Este é o título de um livro de Michael Sandel, um dos mais reconhecidos filósofos da actualidade, professor de filosofia na Universidade de Harvard. Nele, o autor alerta para os riscos que as democracias liberais atravessam, responsabilizando um dos seus pilares básicos: o princípio do mérito. Relembra aquilo que se tornou uma evidência, a saber, uma competição desenfreada, feita em diferentes contextos, que acaba por criar uma polarização entre vencedores e perdedores, tendo como resultado um mundo que reforça a desigualdade social e culpabiliza as pessoas. Sandel considera que essa polarização vencedor-perdedor fez estancar a mobilidade social e promoveu um sentimento de raiva e frustração, que tem servido de pasto para o protesto populista e para a descrença nas instituições, nos governos e entre cidadãos. De modo a ultrapassar esta e outras crises que corroem as sociedades, o autor recomenda uma reflexão sobre as ideias de sucesso e fracasso, inerentes à globalização e às crescentes desigualdades. Uma forma de pensar o sucesso assente numa ética de humildade e solidariedade e mais reivindicativa da dignidade do trabalho.
Sandel deixa claro que os defensores do projecto meritocrático “sabiam que a verdadeira igualdade de oportunidades exigia mais do que a simples erradicação da discriminação. Exigia que se criassem condições que permitissem às pessoas de todos os estratos sociais e económicos competir eficazmente numa economia global baseada no conhecimento” (p.103). Acrescenta que esta consciência levaria a que, nas décadas de 1990 e 2000, os partidos considerassem a educação o eixo da acção política no combate à desigualdade, aos salários estagnados e ao desemprego, uma política centrada no bem comum. Daí para cá pouco mudou. As assimetrias permanecem e nalguns casos agravaram-se. Veja-se a crescente concentração da riqueza produzida numa pequena percentagem de multimilionários, por oposição a um número elevadíssimo da população mundial que vive na pobreza, alguma dela extrema. E depois vêm os defensores da meritocracia propalar que o esforço e o trabalho árduo garantirão um futuro risonho, que favorecerão a mobilidade social! Ora o que Sandel faz notar é que o ideal meritocrático não é um remédio para a desigualdade, mas a sua justificação. Em jeito de metáfora, o autor sublinha que uma “competição” só é justa quando todos começarem “a corrida na mesma linha de partida, tendo tido igual acesso a oportunidades de formação, treino físico, nutrição e assim por diante” (p.146). Não é isto o que a realidade nos mostra em muitas situações.
Podemos perfeitamente estabelecer um paralelismo com o que acontece em contexto escolar. Com o devido suporte legal e regulamentar, é certo, as escolas atribuem todos os anos, nos diferentes níveis de ensino, prémios de mérito aos alunos que se destacam no seu desempenho escolar. Em tese, nada tenho contra. Todavia, se olharmos à realidade social, e tendo em conta o que anteriormente referi quando citei Michael Sandel a respeito de “competição”, então aí o caso muda de figura. O ponto de partida não é igual para todos. Obviamente que aquele aluno que tem todo o suporte familiar necessário e determinante para atingir o sucesso, partirá em vantagem relativamente a quem não dispõe do mesmo. Falo da disponibilização, por parte dos pais, de todo o material escolar e didáctico, do apoio afectivo, do acompanhamento no estudo (que tem um valor acrescido quando os pais têm formação superior), das explicações extra-escolares, etc. Todo o aluno que não usufrui destas condições parte de um ou vários degraus inferiores. O berço em que se nasce fará a diferença. A origem social do aluno, o capital de conhecimento dos pais e a valorização da escola por parte destes são decisivos no sucesso escolar. Mais do que um indicador educativo, o sucesso escolar acaba por traduzir-se num indicador social. Assim, torna-se difícil falar da escola e da educação como um “elevador social”.
Nós, professores, aqueles que melhor que ninguém conhece o terreno, sabemos que esta é uma realidade irrefutável. Daí a minha relutância às cerimónias de entrega de “galardões” e a todas as artes performativas que habitualmente nelas sucedem.