terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Podridão cerebral

O título deste texto é uma tradução do termo inglês brain rot, escolhido pela Universidade de Oxford como a palavra do ano 2024, sendo definida como uma suposta deterioração do estado mental ou intelectual do sujeito, decorrente do resultado do consumo excessivo de conteúdo considerado banal ou irrefutável, que prolifera especialmente nas redes sociais, mas também nalguns órgãos de comunicação social.
Do que é sabido, a primeira vez em que a expressão brain rot foi utilizada, aconteceu em 1854, pela mão de Henry David Thoreau, no seu livro “Walden; or, life in the woods”. Nessa obra, o escritor norte-americano critica, já à época, a tendência da sociedade para desvalorizar ideias complexas, ou aquelas que podem ter múltiplas interpretações, em favor de ideias simples, vendo isto como um sinal de um declínio geral do esforço mental e intelectual. Volvido mais de século e meio, é surpreendente como esta constatação se mantem actual. Efectivamente, não é preciso um olhar muito avisado sobre o que se passa em nosso redor, para nos darmos conta do que se passa nas nossas sociedades. Atente-se, e no caso português, aos resultados de um recente estudo internacional, que nos coloca no penúltimo lugar de uma lista de 31 países, no que diz respeito à literacia, numeracia e resolução de problemas da população adulta. Refiro-mo ao “Inquérito às Competências dos Adultos de 2023”, publicado no passado dia 10, pela OCDE. Ficou-se a saber que cerca de 40% dos adultos portugueses só conseguem compreender textos muito simples e resolver aritmética básica no dia-a-dia.
A avalanche ininterrupta, sem filtro, de imagens, sons, vídeos, textos e mensagens, na sua maioria de fraca qualidade ou de interesse nulo, acabam por vulgarizar o nosso quotidiano, entorpecer as mentes, tendo o condão de desviar a atenção sobre os temas e as questões verdadeiramente pertinentes. Rui Tavares Guedes dizia, recentemente, no editorial da revista Visão, que esta “podridão cerebral” traduz-se na “deterioração ou até mesmo putrefacção das nossas capacidades racionais, devido ao consumo excessivo de conteúdos online, pouco ou nada estimulantes, mas que nos prendem a atenção, predominantemente nos muitos ecrãs em que vamos saltitando ao longo de cada dia” (nº1657, p.6).
Em diferentes sectores da sociedade, e nas diferentes faixas etárias, esta realidade está bem patente. Começando pela política, ou políticos, aquilo a que assistimos são réplicas de um “trumpismo” que grassa um pouco por toda parte, com o patrocínio das tecnológicas, onde reina, como diz Clara Ferreira Alves, “a absoluta ausência de princípios, civilidade, escrúpulo, vergonha e moral, servida por uma ganância de lucro e vantagens pessoais com e sem nepotismo”. Mais adiante acrescenta que a “democracia plena em que vivemos, onde o insulto e o crime passam por liberdade de expressão, e onde um edifício como a Assembleia da República, o palco central da democracia representativa, pode ser vandalizado e insultado, deixa de ser democracia para passar a ser uma populocracia” (Revista Expresso, 6/12/2024, p.3). Não surpreende, pois, que assistamos a exemplos similares nas camadas mais jovens, em que o respeito pela autoridade, o civismo e as boas maneiras já conheceram melhores dias. Onde a ofensa a pais e professores está banalizado. Onde os impropérios e a agressão física são gratuitos.
Hoje em dia, um professor que se proponha debater com os seus alunos, sobretudo adolescente, alguns temas, tais como: liberdade, democracia, respeito, solidariedade, altruísmo, igualdade de género, direitos humanos, cidadania, património, sustentabilidade, entre tantos outros, defronta-se com uma tarefa custosa, quando não mesmo ingrata. Tudo aquilo que não conste do cardápio das redes sociais é votado ao ostracismo. Não merece “likes”!
Eis aqui matéria que deveria preocupar e ser tida como prioritária pelos pais, na educação dos seus filhos.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Da utilidade do inútil à civilização do espectáculo

“A utilidade do inútil” é o título que dá nome a um manifesto escrito por Nuccio Ordine, filósofo e professor de literatura italiana na Universida­de da Calábria. A obra dá conta de como a lógica utilitarista e o culto da propriedade acabam por definhar o espírito das pessoas, colocando em risco não só a cultura, a criatividade e as instituições de ensino, mas também valores fundamentais como a dignidade humana, a justiça, a solidariedade, a tolerância, a liberdade, ou tão-só o amor e a verdade. Valendo-se da reflexão de grandes filósofos e escritores, Nuccio Ordine faz-nos perceber que nem mesmo em tempo de crise só é útil o que gera lucro ou que tenha utilidade prática. Daí as suas considerações gravitarem em torno da ideia de utilidade de todos aqueles saberes, cujo valor substancial se encontra despojado de qualquer finalidade utilitária, saberes esses, como sublinha, que podem ter um papel capital na educação do espírito e no desenvolvimento cívico e cultural da humanidade.
Numa Europa da economia e da finança, dos negócios e dos orçamentos, dos números e das estatísticas, numa Europa da perda de direitos e apoios sociais e laborais, do ataque aos Direitos Humanos, o direito de ter direitos é, como diz Ordini, “subordinado ao domínio do mercado, com um risco crescente de eliminar qualquer forma de respeito pela pessoa” (2023, p.9). Fala-nos de um mecanismo económico que transforma os homens em mercadoria e em dinheiro. Questiona, com sarcasmo, se as dívidas soberanas terão o condão de apagar as “dívidas” mais importantes, contraídas ao longo dos séculos em relação a quem nos legou um extraordinário património artístico e literário, musical e filosófico, científico e arquitectónico. É, por isso, neste contexto bárbaro, que o filósofo defende que “a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse económico exclusivo, vai matando progressivamente a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a instrução, a investigação livre, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte cívico que deveria inspirar todas as actividades”. De forma irónica acrescenta que “no universo do utilitarismo um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia do utensílio e cada vez mais difícil compreender para que serve a música, a literatura ou a arte” (p.10).
E daqui faço a ponte para “A civilização do espectáculo”, título de uma obra de Mario Vargas Llosa, na qual o autor desfia o estado da cultura. Ainda que publicado há mais de uma década, o livro é de uma actualidade inegável. O escritor peruano define a civilização do espectáculo como um mundo em que o valor supremo é o entretenimento, a diversão. Ainda que reconhecendo este como um ideal de vida legítimo, chama a atenção para as consequências nefastas para a sociedade contemporânea que daí advêm, nomeadamente: a banalização da cultura, das artes e da literatura, a generalização da frivolidade e, no campo da informação, o triunfo do jornalismo sensacionalista, que prioriza escândalos e intrigas. Se, como lembra o autor, no passado a cultura funcionava como uma forma de consciência, que impedia o sujeito de ignorar a realidade, os problemas, hoje ela actua como instrumento de entretenimento. Vargas Llosa lembra que a cultura “pode ser experimento e reflexão, pensamento e sonho, paixão e poesia e uma revisão crítica constante e profunda de todas as certezas, convicções, teorias e crenças”. Contudo, adverte, “ela não pode apartar-se da vida real, da vida verdadeira, da vida vivida, que não é nunca a dos lugares comuns, a do artifício, o sofisma e o jogo, sem risco de desintegrar-se” (2012, p.74).
A cultura é, pois, o substrato de uma sociedade que se deseje plena, dotada de todos os instrumentos que permita ao sujeito meditar sobre tudo o que rodeia, assumindo-se igualmente como um agente activo e transformador. Deve, por isso, ser considerada vital para a sobrevivência da humanidade e para assegurar o seu legado. Na esteira de Antonio Monegal, a cultura deve ser valorizada como o ar que respiramos e fazer parte de uma consciência colectiva. O autor considera que “Se a sociedade como um todo não valorizar o que a cultura representa, é ingénuo esperar que os políticos assumam uma responsabilidade que lhes é pedida por escassas pessoas”. Para fazer face aos problemas e desafios que o mundo nos coloca e as apreensões que nos desperta, Monegal defende que “importa realçar que não sairemos desta situação sem confiar na capacidade da cultura em proporcionar às pessoas ferramentas que lhes permitam enfrentar desafios da existência e, ao mesmo tempo, em construir fábricas de ideias que contribua para o desenvolvimento da sociedade como um todo” (“Como o ar que respiramos – O sentido da cultura”, 2024, p.182).

Nota: Parte deste artigo é recuperado de um outro, também aqui publicado, mas sujeito a uma revisão e à introdução de novos conteúdos.


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Educação sexual: as pedras que persistem no caminho

O tema da educação sexual continua envolto em controvérsias, boa parte das vezes sem qualquer fundamento, fruto da ignorância, de tabus ou de más políticas.
Presente na 16ª conferência da Associação Europeia de Sociologia, subordinada ao tema “Tension, Trust, and Transformation”, decorrida no Porto entre os dias 27 e 30 de Agosto, esteve Pam Aldred, que participou com uma palestra intitulada “What Can We Say About the Sexuality of the Posthuman?”. Para a socióloga, professora e investigadora britânica, cujo trabalho científico se tem centrado nos domínios da educação, dos estudos de género e da sexualidade, apesar de hoje em dia ser mais fácil falar sobre sexualidade e educação sexual, e de toda uma variedade de temas relacionados de enorme relevância, assiste-se, todavia, nos dias que correm, a um retrocesso, fruto de um discurso populista, enviesado, cínico, que começa por colocar em causa direitos humanos. Partidos mais conservadores ou de extrema-direita, assim como alguns fundamentalistas religiosos, não hesitam no uso da demagogia, da desinformação ou de ideias retrógradas para condicionar políticas educativas que visem dar garantias, para todos, de uma educação sexual abrangente e esclarecedora das crianças e jovens, nos diferentes níveis de ensino. Para isso, esses grupos contam frequentemente com a benesse do espaço mediático e das redes sociais, estas sim, um antro de demagogia e reaccionarismo. Veja-se o caso de “dois pesos e duas medidas” que por vezes é utilizado na cobertura televisiva de determinados eventos. Nos jogos de futebol profissional, em particular nas competições internacionais, já assistimos ao corte das imagens televisivas, quando ocorre uma invasão de campo por parte de algum adepto. Já o mesmo não acontece quando um radical fundamentalista interrompe a apresentação pública de um livro infantil educativo. Foi o que já aconteceu, por mais do que uma vez, da parte do ex-juiz Rui Castro (expulso da magistratura), presidente da associação de extrema-direita Habeas Corpus, feito de uma forma violenta, só porque os livros em causa abordavam questões ligadas à educação sexual.
Face a este ambiente social lamacento, a tarefa da educação sexual nas escolas torna-se difícil. Obriga os professores a tratarem com pinças os diferentes temas da saúde em geral, e da saúde sexual em particular, imprescindíveis ao desenvolvimento afectivo, cognitivo, psicológico e social das crianças e jovens. Enfim, de um crescimento saudável e informado. Mais ainda quando do outro lado, da parte dos pais, encontra-se, por vezes, um entrave para se conseguir esse desiderato. Pam Aldred defende que “os pais podem considerar que é seu papel falar de valores e da sua cultura familiar, seja o que for”, acrescentando, no entanto, que “a escola também deve falar dos aspectos técnicos, legais e, provavelmente, dos elementos sexuais mais explícitos da educação sexual, quando chegarmos ao ensino secundário”[1]. A investigadora entende mesmo que não deveria haver qualquer conflito a esse respeito. Infelizmente nem sempre é assim. A título de exemplo, lembro o caso dos irmãos alunos de uma escola de Vila Nova de Famalicão, impedidos pelos progenitores de frequentarem as aulas da disciplinas de Cidadania e Desenvolvimento, só por nelas se abordarem temas como a igualdade de género ou a educação sexual. Hoje em dia, não é qualquer professor que está disposto a arriscar o tratamento deste e de outros assuntos que a educação sexual abarca, com todo o prejuízo que isso acarreta na educação e formação das crianças e jovens, dada a postura de alguns progenitores, muitas vezes marcada pela agressividade, prepotência e desrespeito pela autoridade e competências do professor. Muito ao estilo do que grassa na cloaca das redes sociais.
No âmbito das políticas educativas, e neste caso particular da educação sexual, os governos têm andado em contramão. Veja-se o anúncio de Luís Montenegro no recente congresso do PSD, em que promete uma nova revisão de programas no ensino básico e no secundário (mais uma!), e que irá libertar a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento “das amarras a projectos ideológicos ou de facção”, provavelmente sem se dar conta da marca ideológica desta afirmação! Ao dizê-lo, o Primeiro-Ministro acabou por revelar um profundo desconhecimento acerca do programa da disciplina, cujos assuntos, nela tratados, têm assentamento na Constituição. Ignora igualmente que as linhas orientadoras da disciplina entraram em vigor durante o Governo PSD/CDS, liderado por Passos Coelho, tendo sido publicadas em 2011 e 2015. Por outro lado, não vale tudo para conseguir conquistar os eleitores do Chega, brandindo as mesmas bandeiras. Valeu ao menos a posição sensata do ministro da Educação. Tomando como exemplo a Inglaterra, Pam Aldred salienta que as reformas curriculares são muitas vezes feitas na dependência da opinião dos pais, e quase nunca ouvindo os alunos, aqueles que deveriam ser o verdadeiro centro das atenções. Dito isto, atendendo ao mundo virtual que os jovens frequentam, inundado de desinformação, manipulação, cultura do espelho, pornografia, todo o tipo de violência, etc., a investigadora defende a abordagem destes e de outros temas, sem tabus, de forma a promover uma literacia sobre as imagens visuais que os rodeiam, devendo ser analisadas de forma crítica. Posição que subscrevo na íntegra.

[1] Entrevista ao Jornal de Notícias de 6/10/2024.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Os zangados

Na generalidade, algo que têm em comum os líderes de partidos da extrema-direita ou direita radical, enfim, o que lhe quiserem chamar, é o ar e a postura de zangados. Parece que andam sempre de mal com a vida. Para além de partilharem, grosso modo, o mesmo ideário, destacando-se a luta contra a imigração, contra a identidade de género, a defesa do nacionalismo étnico, a rejeição das elites, etc., o seu discurso é habitualmente marcado pela agressividade, ódio, insultos, ataques de carácter, misoginia, mentira, xenofobia, arrogância, radicalização, divisão da sociedade e por aí adiante.
Comecemos por alguns exemplos no continente europeu, realçando os mais sonoros: o arguido Matteo Salvini, do Liga Norte, Santiago Abascal, o “duce”do Vox, Marine Le Pen, do Rassemblement National, Viktor Orban, primeiro-ministro húngaro e líder do Fidesz, ou então por cá, o Sr. Ventura, mais um irrevogável, uma cópia desbotada aspirante a entrar na liga profissional.
Do lado de lá do Atlântico, para além do agora menos mediatizado Jair Bolsonaro, temos o louco da Argentina, Javier Milei e, claro está, o sumo pontífice, o líder supremo da irmandade, o patológico Donald Trump. Está instalada a insanidade desbragada ou, como diz Pacheco Pereira, em referência ao contributo funesto das redes sociais na decomposição das sociedades, a “Cloaca Maxima”[1].
Para além da histeria, do histrionismo e da demagogia que tais figuras regurgitam, apresentam-se como líderes fortes, messias que irão salvar o mundo, que prometem soluções fáceis para problemas complicados, com toda a fantasia e extravagância que a imaginação lhes concede. Veja-se a história dos imigrantes haitianos que andam a comer cãezinhos e gatinhos dos nativos americanos! Seguem-nos as moscas, que não os largam. Tal é a fragrância que as atrai!
O espaço e a acção dos líderes democráticos têm estado fortemente condicionados pela bolha populista e toda a máquina propagandística que a sustenta. No entanto, alguns vão resistindo, não atiram a toalha ao chão, em prol dos valores da democracia, da liberdade e do Estado de Direito. Mas tal não evita que assistamos a algumas brechas que se vão abrindo neste edifício que urge proteger. Veja-se as consequências que está a ter o discurso securitário da extrema-direita sobre governos democráticos, como aconteceu muito recentemente na Alemanha, precipitado pelas conquistas da AfD nas eleições estaduais.
Voltando aos Estados Unidos, Kamala Haris, em contraponto ao estilo quezilento do seu opositor, tem desenvolvido a sua campanha com base na empatia, sem deixar de ser combativa e de abordar os temas que verdadeiramente importam à sociedade americana, com o foco na defesa da democracia e das liberdades. O mesmo se poderá dizer do seu candidato a vice-presidente, Tim Walz, que segue o mesmo registo.
Do lado oposto, na extrema-esquerda, os exemplos também abundam, mas tomo apenas um caso, porque tem sido o mais mediatizado nos últimos tempos, o de Nicolas Maduro. O presidente da Venezuela, para além de partilhar algumas características dos seus "companheiros” da extrema-direita, tem a agravante de estar no poder, com todas as conhecidas consequências nefastas para o país e para o seu povo.


[1] Cloaca Máxima (em latim: Cloaca Maxima) é um dos mais antigos sistemas de esgoto do mundo, construído na cidade de Roma para drenar os pântanos locais e remover os dejectos de uma das cidades mais populosas do mundo na época, despejando-os no rio Tibre. O nome significa literalmente "Maior Esgoto" e, segundo a tradição, a Cloaca teria sido construída inicialmente por volta de 600 a.C. por ordem do rei Tarquínio Prisco. (Wikipédia)

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Pólux

Foi no passado dia 5 de Agosto que ascendi ao cume de mais uma montanha, desta vez nos Alpes suíços. Alcancei-o por volta das 10 horas, depois de uma ascensão que teve uma exigência física e técnica com a qual não contava. Já próximo do topo deparei-me com algumas partes expostas, particularmente numa que equipada com correntes, com alguma verticalidade, o que me obrigou a um trabalho de braços aturado. A dificuldade elevou-se por me encontrar a escaladar em solitário.
O Pólux é uma montanha com 4092m de altitude e a mais baixa dos dois "gémeos" dos chamados Alpes valaisianos, na fronteira Itália-Suíça, entre o Vale de Aosta, do lado italiano, e o cantão do Valais, do lado suíço. A outra montanha é o Castor, com 4228m, também alcançado em 2015. Os nomes foram atribuídos numa espécie de homenagem aos dois irmãos gémeos, heróis da mitologia grega.




quarta-feira, 3 de julho de 2024

O embuste

A imagem que se pode reter de um conselho de turma de final de ano lectivo, no qual se decide quem transita ou não de ano escolar, faz lembrar um quadro de Dali ou uma obra de Kafka. Sim, na verdade, o que em muitos casos por lá se assiste assemelha-se deveras a uma pintura surrealista do pintor espanhol ou a um livro do escritor checo. Experimentam-se nas reuniões desse órgão as mais variadas reacções, boa parte delas emocionais. Pululam os considerandos fantasiosos e contraditórios.
Hoje em dia, reprovar um aluno, porque naturalmente não fez o que lhe competia, ou seja, empenhar-se, é o mesmo que dobrar o Cabo das Tormentas. Um professor que faça uma avaliação criteriosa, séria e honesta ao longo do ano lectivo não está livre do escrutínio e da pressão de alguns colegas para subir algumas notas. Usam dos mais variados argumentos de vitimização da pobre criança para conseguirem tal desiderato, que não passam de fábulas e clichés profusamente papagueados. Mas pior do que isso é quando, a montante, os directores de turma são sondados pelo director da escola nas vésperas das reuniões acontecerem, a fim de saber o que se perspectiva em termos de resultados finais para esta ou aquela turma, aproveitando para fazer algumas “recomendações”... Para quem não sabe, as notas são lançadas antes das reuniões de conselho de turma, e só depois, e aí, são discutidas e ratificadas. Pende sobre a cabeça do director de turma e professores a Espada de Dâmocles. Ou as estatísticas vão ao encontro dos desejos e da doutrina do prior, para que ele se possa apresentar todo janota na fotografia, ou então poderão resultar consequências para os sublevados da paróquia.
Naturalmente que não estendo a crítica à generalidade dos directores, seria injusto, mas àqueles que têm como bíblia os rankings e os quadros de mérito, para deles se servirem para a sua propaganda, polvilhada de confettis, feita em diferentes palanques, apenas com o fito na clientela discente.
Qualquer pessoa que tenha o cuidado e o interesse por aquilo que se vai publicando, quer na imprensa diária e generalista, quer na especializada, encontra com frequência o relato, melhor dizendo, a denúncia desta indecorosa realidade, tal como tantas outras, que ensombram o ensino em Portugal e que criam ilusões a respeito do nível das aprendizagens conseguido pelos alunos.
Já não bastava a permanente pressão, chantagem e até ameaças dos pais sobre os professores relativamente à avaliação dos filhos, como em tantas outras matérias, às quais muitos professores lamentavelmente se deixam subjugar, num acto de capitulação, ainda temos que arcar com a coacção, mais ou menos declarada, do Sr. Reitor. O problema surge quando desponta algum desalinhado que não se rege pela mesma bíblia, porque pensa e age de acordo com a sua consciência e ética profissional.
O resultado deste embuste já se faz sentir há muito na sociedade em muitos domínios.
O governo anunciou há poucas semanas uma série de medidas para combater alguns problemas que afectam a escola pública, em particular a falta de professores. Uma vez mais, sobre a imperativa mudança do actual modelo de gestão escolar, nada! Assim sendo, o caciquismo irá continuar a reinar em muitas escolas, e com ele vários problemas, como aquele que motivou este artigo, irão persistir.
De entre as medidas anunciadas surge a proposta de seduzir professores já aposentados para regressarem às escolas, para colmatar a sua falta, acenando com um suplemento remuneratório. Só quem não conhece a realidade das escolas julgara que isso poderá trazer algum alívio significativo a respeito dessa carência. Com uma classe envelhecida e com muitos professores exaustos e a arrastarem-se pelos corredores e salas de aulas, a contar os dias que faltam para a aposentação, é pouco provável que a medida surta efeito. Já bastam aqueles que, tendo idade ou tempo de serviço suficiente para se reformarem, estejam eles no exercício de funções docentes ou em cargos de direcção (alguns por voracidade), ainda persistem nalgumas escolas, e que mais valia retirarem-se, não só pela sua saúde, mas sobretudo para bem dos outros.

terça-feira, 28 de maio de 2024

A aprendizagem da liberdade, autonomia, resistência e empatia

Entre os dias 27 de Outubro de 2023 e 3 de Maio de 2024 decorreu no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa o Ciclo de Conferências sobre os Futuros da Educação, da Cátedra UNESCO. Dos vários conferencistas presentes escolhi falar sobre o professor e pedagogo neerlandês Gert Biesta, pela forma curiosa e interessante como explora alguns conceitos, em particular o de “resistência”.
Numa entrevista dada ao DN (20/04/2024), Gert Biesta é questionado precisamente sobre o destaque dado à palavra “resistência” no seu trabalho académico. Perante a indagação do entrevistador, e ao contrário do que à primeira vista se poderia supor, quero dizer, que tipo de contextualizações ou associações poderiam ser feitas à referida palavra, o entrevistado surpreende (ou não) ao dizer que “é importante que as crianças e os jovens tenham muitas oportunidades de trabalhar com o que, no currículo inglês, é conhecido como “materiais resistentes”, ou seja, madeira, metal, pedra, argila, entre outros”. Pois, como a seguir o fundamenta, “ao trabalhar com estes materiais, ao jovem é-lhe permitido perceber que nem todas as ideias que tem sobre o que gostaria de fazer são, realmente, possíveis.” Sem descurar outras áreas de conhecimento, deixa claro que o artesanato e as artes são importantes campos de prática, a partir da qual as crianças e os jovens se confrontam com os limites do seu pensamento e acção, ao mesmo tempo que despertam para a necessidade de dialogar com o mundo real, estimulando a convivência democrática. Gert Biesta não fará mais do que relembrar o que vem sendo defendido desde tempos imemoriais, mais concretamente, que as manualidades representam um meio privilegiado para explorar um conjunto de conceitos edificadores do carácter do indivíduo.
Por outro lado, Biesta lembra a imperativa necessidade de os pais tomarem consciência de que devem conter os impulsos mais primários ou inconscientes dos seus filhos, de que tudo podem ter. Evocando de novo o termo “resistência”, o autor sublinha que “há a necessidade de os pais oferecerem resistência aos desejos dos seus filhos, porque se dissermos sim a tudo o que eles pedem e desejam iremos transformá-los em crianças mimadas, em vez de os ajudarmos a perceber que nem tudo o que é desejado é realmente desejável.” Em contraponto, defende que os educadores deverão dar particular atenção à aprendizagem do que significa e implica a liberdade. Uma liberdade associada à autonomia, desde que esta se desenvolva em comunhão com os outros, e não apenas uma forma de viver “em roda livre”. Uma liberdade, como sublinha Biesta, que passe por uma partilha do mesmo espaço, onde se respeitem os outros, o que exige sempre compromissos e limitações. Embora reconhecendo representar um grande desafio, defende que a ambição da Educação deverá passar por encorajar as crianças e os jovens a tornarem-se indivíduos democráticos. Entretanto, e para conseguir esse desiderato, advoga que muito terá de mudar na forma como a escola está organizada e como desenvolve o seu ensino.
Por oposição a uma educação mensurável, previsível e padronizável, em que critica a pressão feita sobre as escolas, para garantir que os alunos tenham avaliações “altas” em competências e conhecimentos mensuráveis (intensificada pelo PISA, que considera um sistema de avaliação ridículo), Biesta contrapõe com a autonomia, resistência e empatia. Atente-se que, actualmente é uma autêntica insanidade a burocracia instalada nas escolas, que embriaga tudo e todos. Um sem número de documentos e procedimentos, quantos deles absurdos, acriticamente aceites e utilizados no processo educativo, que mais não fazem do que elevar os níveis de stresse dos professores, retirando-lhes tempo para prepararem convenientemente as aulas. Mais do que os fins, Biesta releva os meios para dotar as crianças e os jovens das ferramentas de que necessitarão para enfrentar os desafios que a vida lhes reserva.
Face aos problemas com que a humanidade se depara, como o caso da crise climática, importará, no plano educativo, sensibilizar as crianças e jovens para esta e outras questões que os convoca. Biesta chama a isto “Educação centrada no mundo”. Uma educação que lhes permita trilhar o seu caminho, conquistando a sua independência, assumindo responsabilidades. Como defende o autor, uma educação que aborde o “julgamento democrático”, concentrado no valor de viver a vida na pluralidade e na diferença, com uma orientação para a igualdade e para a paz.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O Abril que está por regressar à Escola

Comemorar os 50 anos do 25 de Abril é, para quem ama a liberdade e a democracia, um momento de regozijo. Ao longo destas cinco décadas muito se conseguiu, muito se conquistou, o país melhorou em vários domínios, em particular na Saúde, na Educação e na Segurança Social. Dirão alguns, é certo, que ainda há muito por fazer. Sem dúvida. A democracia, a sua sustentabilidade e o seu reforço é um processo em permanente construção. O fortalecimento do Estado Social, da economia e a melhoria das condições de vida das pessoas reclamam o envolvimento de todos, desde os poderes públicos até ao mais comum dos cidadãos.
A democracia e a liberdade não são uma garantia absoluta. Assistimos ao retrocesso que se tem registado nalguns países, com a eleição de governantes autocratas, populistas, nacionalistas, que não hesitam em capturar o poder judicial, a imprensa livre e tudo o mais que possa por em causa o seu livre arbítrio. Alguns designam essas formas de governação de “democracias iliberais”, um conceito que, a meu ver, é um contra-senso. Certo é que nestes casos o resultado é notório, com destaque para o cerceamento de direitos e liberdades individuais. É a democracia que, em toda a sua amplitude, fica condicionada, tendo como consequência directa um recuo na qualidade de vida das pessoas.
Em Portugal, malgrado o crescimento da direita radical, tal como assistimos nas recentes eleições legislativas, a democracia ainda vai dando sinais de solidez. Mas nem por isso devemos baixar a guarda. Num sector em particular, a Educação, registamos alguns retrocessos. Porque seria demasiado extenso estar aqui a elencá-los e a desenvolvê-los, fico-me apenas por um deles, desde logo porque é determinante na vida das escolas e nas próprias aprendizagens. Em concreto, refiro-me ao actual modelo de gestão escolar.
O Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de Abril, da autoria de uma ministra da Educação de má memória, Maria de Lurdes Rodrigues, sepultou um modelo de eleição e gestão democrática das escolas que até aí vigorara, dando lugar a um modelo unipessoal e autocrático. Na senda da apologia de um conjunto de conceitos que estão muito em voga, associados ao mundo empresarial e dos negócios, tais como, competitividade, flexibilidade, empreendedorismo, produtividade ou liderança, decisores políticos e seus prosélitos não tardariam em tirar conclusões de que algo do que se aplica a esse universo, poderia perfeitamente ser transposto para o campo da Educação. Não é por um acaso que no preâmbulo do referido diploma podemos encontrar, de forma repetida e incisiva, um dos referidos conceitos: ‘liderança’. “Reforçar as lideranças”, “boas lideranças”, “lideranças fortes”, “lideranças eficazes” são expressões que por lá abundam. Juntemos-lhes, como é lá dito, e em referência ao director escolar, “um rosto (…) dotado de autoridade”. Ditos visionários acreditam que só com um “líder forte”, ladeado por serviçais, se conseguirão resolver todos os males com que a Educação se debate. De forma sarcástica, mas certeira, Virgínio Sá (2023) sintetiza o perfil deste líder da seguinte forma: “Já não precisamos de mudar coisa nenhuma, basta-nos seleccionar os líderes certos, fortes, eficazes, determinados, sábios, espirituais, iluminados, autênticos, e tudo o resto mudará no sentido certo: é fácil, é barato e proporciona uma educação de qualidade para todos. Pelo menos assim o crêem os prosélitos desta nova panaceia.” Logo de seguida acrescenta: “Cabe, contudo, perguntar qual é a concepção de professor que está subjacente a esta perspectiva funcionalista dominante da liderança. Não disporão os professores da motivação, dos conhecimentos e das competências que lhes permitam realizar o seu trabalho sem a influência/acção maternal de um demiurgo? Não serão os professores capazes de avaliar as situações quotidianas com que se confrontam e decidir de forma informada, empenhada e eticamente responsável?”[1]
O actual modelo de gestão trouxe instabilidade às escolas. É todo um ambiente escolar que se tornou instável e conflituante, com consequências nocivas, inclusive para as aprendizagens dos alunos. Veja-se, com este modelo de gestão escolar autocrático, segregador, nalguns casos persecutório, pode a escola constituir-se um espaço privilegiado para aprendizagem da cidadania, da democracia e da liberdade?
E que dizer do modelo de avaliação de desempenho docente vigente, que, como sublinha Paulo Guinote (2023), representa “uma mistificação completa, um processo de tipo kafkiano, cuja condução é deixada, quantas vezes, ao arbítrio de quem não revelou qualquer especial competência para essa função.”?[2] Num outro texto, o autor é igualmente peremptório, quando afirma que “o que tem vindo a acontecer ao nível da administração e gestão dos estabelecimentos de ensino tem sido a progressiva negação dos princípios basilares da Liberdade, da Democracia e da Participação nos processos de tomada de decisão nas escolas (…).”[3]
A comemorarmos o cinquentenário da Revolução dos Cravos, e agora com um novo governo em funções, impõe-se que uma das primeiras medidas a tomar para a Educação passe, sem demoras, por devolver a gestão democrática às escolas, e com ela a própria democracia, sem a qual, e garantidamente, muitos problemas com que elas se debatem irão permanecer, e nalguns casos agravar.


[1] Sá, Vergínio (2023). Líderes, lideranças e outros quejandos. In A Página da Educação, nº222 p.17.
[2] Guinote, Paulo (2023). Uma questão de infelicidade. JL, Ano XLIII, nº1387, p.46.
[3] Guinote, Paulo (2023). A amargura dos 50. JL, Ano XLIII, nº1381, p.40.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Educar para os valores

A 22 de Janeiro deste ano o Público publicava uma reportagem feita na Escola Básica 2/3 de Virgínia Moura, na vila de Moreira de Cónegos, com o título: “Disciplina de Moral perdeu 122 mil alunos numa década e abriu-se a outras religiões”. Como o mesmo indica, é anunciada uma redução contínua e significativa, a nível nacional, do número de alunos inscritos na disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC) nas escolas públicas, ilustrada através de um gráfico que acompanha o artigo. Mas o foco da reportagem está numa escola que tenta contrariar esta tendência através de um projecto inclusivo. O sucesso que tem vindo a ser almejado em muito se deve à professora de EMRC, Mónica Barros, da referida escola, que tem feito da integração de alunos oriundos de países, culturas e religiões diferentes, a sua bandeira.
Lembro que a disciplina é facultativa, pelo que nem sempre é fácil captar o interesse dos alunos para a sua inscrição. Quando não são os próprios a declinar, são muitas vezes os pais a tomar tal decisão, por não considerarem vantajoso a frequência dessas aulas. São necessários projectos como o da professora Mónica Ramos, que, diga-se, não é caso único no país, para conseguir cativar os alunos e levá-los a participar em actividades, cujo propósito é tão-só tornar as crianças e jovens melhores pessoas, melhores cidadãos, enfim, mais felizes. E haverá algo mais importante do que este desiderato que uma escola poderá e deverá oferecer?
Para além de desfazer alguns mitos, alguns preconceitos associados à disciplina de EMRC, como o caso de a quererem comparar, erradamente, a uma espécie de catequese, contrapondo com a visão holística e ecléctica que a mesma preconiza, Mónica Ramos descreve uma série de actividades, bem-sucedidas, que têm sido implementadas, e que passam, na sua essência, por aproximar essas diferentes culturas. Como se perceberá, este trabalho é um passo decisivo na educação para os valores, para a ética e para a moral, pilares que tanto têm sido minados na sociedade contemporânea, e que explicam, em boa parte, os conflitos e disfunções a que assistimos um pouco por todo a parte.
A partilha de experiências, de saberes, de diferentes sensibilidades, de diferentes visões sobre determinados questões ou problemas que nos inquietam, por pessoas de diferentes geografias, são mais-valias e peças essenciais para montar um puzzle que conceba uma sociedade multicultural, que se respeite e que coopere. Aprender, praticando, a amizade, o respeito (pelo outro e pela natureza), a solidariedade, a partilha e a entreajuda têm sido alguns dos valores que a professora Mónica Ramos, juntamente com outros colegas, têm explorado através de inúmeras iniciativas. Os testemunhos de vários alunos, citados na reportagem, atestam os ganhos que os mesmos, assim como a própria escola, têm conseguido. Começa logo pelo superar da barreira linguística, e prossegue com a aposta na aprendizagem da tolerância, da empatia e da cooperação.
Empreitadas como estas darão certamente, a médio-longo prazo, um contributo significativo para que o vírus do populismo, marcado pelo ódio, a ofensa, a xenofobia, o ataque à democracia, às liberdades, etc. não se alimente e não se dissemine tal como preocupantemente temos vindo a assistir. A ignorância, a mentira, o vitupério, o preconceito, a estupidez, entre outros, combate-se com informação, com educação, literacia, com mais cultura, mais cidadania e humanismo.
Entretanto, já se faz horas de dar o destaque que a disciplina de EMRC merece no seio da tão apregoada “comunidade educativa” (um conceito que mais se parece a um balão insuflável), a começar pelas próprias escolas onde ela é leccionada. Infelizmente ainda é muito comum o menosprezo por esta disciplina, quer por pais e alunos, quer até por professores de outras disciplinas.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O mundo encantado da Iniciativa Liberal e seus "compagnons de route"

A leitura do programa eleitoral da Iniciativa Liberal (IL) para as legislativas de Março, embora sem surpresas, não deixou de me causar calafrios. Estão lá plasmados os fundamentos da cartilha neoliberal. Reduzir, para não dizer extinguir (o Estado Social), privatizar e liberalizar são o mantra e a fórmula mágica que salvará o mundo. Na impossibilidade de acabar com os impostos (o que verdadeiramente desejariam), este partido propõe uma redução fiscal drástica, beneficiando, para não variar, especialmente a banca e os grandes grupos económicos. Sobre os problemas da habitação, a solução apresentada passa, como esperado, por deixar o mercado funcionar, ou seja, pela especulação imobiliária – a principal razão pela escassez de um tecto para uma classe média ou remediada. Entregar, claro está, a educação e a saúde aos privados, distribuindo cheques de forma generosa – cheques-creche, cheques-ensino, cheques-saúde, cheques... Quem os passa? Parcerias Público-Privadas na saúde em força, ou seja, exponenciar os lucros deste profícuo negócio. Propõem fazer depender o valor da remuneração do desempenho do trabalhador. Melhor dizendo, instituir um sistema de competição individualista entre assalariados, em detrimento da cooperação e da solidariedade. Ainda sobre os rendimentos dos trabalhadores, prevalece a fé cega da IL na generosidade das entidades patronais em determinar o valor do salário mínimo e dos aumentos salariais, e a determinação em enfraquecer, ainda mais, as leis laborais, permitindo, entre outras coisas, a flexibilização dos despedimentos e a redução das indeminizações. Sobre segurança social as medidas propostas apelam à(s) poupança(s). Mas de quem? De quem ganha o salário mínimo ou médio?! Sabemos bem quem são os aforradores! Muito mais teria a dizer sobre o referido programa, mas só concluo com o evidente enfraquecimento do Estado Social que resultaria, se as propostas da IL fossem aplicadas, com uma acentuada redução da receita fiscal. Sabemos ao que levam estas políticas predatórias do Estado e dos trabalhadores. Mas nem por isso os neoliberais deixam de prometer o paraíso. Só que a este apenas acede uma percentagem mínima de milionários, que concentram a maioria da riqueza produzida mundialmente.
Num notável artigo publicado no Público (15/01/2024), o economista Ricardo Paes Mamede apresenta, como exemplo, um retracto socioeconómico daquilo que já foi e o que é actualmente a Nova Zelândia. Por se tratar de um longo artigo, retiro a essência do que nele é dito, e que narra o antes e o pós implementação das políticas neoliberais neste país. Pioneiro na instituição do salário mínimo e no alargamento do direito de voto às mulheres, ainda no século XIX, o país viria a desenvolver no século XX um Estado eficiente, revelando-se um dos mais transparentes e menos corrupto do mundo. Os progressos conseguidos fizeram-se não através de um regime pró-mercado, mas sim de um socialismo democrático. As reformas trabalhistas promoveriam uma reforma agrária, distribuindo terras pela população, criaram um serviço nacional de saúde, um sistema público de segurança social e um parque de habitação social. Nas décadas que se seguiram à 2.ª Guerra Mundial, permaneceu o consenso social-democrata, ou seja, os impostos sobre os mais ricos atingiram uma taxa marginal de 66%, a protecção dos sindicatos assegurava uma distribuição razoável dos rendimentos entre capital e trabalho, enquanto o Estado mantinha sob controlo directo importantes sectores da economia. Ao longo de todo este período a Nova Zelândia tornou-se mais rica e muito menos desigual. Contudo, o primeiro abalo na economia neozelandesa surgiria com a adesão britânica à CEE, em 1973, sua principal importadora. Mas foi em meados da década de 80 que se operaria uma reviravolta, com a entrada em força do neoliberalismo e a aplicação da sua já conhecida e testada receita: privatização de empresas públicas, desregulação do mercado de trabalho, concessão dos serviços colectivos a empresas privadas, redução de impostos sobre os mais ricos e redução acentuada da despesa pública. Tudo em prol da exultante livre escolha e da concorrência! Consequências: agravamento das desigualdades sociais; os 1% mais ricos viram aumentar o seu peso na riqueza nacional; a riqueza dos 10% mais ricos passou de 57% para 70% no mesmo período; os escalões de rendimentos mais baixos viram o seu poder de compra diminuir em termos reais; voltaram as bolsas de pobreza, que tinham sido praticamente extintas no país. Estes são os resultados da falácia da liberdade individual, da prosperidade, do livre mercado e do Estado mínimo preconizados pelos neoliberais.
É este o catecismo da Iniciativa Liberal. É o seu genoma. É o capitalismo de mercado a funcionar sem freio e com fulgor. É a apologia de uma sociedade meritocrática, individualista, interesseira, disfuncional, uma sociedade onde predomina a lei do mais forte, o “cada um por si”. É este o ethos dos neoliberais que, como lembra Camilo Darsie, “conduz à produção e à acumulação de recursos e à reprodução de uma lógica de produtividade e de superação de metas, por meio de uma perspectiva individualizante e competitiva” (A Página da Educação, nº222). É o desmoronamento dos princípios basilares do viver em sociedade, do contrato social. É este o perigo que Nuno Ramos de Almeida (DN, 4/02/2024) denuncia, ao afirmar que “A multiplicação das identidades e a tentativa neoliberal de reduzir todos os problemas sociais a questões de biografia individual, tornaram mais difícil a existência de um sentimento colectivo de pertença e de identificação numa comunidade de luta.”
E é este o partido que o PSD (AD) está disposto a acolher no seu regaço! Visto bem, até acho coerente. Com os escassos sociais-democratas do partido remetidos para as franjas, está aberto o caminho para que se reúna a Irmandade Neoliberal, que comunga, in genere, das mesmas políticas governamentais.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Perda de memória ou perda de vergonha

Muitos têm sido os que se dedicam a traçar o perfil psicossociológico do partido Chega. Apesar de opiniões divergentes, que podemos ler e ouvir sobretudo na imprensa, o grosso delas desemboca na convicção de que estamos perante um partido demagógico, boçal e sem escrúpulos. Ora só podemos ver tal exercício de reflexão e comentário, de análise crítica, como algo de muito útil, na medida em que expõe as verdadeiras entranhas desse partido e o perigo que representa para a democracia.
A recente convenção do Chega, decorrida em Viana do Castelo, foi uma magnífica e exemplar montra do que são boa parte dos seus militantes e o que os move. Foi ainda uma mina para os nossos humoristas. Desde o que se assumiu como fascista, passando por aquele que se revia nas ideias de André Ventura, embora as desconhecesse, ou aquele que subiu ao “público” para se dirigir ao “púlpito”, foram vários os intervenientes que, dentro e fora do palco, primaram por performances algo exóticas, capazes de levar à exasperação da turba, mas também de provocar incredulidade nos mais cientes.
A aposta do chega é captar os descontentes e capitalizar o ressentimento de quem se sente esquecido. Para tal, recorre à demagogia, à mentira, à manipulação de números, ao acicatar dos instintos mais primários, enfim, a todo o tipo de truques e artimanhas para iludir os cidadãos mais incautos ou pouco interessados em procurar a verdade, entenda-se, em estar informados. Mas isso dá trabalho, exige leitura, estudo, reflexão, discutir, pensar. Sim, sobretudo pensar. Tarefas a que muitos não se dispõem.
As tácticas utilizadas e os temas eleitos por Ventura e seus apaniguados são típicos da extrema-direita, que já levam mais de um século. Os alvos, que considera “parasitas”, são os de sempre: os estrangeiros, os imigrantes, as minorias étnicas e raciais, aqueles que designa de “subsídio-dependentes”, as elites corrompidas, desde logo os banqueiros. Aí está o homem de faxina, que promete “Limpar Portugal”! Sobre os imigrantes, nunca é demais lembrar o recente relatório do Observatório das Migrações, que dá conta de que em 2022 estes foram responsáveis por um saldo positivo de 1604,2 milhões de euros da Segurança Social. Acrescenta ainda que sem eles alguns sectores da nossa economia paralisariam, já para não falar do seu contributo para o aumento da taxa de natalidade. Mas Ventura está bem ciente de que não está a apontar para os verdadeiros culpados pelo desagrado legítimo de muitos portugueses. E aqui volto aos “descontentes”. Para Fernando Rosas, os problemas dos portugueses, que são comuns aos cidadãos de muitos outros países, resultam do capitalismo neoliberal, responsável por deixar “um rasto de destruição económica e social, com despedimentos, a liberalização do movimento de capitais, a liberalização das relações laborais”, tendo levado à criação de “uma massa de desempregados, de precários, de gente marginalizada, de pequenos proprietários ameaçados, gente que não se sentia representada no sistema político”, sendo aqui onde “a extrema-direita pesca o descontentamento, a raiva, o medo” (DN, 14/01/2024). E aqui entram as promessas inexequíveis, insustentáveis e demagógicas de Ventura, que promete tudo e a todos, sem explicar como, melhor dizendo, fantasiando sobre números, estatísticas, cenários económicos, etc. Puro engodo. E ainda tem, este senhor, o desplante de evocar o nome de Sá Carneiro, que está nos seus antípodas!
Os sucessivos congressos do Chega têm sido marcados por uma retórica e por coreografias que vão sendo pontualmente salpicadas com uma linguagem e símbolos da direita radical histórica. É disto que nos lembra o politólogo António Costa Pinto, que conta com várias obras publicadas sobre ditaduras, fascismo e o Estado Novo. Ventura tem sido pródigo em utilizar lemas do salazarismo, do fascismo italiano e do nazismo. Quem não se lembra do “Deus, Pátria, Família e Trabalho”, este último acrescentado como uma indirecta aos alegados “subsídio-dependentes”? Trata-se, como sublinha Costa Pinto, de uma clara ligação ao Estado Novo (Público, 12/01/2024). Nas presidenciais de 2021, em que Ventura foi candidato, o próprio publicou na rede social Twitter (actual X) uma fotografia sua, que se fazia acompanhar do lema “Um líder, um país, um destino”, uma adaptação de um dos lemas utilizados por Hitler (“Um povo, um império, um líder”). Por mais de uma vez André Ventura levantou em público o seu braço direito em riste, lembrando a saudação romana, que viria a ser adoptada por Hitler.
Este saudosismo não criará espanto a quem está atento e conhece a História do antes e pós-25 de Abril. Como dizia Ana Sá Lopes, “Portugal não acordou de repente com um monte de fascistas, xenófobos e racistas. Sempre cá estiveram.” (Público,14/01/2024). A jornalista responsabiliza PSD e CDS por terem dado refúgio à “direita nostálgica”, acrescentando ainda que as ideias xenófobas sempre existiram na sociedade portuguesa. A título de exemplo, atente-se ao que se pode ler no jornal Observador… Porventura já poucos se lembrarão de um programa da RTP, que foi para o ar em 2006, a que deram o nome de “Os Grandes Portugueses”, e em que os telespectadores eram convidados a votar naquele que consideravam “o maior português de sempre”. O resultado chegaria a 25 de Março de 2007, com a eleição, vejam só, de António de Oliveira Salazar! Confesso que não fiquei muito surpreendido, pois fui ouvindo a miúde e ao longo dos anos, da boca de simpatizantes ou militantes de partidos tidos como democráticos, que fazia falta ao país um Salazar. É caso para dizer que estaremos perante uma perda de memória ou perda de vergonha. Ou então ambas.