terça-feira, 29 de abril de 2025

O fluxo da ignorância

A ignorância é subsidiária de populismos e extremismos. A par da falta de discernimento, é a ignorância sobre a História que tem contribuído para o renascimento da extrema-direita. Esta sempre existiu, apenas esteve temporariamente adormecida – leia-se “O sistema totalitário”, de Hannah Arendt. Agora surge com toda a força, descarada e insidiosa.
Como insistente e comprovadamente tem sido atestado, as redes sociais, através de notícias falsas, têm contribuído para o ataque à democracia, às liberdades (entre elas, a liberdade de imprensa), ao Estado de Direito, à ciência e ao conhecimento. Como notava Pacheco Pereira, “Nada é mais nocivo para a democracia do que os mecanismos dessa ignorância, que vive da falsidade das fake news e das teorias da conspiração, da redução da racionalidade à emotividade primária, e que gera o mundo das ‘percepções’.” (Público, 4/01/2025). Mas algo mais perigoso subsiste nesta nova forma de ignorância, pejada de cinismo e perfídia. Para o historiador, se a “ignorância antiga” provinha do analfabetismo e da escassa escolaridade, a nova ignorância exibe características muito diferentes. E concretiza: “Não se reconhece como ignorância, o que faz toda a diferença, e considera-se um saber, um saber perseguido, feito da “revelação” daquilo que os poderosos, os intelectuais, a elite, o deep state não querem que as pessoas comuns saibam e por isso é anti-intelectual e anticientífica.” (Público, 11/01/2025).
Pouco ou nada se pode esperar das grandes tecnológicas, digo, das redes sociais, como o Facebook, Instagram ou Whatsapp, quando decidem, como o fez Zuckerberg, suspender o programa de verificação de factos, a favor de uma cínica interpretação de “liberdade de expressão”. Assim fica difícil o combate à desinformação e à ignorância, ambas faces da mesma moeda. Ambas se sustentam. Como diz Miguel Sousa Tavares (Expresso, 5/07/2024), “na ignorância prosperou a desinformação, na desonestidade do método banalizou-se a mentira e mesmo a inutilidade de distingui-la da verdade, os factos foram substituídos por “impressões” (…), e quando um iluminado lobo solitário expõe as suas simples e radicais ideias para a salvação da pátria ou do mundo, o atento algoritmo multiplica-a por uns milhares bots, fazendo-a parte de uma multidão fantasma de concordantes. Tudo desaguando num orgulho impensável na ignorância e na boçalidade intelectual, a par de um indisfarçável desprezo, quando não ódio, pelos que insistem em informar-se e pensar pela própria cabeça (…).”
Ocorrida entre os dias 10 e 12 deste mês, em Guimarães, a Education Summit 2025 reuniu uma série de académicos nacionais e internacionais, que reflectiram sobre estado actual da educação no mundo. Uma das oradoras e relatoras, a mexicana Elisa Guerra, alertava para o facto de ser possível ir à escola e não saber ler, ou saber ler, mas não ser capaz de compreender o que se lê. Isto faz soar os alarmes, motivando as maiores preocupações sobre o ensino que vem sendo ministrado em vários países. Por cá, muitos têm sido aqueles, em particular professores e investigadores no domínio das Ciências da Educação, que têm denunciado as disfunções do sistema de ensino. O foco tem incidido na questão da aprendizagem da leitura, a par da dedicação, disciplina e rigor no estudo.
A propósito das comemorações dos 200 anos do nascimento de Camilo de Castelo Branco, António Cortez lamentava o pouco interesse dado à leitura e ao estudo dos clássicos da literatura no ensino. Pois considera que é lendo os clássicos que melhor saberemos o que somos e o que não somos. Como ironicamente destaca, “No país dos génios e das médias inflacionadas a Português, neste país do acordo tácito entre pais e professores para que os meninos transitem todos e nunca tenham traumas, Camilo é um obstáculo que se ultrapassa como todos os outros: com a velocidade típica dos fanáticos do sucesso que jamais saberão o valor do esforço.” (JL, 5-18/03/2025).
Várias políticas erráticas do Ministério da Educação (ME), de vários governos, têm resultado em vários equívocos em matéria de ensino-aprendizagem. Temos um sistema educativo que, como salienta Carlos Granja, “assenta na exacerbação da avaliação como via única da definição da qualidade do ensino e da aprendizagem, sem olhar a meios, nem a princípios.” E quando os resultados não correspondem às famosas “metas”, digo eu, há que encontrar um bode expiatório: os professores. Daí eu estar alinhado com o autor, quando acrescenta que “não cabe só à escola a responsabilidade dos resultados escolares, quando a ela são imputadas todas as responsabilidades e igualmente as culpas quando as falhas e os erros ficam expostos (…).” (JL, 8-21/01/2025). E aqui cabem os famigerados rankings e as costumeiras leituras enviesadas que deles se fazem.
Por muito iluminismo que grasse no espírito de quem comande o ME, “qualquer plano está destinado ao fracasso (…) se continuar a apostar no mesmo modelo de medidas, que confundem a quantidade com a qualidade e a submeter a exigência de rigor na sua implementação à necessidade de apresentar níveis de sucesso para engordar estatísticas. (…) Quando o modelo não é levado a sério, porque o discurso dominante é o do direito ao sucesso, caso contrário a culpa é dos professores, não adiantam medidas de flexibilidade e muito menos de alegada ‘inovação’.” (Paulo Guinote, JL, 8-21/01/2025)
Parece-me evidente que o combate à ignorância, decorrente da desinformação, da manipulação das massas por parte de ‘fariseus’, só fará sentido se começarmos por uma renovação de mentalidades, a começar por aqueles que assumem o governo da Educação, estendendo-se aos que habitam a escola, assim como aos pais e encarregados de educação. A par da arte, a aprendizagem da leitura e a fruição de obras literárias, sejam elas clássicas ou contemporâneas, são condição sine qua non não apenas para elevar o nível de cultura geral do indivíduo, mas também para desenvolver um espírito crítico, imprescindível ao rastreio da avalanche da (des)informação que nos assola diariamente, tornando-nos imunes ao arrebanhamento. Uma tarefa difícil, sem dúvida, mas imperiosa.

Sem comentários: