quarta-feira, 3 de julho de 2024

O embuste

A imagem que se pode reter de um conselho de turma de final de ano lectivo, no qual se decide quem transita ou não de ano escolar, faz lembrar um quadro de Dali ou uma obra de Kafka. Sim, na verdade, o que em muitos casos por lá se assiste assemelha-se deveras a uma pintura surrealista do pintor espanhol ou a um livro do escritor checo. Experimentam-se nas reuniões desse órgão as mais variadas reacções, boa parte delas emocionais. Pululam os considerandos fantasiosos e contraditórios.
Hoje em dia, reprovar um aluno, porque naturalmente não fez o que lhe competia, ou seja, empenhar-se, é o mesmo que dobrar o Cabo das Tormentas. Um professor que faça uma avaliação criteriosa, séria e honesta ao longo do ano lectivo não está livre do escrutínio e da pressão de alguns colegas para subir algumas notas. Usam dos mais variados argumentos de vitimização da pobre criança para conseguirem tal desiderato, que não passam de fábulas e clichés profusamente papagueados. Mas pior do que isso é quando, a montante, os directores de turma são sondados pelo director da escola nas vésperas das reuniões acontecerem, a fim de saber o que se perspectiva em termos de resultados finais para esta ou aquela turma, aproveitando para fazer algumas “recomendações”... Para quem não sabe, as notas são lançadas antes das reuniões de conselho de turma, e só depois, e aí, são discutidas e ratificadas. Pende sobre a cabeça do director de turma e professores a Espada de Dâmocles. Ou as estatísticas vão ao encontro dos desejos e da doutrina do prior, para que ele se possa apresentar todo janota na fotografia, ou então poderão resultar consequências para os sublevados da paróquia.
Naturalmente que não estendo a crítica à generalidade dos directores, seria injusto, mas àqueles que têm como bíblia os rankings e os quadros de mérito, para deles se servirem para a sua propaganda, polvilhada de confettis, feita em diferentes palanques, apenas com o fito na clientela discente.
Qualquer pessoa que tenha o cuidado e o interesse por aquilo que se vai publicando, quer na imprensa diária e generalista, quer na especializada, encontra com frequência o relato, melhor dizendo, a denúncia desta indecorosa realidade, tal como tantas outras, que ensombram o ensino em Portugal e que criam ilusões a respeito do nível das aprendizagens conseguido pelos alunos.
Já não bastava a permanente pressão, chantagem e até ameaças dos pais sobre os professores relativamente à avaliação dos filhos, como em tantas outras matérias, às quais muitos professores lamentavelmente se deixam subjugar, num acto de capitulação, ainda temos que arcar com a coacção, mais ou menos declarada, do Sr. Reitor. O problema surge quando desponta algum desalinhado que não se rege pela mesma bíblia, porque pensa e age de acordo com a sua consciência e ética profissional.
O resultado deste embuste já se faz sentir há muito na sociedade em muitos domínios.
O governo anunciou há poucas semanas uma série de medidas para combater alguns problemas que afectam a escola pública, em particular a falta de professores. Uma vez mais, sobre a imperativa mudança do actual modelo de gestão escolar, nada! Assim sendo, o caciquismo irá continuar a reinar em muitas escolas, e com ele vários problemas, como aquele que motivou este artigo, irão persistir.
De entre as medidas anunciadas surge a proposta de seduzir professores já aposentados para regressarem às escolas, para colmatar a sua falta, acenando com um suplemento remuneratório. Só quem não conhece a realidade das escolas julgara que isso poderá trazer algum alívio significativo a respeito dessa carência. Com uma classe envelhecida e com muitos professores exaustos e a arrastarem-se pelos corredores e salas de aulas, a contar os dias que faltam para a aposentação, é pouco provável que a medida surta efeito. Já bastam aqueles que, tendo idade ou tempo de serviço suficiente para se reformarem, estejam eles no exercício de funções docentes ou em cargos de direcção (alguns por voracidade), ainda persistem nalgumas escolas, e que mais valia retirarem-se, não só pela sua saúde, mas sobretudo para bem dos outros.

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