segunda-feira, 9 de junho de 2025

A tirania do mérito

Este é o título de um livro de Michael Sandel, um dos mais reconhecidos filósofos da actualidade, professor de filosofia na Universidade de Harvard. Nele, o autor alerta para os riscos que as democracias liberais atravessam, responsabilizando um dos seus pilares básicos: o princípio do mérito. Relembra aquilo que se tornou uma evidência, a saber, uma competição desenfreada, feita em diferentes contextos, que acaba por criar uma polarização entre vencedores e perdedores, tendo como resultado um mundo que reforça a desigualdade social e culpabiliza as pessoas. Sandel considera que essa polarização vencedor-perdedor fez estancar a mobilidade social e promoveu um sentimento de raiva e frustração, que tem servido de pasto para o protesto populista e para a descrença nas instituições, nos governos e entre cidadãos. De modo a ultrapassar esta e outras crises que corroem as sociedades, o autor recomenda uma reflexão sobre as ideias de sucesso e fracasso, inerentes à globalização e às crescentes desigualdades. Uma forma de pensar o sucesso assente numa ética de humildade e solidariedade e mais reivindicativa da dignidade do trabalho.
Sandel deixa claro que os defensores do projecto meritocrático “sabiam que a verdadeira igualdade de oportunidades exigia mais do que a simples erradicação da discriminação. Exigia que se criassem condições que permitissem às pessoas de todos os estratos sociais e económicos competir eficazmente numa economia global baseada no conhecimento” (p.103). Acrescenta que esta consciência levaria a que, nas décadas de 1990 e 2000, os partidos considerassem a educação o eixo da acção política no combate à desigualdade, aos salários estagnados e ao desemprego, uma política centrada no bem comum. Daí para cá pouco mudou. As assimetrias permanecem e nalguns casos agravaram-se. Veja-se a crescente concentração da riqueza produzida numa pequena percentagem de multimilionários, por oposição a um número elevadíssimo da população mundial que vive na pobreza, alguma dela extrema. E depois vêm os defensores da meritocracia propalar que o esforço e o trabalho árduo garantirão um futuro risonho, que favorecerão a mobilidade social! Ora o que Sandel faz notar é que o ideal meritocrático não é um remédio para a desigualdade, mas a sua justificação. Em jeito de metáfora, o autor sublinha que uma “competição” só é justa quando todos começarem “a corrida na mesma linha de partida, tendo tido igual acesso a oportunidades de formação, treino físico, nutrição e assim por diante” (p.146). Não é isto o que a realidade nos mostra em muitas situações.
Podemos perfeitamente estabelecer um paralelismo com o que acontece em contexto escolar. Com o devido suporte legal e regulamentar, é certo, as escolas atribuem todos os anos, nos diferentes níveis de ensino, prémios de mérito aos alunos que se destacam no seu desempenho escolar. Em tese, nada tenho contra. Todavia, se olharmos à realidade social, e tendo em conta o que anteriormente referi quando citei Michael Sandel a respeito de “competição”, então aí o caso muda de figura. O ponto de partida não é igual para todos. Obviamente que aquele aluno que tem todo o suporte familiar necessário e determinante para atingir o sucesso, partirá em vantagem relativamente a quem não dispõe do mesmo. Falo da disponibilização, por parte dos pais, de todo o material escolar e didáctico, do apoio afectivo, do acompanhamento no estudo (que tem um valor acrescido quando os pais têm formação superior), das explicações extra-escolares, etc. Todo o aluno que não usufrui destas condições parte de um ou vários degraus inferiores. O berço em que se nasce fará a diferença. A origem social do aluno, o capital de conhecimento dos pais e a valorização da escola por parte destes são decisivos no sucesso escolar. Mais do que um indicador educativo, o sucesso escolar acaba por traduzir-se num indicador social. Assim, torna-se difícil falar da escola e da educação como um “elevador social”.
Nós, professores, aqueles que melhor que ninguém conhece o terreno, sabemos que esta é uma realidade irrefutável. Daí a minha relutância às cerimónias de entrega de “galardões” e a todas as artes performativas que habitualmente nelas sucedem.

terça-feira, 29 de abril de 2025

O fluxo da ignorância

A ignorância é subsidiária de populismos e extremismos. A par da falta de discernimento, é a ignorância sobre a História que tem contribuído para o renascimento da extrema-direita. Esta sempre existiu, apenas esteve temporariamente adormecida – leia-se “O sistema totalitário”, de Hannah Arendt. Agora surge com toda a força, descarada e insidiosa.
Como insistente e comprovadamente tem sido atestado, as redes sociais, através de notícias falsas, têm contribuído para o ataque à democracia, às liberdades (entre elas, a liberdade de imprensa), ao Estado de Direito, à ciência e ao conhecimento. Como notava Pacheco Pereira, “Nada é mais nocivo para a democracia do que os mecanismos dessa ignorância, que vive da falsidade das fake news e das teorias da conspiração, da redução da racionalidade à emotividade primária, e que gera o mundo das ‘percepções’.” (Público, 4/01/2025). Mas algo mais perigoso subsiste nesta nova forma de ignorância, pejada de cinismo e perfídia. Para o historiador, se a “ignorância antiga” provinha do analfabetismo e da escassa escolaridade, a nova ignorância exibe características muito diferentes. E concretiza: “Não se reconhece como ignorância, o que faz toda a diferença, e considera-se um saber, um saber perseguido, feito da “revelação” daquilo que os poderosos, os intelectuais, a elite, o deep state não querem que as pessoas comuns saibam e por isso é anti-intelectual e anticientífica.” (Público, 11/01/2025).
Pouco ou nada se pode esperar das grandes tecnológicas, digo, das redes sociais, como o Facebook, Instagram ou Whatsapp, quando decidem, como o fez Zuckerberg, suspender o programa de verificação de factos, a favor de uma cínica interpretação de “liberdade de expressão”. Assim fica difícil o combate à desinformação e à ignorância, ambas faces da mesma moeda. Ambas se sustentam. Como diz Miguel Sousa Tavares (Expresso, 5/07/2024), “na ignorância prosperou a desinformação, na desonestidade do método banalizou-se a mentira e mesmo a inutilidade de distingui-la da verdade, os factos foram substituídos por “impressões” (…), e quando um iluminado lobo solitário expõe as suas simples e radicais ideias para a salvação da pátria ou do mundo, o atento algoritmo multiplica-a por uns milhares bots, fazendo-a parte de uma multidão fantasma de concordantes. Tudo desaguando num orgulho impensável na ignorância e na boçalidade intelectual, a par de um indisfarçável desprezo, quando não ódio, pelos que insistem em informar-se e pensar pela própria cabeça (…).”
Ocorrida entre os dias 10 e 12 deste mês, em Guimarães, a Education Summit 2025 reuniu uma série de académicos nacionais e internacionais, que reflectiram sobre estado actual da educação no mundo. Uma das oradoras e relatoras, a mexicana Elisa Guerra, alertava para o facto de ser possível ir à escola e não saber ler, ou saber ler, mas não ser capaz de compreender o que se lê. Isto faz soar os alarmes, motivando as maiores preocupações sobre o ensino que vem sendo ministrado em vários países. Por cá, muitos têm sido aqueles, em particular professores e investigadores no domínio das Ciências da Educação, que têm denunciado as disfunções do sistema de ensino. O foco tem incidido na questão da aprendizagem da leitura, a par da dedicação, disciplina e rigor no estudo.
A propósito das comemorações dos 200 anos do nascimento de Camilo de Castelo Branco, António Cortez lamentava o pouco interesse dado à leitura e ao estudo dos clássicos da literatura no ensino. Pois considera que é lendo os clássicos que melhor saberemos o que somos e o que não somos. Como ironicamente destaca, “No país dos génios e das médias inflacionadas a Português, neste país do acordo tácito entre pais e professores para que os meninos transitem todos e nunca tenham traumas, Camilo é um obstáculo que se ultrapassa como todos os outros: com a velocidade típica dos fanáticos do sucesso que jamais saberão o valor do esforço.” (JL, 5-18/03/2025).
Várias políticas erráticas do Ministério da Educação (ME), de vários governos, têm resultado em vários equívocos em matéria de ensino-aprendizagem. Temos um sistema educativo que, como salienta Carlos Granja, “assenta na exacerbação da avaliação como via única da definição da qualidade do ensino e da aprendizagem, sem olhar a meios, nem a princípios.” E quando os resultados não correspondem às famosas “metas”, digo eu, há que encontrar um bode expiatório: os professores. Daí eu estar alinhado com o autor, quando acrescenta que “não cabe só à escola a responsabilidade dos resultados escolares, quando a ela são imputadas todas as responsabilidades e igualmente as culpas quando as falhas e os erros ficam expostos (…).” (JL, 8-21/01/2025). E aqui cabem os famigerados rankings e as costumeiras leituras enviesadas que deles se fazem.
Por muito iluminismo que grasse no espírito de quem comande o ME, “qualquer plano está destinado ao fracasso (…) se continuar a apostar no mesmo modelo de medidas, que confundem a quantidade com a qualidade e a submeter a exigência de rigor na sua implementação à necessidade de apresentar níveis de sucesso para engordar estatísticas. (…) Quando o modelo não é levado a sério, porque o discurso dominante é o do direito ao sucesso, caso contrário a culpa é dos professores, não adiantam medidas de flexibilidade e muito menos de alegada ‘inovação’.” (Paulo Guinote, JL, 8-21/01/2025)
Parece-me evidente que o combate à ignorância, decorrente da desinformação, da manipulação das massas por parte de ‘fariseus’, só fará sentido se começarmos por uma renovação de mentalidades, a começar por aqueles que assumem o governo da Educação, estendendo-se aos que habitam a escola, assim como aos pais e encarregados de educação. A par da arte, a aprendizagem da leitura e a fruição de obras literárias, sejam elas clássicas ou contemporâneas, são condição sine qua non não apenas para elevar o nível de cultura geral do indivíduo, mas também para desenvolver um espírito crítico, imprescindível ao rastreio da avalanche da (des)informação que nos assola diariamente, tornando-nos imunes ao arrebanhamento. Uma tarefa difícil, sem dúvida, mas imperiosa.

terça-feira, 18 de março de 2025

Sobre respeito e decência

O mundo está perigoso. Não só devido às guerras militares e económicas em curso, mas particularmente às disfunções da mente humana. A agressividade está instalada. Tornou-se rotina. As redes sociais são aquilo que se sabe: um antro de ignorância, ofensas e promiscuidade. Toda a gente opina sobre tudo e sobre todos. Grassam os especialistas de coisa nenhuma. As consequências sociais e políticas estão aí para quem as quiser ver. Miguel Sousa Tavares resume-o de uma forma certeira: “Uma das mais trágicas consequências desta cultura das redes sociais é a transformação de cada um dos seus viciados num herói aos seus próprios olhos, um sábio e um justiceiro, alguém que não precisa de aprender, nem de ver, nem de ouvir, nem de ser confrontado com outras verdades. Alguém que julga saber tudo e, tudo sabendo, nem sequer precisa de sonhar.” (Expresso, 3/01/2025)
Quem prestar atenção ao que se passa no espaço público dará conta da agressividade que nele abunda. Seja no trânsito, em repartições públicas, nos comércios ou no trabalho. O respeito, a decência ou a autoridade (diferente de autoritarismo) tornaram-se um mero apêndice.
No meu espaço de trabalho, a escola, ao longo de mais de três décadas de ensino, que já somo, tenho assistido, tal como os meus colegas, a uma deterioração do ambiente escolar, em parte fruto da indisciplina que vai proliferando. São inúmeros os estudos que vão saindo a público, dando conta desta dura realidade. Um dos mais recentes foi o da Missão Escola Pública (MEP), uma associação de professores que se tem dedicado à análise dos problemas que afectam a comunidade escolar. Tratou-se de um inquérito sobre o bullying sobre docentes, que revelou uma percentagem elevada de agressões físicas e verbais a estes profissionais. Ana Pescada, membro da MEP, num artigo do Público (8/2/2025), alerta para o agudizar deste problema, responsabilizando os encarregados de educação, alguns dos quais não hesitam em recorrer a todo o tipo de acções, por vezes com descarada vileza, para pôr em causa a honra e a dignidade dos professores, tomando-os como um grupo de malfeitores, de gente desonesta. Dá como exemplo o questionamento das avaliações e das práticas pedagógicas e da pressão para a alteração de notas dos seus educandos, quando estas não correspondem às expectativas, e que, como é óbvio, resultam da falta de empenho destes. Acresce esta situação burlesca: perante o insucesso do aluno, precipitam-se as suspeitas sobre o professor. Cabe-lhe o ónus da prova. É chamado a prestar contas, a justificar os níveis negativos atribuídos, cabendo-lhe a responsabilidade de tomar medidas (!) para inverter a situação. Sobre a (falta de) responsabilidade do aluno ou dos pais, estamos conversados!
Também a porta-voz da MEP, Cristina Mota, em declarações ao DN (19/2/2025), revela a sua preocupação face a este clima vivido em muitas escolas, lembrando o óbvio: “As famílias têm um papel crucial na formação dos valores e na disciplina dos seus filhos e, por isso, devem ser responsabilizadas quando não assumem essa responsabilidade.” No referido inquérito, a própria faz saber que, em várias situações, “são os próprios pais e encarregados de educação que, através de ameaças e comportamentos agressivos – tanto físicos, como psicológicos –, contribuem para a violência nas escolas, além de não responsabilizarem os filhos.” Gente íntegra e exemplar!
A relação de confiança entre escola e família tem vindo a ser beliscada de forma preocupante, com pais a contestarem, por vezes de forma despudorada, questões pedagógicas, metodologias, avaliações, já para não falar na forma devota com que acreditam nas narrativas dos seus filhos, sem procurarem apurar a verdade dos factos. Farei justiça ao dizer que os pais não são todos iguais. Obviamente que os há bem formados, conscienciosos, que sabem respeitar o “território” do professor, que reconhecem o seu magistério, a sua soberania.
Nunca é demais lembrar que um professor é uma autoridade, como o é um polícia, um juiz ou um médico, só para dar alguns exemplos. Não só pelo papel que tem na sociedade, nas suas transformações, o professor é alguém que, a par daqueles pais que assumem de forma responsável a educação dos seus filhos, tem indiscutivelmente um papel determinante na formação do aluno e no seu futuro. Como tal, tem uma ascendência que deve ser estimada.
Fica o elogio àquela linhagem de professores, da qual faço parte, que não abdicam dos seus legítimos princípios, valores e autoridade, focados na nobre missão de ensinar, e que não se deixam condicionar ou intimidar por quem quer que seja.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Ascensão do Pico Fariñento pelo Canal do Inferno

Foi no passado dia 1 de Março escalei, juntamente com os meus companheiros de cordada, José Chaves e Aníbal Morais, o Pico Fariñento, no Maciço das Ubiñas, situado na Cordilheira Cantábrica. O cume, com 2174 metros de altitude, foi alcançado depois de superada uma das vias mais difíceis que a ele conduz. Tratou-se do Canalón del Infierno, um corredor com 300m e uma inclinação que varia entre os 45º e os 55º, sendo um percurso de escalada mista (rocha, neve e gelo). Antes da escalada propriamente dita, e até chegar ao início do referido canal, tivemos de fazer uma travessia de cerca de 3 horas, por terreno nevado, com um desnível positivo acumulado a rondar os 1000 metros.
Voltando à via, o nome que lhe foi dado, Canalón del Infierno, não terá sido por acaso. Efectivamente, o grau de dificuldade que lhe foi atribuído, dentro da tabela universal de classificação de alpinismo, foi o de “difícil”. Na verdade, trata-se de uma via comprometida, que exige não apenas uma boa condição física, mas também técnica, dados os riscos consideráveis que esta escalada invernal comporta. No final, restou-nos festejar a conquista.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

No país das percepções

Já antevejo que uma das fortes candidatas a palavra do ano 2025 venha a ser “percepção”. O termo tem sido utilizado ad nauseam por alguns políticos, entre eles, o primeiro-ministro. E com ganhos. Basta ver os mais recentes resultados das intenções de voto para o perceber, com o PSD a subir no gráfico. Sobre o ponto em análise, antecipo que a campanha para as autárquicas venha a ser pródiga, onde até não faltarão candidatos à esquerda a ensaiar a mesma táctica. Contudo, não é de todo correcto o significado que é atribuído à palavra. Quem se quiser dar ao trabalho de o compreender, que estude. Ao invés de elegerem outros conceitos, tais como, “impressão” ou “sensação”, optaram por um antónimo. Não surpreende. Na verdade, quantos estarão interessados em ler, estudar, instruir-se?
Vem o tema a propósito da tão badalada questão da insegurança, num dos países comprovadamente mais seguros do mundo, que a extrema-direita e a direita serôdia têm cavalgado, e que não têm tido pejo em associá-la injustamente à imigração, fazendo desta um bode expiatório. Para azar dos promotores deste discurso insidioso, as autoridades policiais vieram a público esvaziar este balão de ar fétido, recorrendo à evidência empírica.
Falando em Lisboa na conferência sobre os 160 anos do Diário de Notícias, no dia 17 de Janeiro, o director nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, afirmou, com propriedade, que o sentimento de insegurança tem origem no aumento da desinformação e ameaças híbridas, salientando que os números da criminalidade violenta desmentem essa ideia. Pouco tempo depois era a vez da Direcção Nacional da PSP revelar uma descida considerável, em 2024, quer da criminalidade geral, quer da criminalidade violenta, destacando a área metropolitana de Lisboa. Juntemos ainda a informação precisa apresentada pelo director científico do Observatório das Migrações, Pedro Góis, que não hesita em culpabilizar a cobertura jornalística e o espectáculo mediático que é dado, repetidamente, a alguns discursos políticos enviesados e virulentos de extrema-direita, que levam a uma errada e perigosa falsificação da percepção social (Visão, nº1663, 2025). Mas voltando às autoridades policiais, ambas estatísticas, que não foram urdidas nas redes sociais, irritaram bastante André Ventura e Carlos Moedas. Ao invés de se regozijarem com os números, preferiram mostrar o seu profundo desagrado por estes contrariarem os seus discursos populistas, securitários e demagógicos. De repente o mar ficou sem as ondas sobre as quais prazerosamente vinham surfando. Nada que os impedisse de se apressarem a contradizer os factos, recorrendo aos mais ridículos e cínicos argumentos.
O contributo dos imigrantes para a sustentabilidade da segurança social, que paga reformas e pensões (incluindo de beneficiários que os querem ver repatriados), para o aumento da natalidade, para o preenchimento de postos de trabalhos que muitos portugueses não querem ocupar (agricultura, construção civil, comércio, indústria, serviços domiciliários, etc.), e bem assim para o dinamismo da economia nacional, é eclipsado pelas “percepções” de tudo e mais alguma coisa. Quando esta abordagem é feita pela vox populi, não tem nada de surpreendente. Já quando é feita pela classe política, é, no mínimo, lamentável e perigosa. A propósito, a chamada casa da democracia tem sido palco desse festim. O parlamento transformou-se na Alegoria da Caverna, de que nos narrava Platão. Ainda que este se assemelhe cada vez mais a uma algaravia, muito por culpa de uma deprimente falange de 50, perdão, 49 deputados obsequiosos, formatados por El Generalísimo, será sempre preferível à ilusão de sombras projectadas numa qualquer parede. Não se trata de uma impressão minha. É mesmo uma percepção.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

O primado dos limites

No seu livro “As crianças precisam de limites” (2024) a psicóloga e investigadora Caroline Goldman não só disserta sobre alguns problemas comportamentais de crianças e adolescentes, como apresenta um guião dirigido a pais, onde sugere várias estratégias para lidar com eles. A autora discorda daquilo que designam de «educação positiva», uma corrente de pensamento que defende que as crianças se devem criar sem limites. Sem prescindir evidentemente do amor e dos afectos defendida por esta corrente, Goldman explica que as regras e os limites impostos a crianças e adolescentes não servem para controlá-los, mas sim para ensinar-lhes a navegar o mundo com confiança e responsabilidade. Para tal, a psicóloga apresenta um roteiro com estratégias claras e não-violentas para lidar com comportamentos desafiadores, ajudando os pais a cultivar relacionamentos tranquilos e seguros com os seus filhos. É que, como diz, “por mais qualidades que uma pessoa tenha, se não tiver acesso aos códigos mínimos de boas maneiras e de consideração pelos outros, essas qualidades nunca encontrarão uma forma duradoura de explorar o seu potencial.”
Naturalmente que os professores terão um papel importante neste processo, ao estabelecer uma parceria com os pais e encarregados de educação, que se quer franca, respeitosa e colaborante. Todavia, algo terá de ser revisto nesta relação casa/escola, de modo a ultrapassar alguns preconceitos e animosidades que se vai registando, e que têm vindo a agravar-se. E sobre este ponto recorro a um retracto fidedigno que Goldman traça da actualidade educativa. Diz a própria o seguinte: "Antigamente, os pais apoiavam o professor, que estava justamente incluído na matriz educativa «benéfica» do seu filho. Hoje em dia, quando um professor critica o comportamento de uma criança na escola, os pais tendem a aceitar a crítica como se fosse dirigida a eles, e o seu primeiro instinto é defender o filho como se estivesse a ser injustamente atacado/julgado pelo professor.” Logo de seguida acrescenta: “Os pais têm também uma tendência crescente para pedir à escola que faça todos os esforços que já não exigem aos seus filhos. Pedem à escola que os eduque, mas depois criticam-na por ser autoritária…” A psicóloga lamenta ainda que um ambiente escolar exigente, que trabalha para conter a impulsividade das crianças, saia gorado, assim que estas chegam a casa, devido à postura demasiado flexível dos pais. No mesmo sentido, e em jeito de remate, vão as palavras de Carlos Ceia, professor universitário, ao afirmar que “o professor não controla, não pode controlar nem pode ser responsabilizado por não poder controlar aquilo que é um comportamento inadequado, que tem origem em factores alheios à escola, como o ambiente familiar, por exemplo.” (Público, 6/12/2024).
Também Eduardo Sã manifesta a sua preocupação com a educação que muitos pais dão aos seus filhos. Numa entrevista à revista Visão (Nº 1629) o reconhecido psicólogo fala-nos daquilo que designa de “mães 5G”, que não hesitam em seguir todo o tipo de tutoriais para educar os seus filhos. Diz mesmo que estão a estragá-los, porque, segundo defende, “as crianças precisam de um referencial, de alguém que lhes dê as coordenadas.” E aqui chega à questão da necessária imposição das regras, pelo facto de exercerem uma função, que é pegar nos ritmos de uma criança e adequá-los, de maneira a criar rotinas e assim ganhar uma dimensão de estabilidade que a faça crescer. De forma algo jocosa, mas acutilante, Eduardo Sã considera que “Os pais de hoje querem tanto ser tão perfeitos que às vezes não se dão conta de que os pais perfeitos são os melhores inimigos dos bons pais.”
Uma educação para os valores, uma educação ética, uma educação para o respeito e para a responsabilidade, mais do que uma exigência, é um direito das crianças e dos jovens. Não é discutível. É um imperativo em qualquer contexto. Mais ainda quando nos confrontamos com um mundo onde grassa e se normaliza a mentira, o narcisismo, a devassa, a diatribe, o desrespeito, o ódio, a violência, o negacionismo, a promoção da futilidade e da ignorância, o fomento da competição em detrimento da cooperação e da solidariedade – e aqui teríamos pano para mangas para falar sobre os equívocos dos rankings, quadros de mérito e da avaliação de aprendizagens.