu séquito) e das suas “parcerias”, que se interessam por tal status quo. Assim, todas as medidas educativas que possam limitar a criatividade, condicionar o pensamento crítico, estreitar o campo de visão, dispersar uma cidadania participativa, democrática e inovadora são religiosamente defendidas e postas em prática, para não obstruir a demanda das políticas neoliberais, por sua vez subjugadas à chamada “economia de casino”. Em contraposição, projecta-se um programa de reformas educativas, guarnecido por slogans sedutores, mas que na prática acaba por se traduzir, efectivamente, na aplicação de um sistema meritocrático, tão característico daquilo que Levine designa de “empresocracia”. E é esta que é responsável pelos testes padronizados e, como diz Levin, pela instalação do medo que “força estudantes e professores a centrarem-se nas exigências dos autores dos enunciados dos exames e testes. Esmaga a curiosidade, o pensamento crítico e a capacidade de resistência legítima à autoridade” (p. 42).
No entanto, e ainda a propósito de rankings, poderia debruçar-me sobre a questão dos pressupostos duvidosos que sustentam tais estudos, da forma como são concebidos e seriados, das variáveis neles tidas (e não tidas) em conta, dos seus partidários, dos nebulosos interesses que estão por detrás desses “menus de escolas”, ou então da forma como a opinião pública é manipulada, mas não o farei por se tratar de uma matéria que daria para outro artigo (1). Vou, sim, apenas lembrar que por este país fora existem inúmeras escolas de referência, que nem sempre vêem reconhecidos os seus méritos. Existem muitíssimos professores que pautam a sua actividade pela excelência, mas que porém são muitas vezes maltratados por políticos, por alguma imprensa, por alguns opinion makers e até por certos sectores da sociedade. Possuímos um vasto acervo de produções científicas sobre educação e pedagogia, que são referências a nível mundial, juntamente com os seus autores. Temos em curso, como sempre tivemos, vários projectos pedagógicos, científicos ou culturais a serem desenvolvidos nas escolas, que muito têm contribuído, não só para o enriquecimento das aprendizagens das crianças e jovens, mas também para a dinamização das comunidades em que estão inseridas. Esta realidade, que muitas vezes surpreende pela positiva alguns dos países que por cá são frequentemente tidos como referência, quer pelos nossos responsáveis políticos, quer por outros agentes educativos, prova que poderíamos encabeçar a listas dos melhores sistemas de ensino. Todavia, todas essas iniciativas, todas essas mudanças que legitimamente se pretendem implementar para melhorar a qualidade do nosso ensino esbarram em burocracias, na negligência ou no aviltamento dos muitos e variados responsáveis que têm gerido a Educação em Portugal, dispersos pelos diversos patamares da pirâmide. Como sublinha José Pacheco (2011), os responsáveis pela actual situação têm rosto. São eles, “directores de escola, cuja acção contradiz projectos educativos das suas escolas. São gestores, que dirigem instituições ao sabor dos caprichos, de tecnocracias e cosméticas pedagógicas. São políticos ignorantes do que seja pedagogia, que vão parindo decisões de política educativa tão inúteis quanto nefastas. São ‘professores’ coniventes com essas atitudes” (p.25).
Embora o cepticismo não seja uma das minhas características, a verdade é que cada vez é maior a minha apreensão quanto ao futuro da educação e do ensino em Portugal, precisamente pela qualidade da classe política que malograda e perigosamente tem tomado o leme do nosso país. Por isso, creio que infelizmente iremos provavelmente continuar a assistir ao desfile dessas ilustres personagens pelo palácio de S. Bento!
Os vintages da política abandonaram o ofício, provavelmente por não abdicarem da ética e da concepção de um verdadeiro Estado social e solidário. Bem a propósito, numa recente entrevista dada à revista A Página da Educação, onde eram abordados temas como a cultura, a música e a educação, António Pinho Vargas acabou por fazer uma caracterização do homo politicus da seguinte forma: “Os políticos preocupados com a formação humana e social foram-se embora e, pouco a pouco, instalaram-se tecnocratas que tomam os seus saberes especializados como tudo aquilo que interessa saber. E, na verdade, nem de números sabem, como a realidade tem demonstrado. Afinal, a economia, hoje, não é ciência nenhuma; é um jogo de apostas. Por isso é que a expressão “capitalismo de casino” tem algum sentido” (p. 96).

Sem mais comentários!




NOTAS:
(1) A respeito de rankings ler os artigos de Ariana Cosme e Rui Trindade, e ainda de José Pacheco, da revista A Página da Educação, de Novembro de 2011.




Bibliografia

LEVIN, Bruce E. (2011). Como os EUA esmagaram o espírito de rebelião da juventude. In Courrier International, nº 189, Novembro, pp. 40-43.
PACHECO, José (2011). Contradições. In A Página da Educação, nº 195, p. 25.
VARGAS, António Pinho (2011). À conversa com António Pinho Vargas. In A Página da Educação, nº 195, pp. 92-97.