domingo, 22 de abril de 2012

Abençoado povo dócil!

“O pessimismo é excelente para os inertes, porque lhes atenua o desgracioso delito da inércia”.

Eça de Queirós

Recentemente ouvimos o nosso Presidente da República dizer publicamente que acreditava que "o clima de paz e de coesão social" irá manter-se no futuro. Um dia depois ouvíamos o nosso Ministro das Finanças, que participava nas reuniões da primavera do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, em Washington, garantir que os portugueses estavam "totalmente disponíveis para os sacrifícios e para trabalhar mais", no sentido de Portugal cumprir o programa de ajustamento financeiro. Deixando para trás os tons monocórdicos e a qualidade das intervenções públicas, por vezes inusitadas, a que nos habituaram estas duas figuras de Estado, iria directo às presunções dos seus discursos, de forma a ilustrar a forma como julgo que olham a plebe, aproveitando para fazer um breve retrato actual desta.
Ora bem, estas duas intervenções espelham bem a convicção que lhes subjaz. Quer Cavaco Silva, quer Vítor Gaspar dão por adquirido que os portugueses estão dispostos a todo e qualquer sacrifício, de forma serena, resignada e altruística. Por muito que me custe, vejo-me obrigado a dar-lhes razão, pois é aquilo que de uma forma mais ou menos evidente se vai constatando nos discursos e comportamentos das pessoas, nos mais variados sectores da nossa sociedade.
Tomados pelo medo e/ou pelo pessimismo reinante, o povo segue a “Via Sacra” que os agiotas, tecnocratas e oportunistas que nos governam nos estão a vender, com o grande e irrefutável desígnio de que só assim poderemos salvar o país. O povo parece disposto a abdicar de direitos constitucionais, tal como o da liberdade de expressão e informação! As razões de tal comportamento, bem, poderão ser as mesmas que Eça de Queirós dizia, há já mais de um século, quando abordava o conceito de “liberdade”. Este ilustre escritor dizia que o homem, na verdade, não queria ser livre, e de forma mordaz e certeira, como era seu apanágio, justificava-o da seguinte forma:

“O homem verdadeiramente não apetece ser livre e apenas deseja que lhe não chamem escravo. Contando que a sua liberdade esteja consignada em letra redonda, algures, numa constituição ou nas paredes dos edifícios, ele está contente e não exige que essa liberdade se traduza realmente em factos. O dístico basta. (…) O governo das sociedades parece, portanto, ser essencialmente uma questão de léxico. O melhor meio de dirigir os homens será talvez gritar-lhes com entusiasmo: «Vós sois livres!» E depois, com um tremendo azorrague, à maneira de Xerxes, obrigá-los a marchar. E marcham contentes, sob o estalido do açoite, sem pensar mais e sem mais querer, porque a palavra essencial foi dita, eles são livres, e lá está Xerxes no seu carro de ouro para querer e pensar por eles”. (Ecos de Paris)

Se pararmos, por uns breves momentos, para observar e reflectir sobre o ambiente que nos rodeia, facilmente constataremos esta realidade, aqui descrita pelas palavras sábias do Eça. Uns por medo, alguns por resignação, outros por comodidade, os portugueses vão acatando, de forma mais ou menos ruidosa, mas subserviente, todo o tipo de orientações e deliberações que vêm de “cima”. Poucos são aqueles que se dão a trabalho de questionar a legitimidade ou os propósitos de algumas das decisões de quem (por vezes de forma arbitrária!) os governa ou dirige. Qualquer discurso, com mais ou menos prosápia, vindo de um qualquer político, governante, presidente, governador, delegado ou director é facilmente (ou convenientemente!) tido pelas gentes como verdade adquirida, e por isso inquestionável, verificando-se inclusive em vários domínios e sectores da sociedade.
Quanto aos do “poder”, naturalmente preocupados em manter-se na sua “cadeira”, também eles seguem de forma acrítica o silabário que lhes é administrado, mesmo que isso resulte em prejuízo de quem os elegeu, os nomeou ou sobretudo daqueles que deveriam servir.
Há quem advogue que esta triste realidade é algo de idiossincrático na sociedade portuguesa, e que dificilmente mudará. Sou tentado a concordar!
Quanto a mim, se há valor de que nunca abdicarei, é o da liberdade de consciência e de expressão, por muito que isso possa ser incomodativo para alguns… Como dizia Agostinho da Silva,

“Eu não quero poder, mas apenas liberdade de falar aos do poder do que entenda ser verdade”. (Quadras Inéditas)


2 comentários:

Burmelho disse...

Ó pá, estava eu tão "sogadito" a terminar o ronceiro domingueiro e vens tu a in comodar-me com essas coisas. É pá, "tão" não sabes que é desígnio nacional "comermos e calarmos"? Abençoado povo, que nasceu para ser governado por alimárias de tal jaez.

amaralexandra disse...

Direi que ... Homem que fala assim não é gago, não é medroso, não é inseguro, não é hipócrita, não é complexado, dito por outras palavras, é a negação da caracterização da maioria do povo português!
Como sabes, Rui, melhor do que eu, o grande Eça, já há cerca de 2 séculos atrás, criticava todas essas fraquezas dos portugueses, incluíndo também a falta de criatividade/inovação/distinção.
De forma a corroborar a atualidade do tempo de Eça de Queirós, acrescento às tuas citações mais uma passagem dos seus escritos:
"Portugal Está a Atravessar a Pior Crise. Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: - mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não - pelo menos o Estado não tem: - e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela Política. De sorte que esta crise me parece a pior - e sem cura".

Eça de Queirós, in 'Correspondência (1891)'